Fim

by Fernanda Torres

Não separo lixo, não reciclo, jogo guimba no vaso, uso aerossol, tomo longos banhos quentes e escovo os dentes com a torneira aberta. Dane-se a humanidade. Não vou estar aqui para assistir. Não voto há treze anos, não tenho culpa da tragédia em volta.

Toda amizade masculina carrega um quê de veadagem. Comer as mesmas mulheres não deixa de ser um jeito de se comer entre si.

A filha insistiu, vertendo lágrimas via Embratel. Rita repetiu a lamúria pela falta de irmãos. Irmãos, cogitou Irene, não se comete o mesmo erro duas vezes.

A adolescência destruiu-lhe a graça, a escola a inocência e os homens a delicadeza.

Os filhos têm pouco interesse pelo sofrimento dos pais, são ciosos do lugar de vítima, não gostam de abrir mão por ninguém.

Se pudesse, trocaria de pele, sairia de si, mudaria de nome, começaria tudo outra vez. Até completar trinta, Irene achou que atravessava um período de teste, vendo o que acontecia, jogando por jogar, mas, depois que a filha deixou de ser bebê, percebeu que o futuro se define cedo.

Só não terminaram porque Irene tinha mais medo da solidão que da frustração afetiva.

Álvaro creditava a normalidade excessiva de Neto ao fato de ele ser mulato. Havia fundamento na teoria. Sempre que um festejo mais animado acabava com a polícia na porta, Neto era convidado a seguir na viatura até a delegacia. O racismo velado o fez perseguir uma vida sem falhas.

Sóbrio, nunca mais. Me recuso a começar tudo de novo, perdi a ilusão necessária para reinventar os dias.

Estou vivendo a minha morte, pensou. Parou para assistir.