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morte é dolorosa, mas talvez o nascimento seja pior, e minha desgraça estava ali, entre uma coisa e outra.
Foi quando percebi um colar de búzios boiando, preso ao meu pescoço, cheio de areia que saía de dentro das conchas e se dissolvia na água, e que veio comigo não sei de onde, em testemunho de não sei o quê.
se eles sabiam como eu morri, se estava mesmo morta, onde era aquele lugar, tudo atropelado.
não resgatou nenhum traço de memória.
Fernando, e sua inabalável elegância e olhar sempre atento a todos os meus gestos. Não era só cuidado; havia curiosidade e um pouco de medo, um sentido de alerta.
Você trouxe todas as palavras.
só recebemos o aviso de que alguém chegaria no chão deste lugar, e foi preciso correr para o teu resgate.
Almofala é uma palavra árabe, significa acampamento temporário. Al mohala. Os mouros foram deixando muitos pelo caminho. Ficamos sem saber o que fazer, imaginamos mil sentidos, uma senha, um enigma. Estávamos perdidos.
Ressurrecto? Eu sou isso? — É como meu pai chamava. Pessoas que iam morrer, mas por um triz escaparam e voltaram à vida em outro lugar.
Fizemos vigília para esperar teu desenterro, obedecendo à ordem da razão mística que nunca entenderemos, como dizia meu pai.
Mas escuta: esta casa não é nossa, como já expliquei. Não somos daqui, alugamos só para te receber e já vamos embora amanhã.
com roseiras no jardim,
Voltei para casa chorando e amaldiçoando o fosso vazio da minha memória.
Estava viva, não morri, sobrevivi ao insólito.
pelos caminhos de dentro as memórias voltaram da viagem escura.
As palavras vieram, isso é muito bom, mas tem paciência.
Os Ressurrectos chegam sempre confusos. Eu conheci muitos loucos na vida e os piores estavam sempre convencidos de que eram ótimas pessoas — Florice resolveu falar.
Significa quem morre sem morrer, enterrados que saem da terra.
escrever os sonhos.
Deve ter alguma relação com as tuas cicatrizes.
Eu não estava ali porque escolhi.
Antes de ir embora fui ver de onde saí. O buraco estava coberto e Florice plantou uma muda de oliveira em cima, contou que trouxe de casa, era um ritual de chegada dos Ressurrectos que seu avô ensinou.
Engraçado, de Deus eu lembrava.
mas no momento em que me concentrava naqueles corpos descobri que era capaz de ver os mortos.
Saí de um buraco na terra da Almofala, em Portugal. Estava nua e careca, só usava um colar de búzios. Não sei o meu nome. Fui salva por um casal de idosos. Tenho cortes e marcas de violência no corpo. Sou brasileira. Consigo ver os mortos. Não lembro de nada. Acredito em Deus.
Vi as mãos de uma mulher furando búzios pequenos, enfiando o fio por eles, organizando o universo, pois as coisas brilhantes no céu se movimentavam no ritmo dos seus braços.
O delicioso som do mar. — O marulho. — Sim, o marulho.
Só pude descobrir que ganhei o colar de uma senhora de quem eu gosto muito. Senti amor por ela, imenso amor, quando a abracei. Ainda posso sentir, era como saber tudo, enxergar tudo, ouvir tudo, depois dali eu poderia vencer qualquer guerra insurgente, era pura força em um abraço.
Sou brasileira e acho que isso sempre foi a coisa mais importante a descobrir direito, o que é isso, o que trouxe comigo que só existe porque sou uma criatura do Brasil.
espírito é um só, entra e sai dos séculos, os corpos nascem e morrem e as partes da alma vão se espalhando, ela revelava.
Até ali o que me chocava mesmo era ter sido enterrada viva, com tanta crueldade, não sei se os outros Ressurrectos também foram. Eu tinha certeza de que algo ruim tinha acontecido antes, não parecia uma travessia para resgate de pedaço de alma, nenhuma busca espiritual, era uma tragédia violenta.
comecei a chorar mais uma vez, o peso de ser uma névoa.
Aceitei ser Cida, por puro cansaço.
Nessa primeira noite em Lisboa tive um sonho cego. Eu não via o rosto, mas sabia que um homem examinava o maior búzio do meu colar com dedicada atenção. A ponta dos seus dedos era macia e mansa, alisava demoradamente o marrom estriado do búzio, salpicado como as costas de um bicho do mesmo mar de onde eu vim.
Eu sabia que era noite porque não enxergava, estávamos suados, vivos e muito perto um do outro.
O que importa é que havia um homem na minha vida.
Fico pensando se ficou lá me esperando, se chora minha morte. — Ou se foi ele quem tentou te matar. — Já pensei nisso. — É um belo sonho, de qualquer forma.
Faz parte da missão proteger o Ressurrecto, apesar do risco.
Seus pensamentos e os meus eram iguais e eu lembro de rir muito. Não faço ideia do assunto.
Lembro da sua voz e de uma parede onde via alguns cavalos-marinhos pendurados, pequenos, delicados, sustentando por cima e por baixo, posicionados como se estivessem em movimento.
Os cavalos-marinhos voltam sempre aos meus sonhos.
ela me contou o que aconteceu com Jesus. Nasceu de uma mãe pura, fez coisas fantásticas, morreu, depois voltou da morte e foi embora, mas continua entre nós. Basta chamar. Não acreditei que fosse tão fácil falar com ele, e realmente não é, exige fé, merecimento, bondade, persistência, oração, tudo isso ela me disse, espantada
Portugal tão pequeno se comparado à Espanha, ali ao lado, mas na voz de Fernando parecia infinito.
Adormeci e sonhei com ele de novo, o rapaz sem rosto de sempre.
teto cheio de estrelas-do-mar,
temos um mar de esquecimento entre nós.
Eu acreditava no amor como um espírito que descola do peito e segue pelas ruas, entra nas casas, derruba as coisas, faz o que for preciso para dissolver todas as trapaças que separa os que se amam.
Acho importante falar tudo sobre Jorge a partir de agora. A entrada dele na minha vida transforma muitas coisas.

