Ana Martins's Blog, page 2
October 19, 2021
Novo Livro - Cartas em Castelo
Olá queridos leitores,
Escrevi exactamente há um ano esta carta. Sendo fiel à essência do livro e tendo começado esta ideia numa longa conversa com a Madalena, senti um ímpeto de lhe escrever. O livro está pronto! Está a ser tratado com muito carinho para chegar às vossas mãos ainda antes deste Natal. Será o meu sétimo "filho" e revelo hoje o seu título:
Cartas em Castelo
Hoje escrevo esta nova carta para convidar todos os meus queridos leitores para a apresentação presencial - sim presencial - esperemos, já sem máscara e muitos abraços.
Até breve!
Escrevi exactamente há um ano esta carta. Sendo fiel à essência do livro e tendo começado esta ideia numa longa conversa com a Madalena, senti um ímpeto de lhe escrever. O livro está pronto! Está a ser tratado com muito carinho para chegar às vossas mãos ainda antes deste Natal. Será o meu sétimo "filho" e revelo hoje o seu título:
Cartas em Castelo
Hoje escrevo esta nova carta para convidar todos os meus queridos leitores para a apresentação presencial - sim presencial - esperemos, já sem máscara e muitos abraços.
Até breve!
Published on October 19, 2021 05:44
April 29, 2021
Banca dos afectos
O que secretamente mais desejamos? Posso arriscar pensar que, nesta fase em que vivemos, seja um abraço. Desafiaram-me a "montar uma banca dos afectos" à porta de casa e, de forma virtual, aceitei a simpática provocação.
Durante o mês de Abril decidi publicar, a cada dia, imagens e frases que em algum momento, abraçaram cada um de nós. Excertos dos meus livros logo pela manhã e de outros autores pelo final do dia. Fui percebendo o alcance que esta pequena e afectuosa banca estava a ter pelas estatísticas que me chegavam.Estas publicações foram sendo lidas, comentadas e partilhadas nas redes sociais aqui e além fronteiras. Atravessou o oceano, abraçou a carência, desencorajou o julgamento, desalinhou o obstáculo e enfrentou o medo. Eu sei o impacto que causou em mim reler passagens de todos os meus livros, a serena busca pela frase certa e a cuidadosa escolha da imagem que melhor se adequava. Sei o que me fez pensar e sentir. Ao leitor, posso apenas imaginar. Ou perguntar:
Durante o mês de Abril decidi publicar, a cada dia, imagens e frases que em algum momento, abraçaram cada um de nós. Excertos dos meus livros logo pela manhã e de outros autores pelo final do dia. Fui percebendo o alcance que esta pequena e afectuosa banca estava a ter pelas estatísticas que me chegavam.Estas publicações foram sendo lidas, comentadas e partilhadas nas redes sociais aqui e além fronteiras. Atravessou o oceano, abraçou a carência, desencorajou o julgamento, desalinhou o obstáculo e enfrentou o medo. Eu sei o impacto que causou em mim reler passagens de todos os meus livros, a serena busca pela frase certa e a cuidadosa escolha da imagem que melhor se adequava. Sei o que me fez pensar e sentir. Ao leitor, posso apenas imaginar. Ou perguntar: Até onde foi este enternecido abraço durante todo o Abril?
Published on April 29, 2021 16:00
March 22, 2021
Spoiler alert novo livro II
Estas imagens dão uma ideia de como eu vejo as minhas personagens deste novo livro. Quatro mulheres, quatro gerações, quatro histórias envolvidas em castelo. E depois o Gil. Ahhh... e o Ernesto!?Este livro terá mais personagens que não mostro agora. É apenas um appetizer, gosto da provocação, revelar mais seria estragar tudo.
Teresinha "Houve tantas complicações querida bisneta – pensou – ganhos e perdas, preconceito, inveja e lágrimas. Dor. Muita. Inultrapassável. Cair de joelhos no chão e não conseguir ver para além do horizonte. Mas se houve trovoadas, houve o apaziguamento após cada borrasca. Orgulho quebrado, nariz no ar. Afundar e voltar à superfície. Cada conquista com travo amargo-doce transformado num sereno renascer adoçado com canela e açúcar amarelo e sempre a entrega e o muito amor em tudo o que fiz na vida. Sorriu. Tudo se resumia a que estava bem. Sim, era feliz."
Lili "Teresinha e Ernesto tiveram só essa filha a que chamaram Liberdade, num período que foi um desafio feroz ao regime. Já a menina, quando teve idade para entender o peso do seu nome, escolheu ser apenas Lili."
Sara "Sara era uma mulher diferente da força da natureza que era a mãe, ou até a avó. Teresinha por vezes pensava que teria sido devido ao divórcio atribulado, por Sara ter tido um pai completamente ausente na sua vida, mas essa falta também acontecera à Lili nos nove anos que Ernesto esteve preso pela P.I.D.E."
Madalena "Teresinha tinha verdadeira paixão pela sua bisneta que tinha uma personalidade forte; não saíra tanto à Sara, herdara toda a fibra de Gil! Era uma miúda pispineta, respondona e impaciente, mas dedicada, meiga e atenciosa."
Gil "Gil escolhera ser médico de família, voltar à terra onde era o rapaz, a cidade que todos o conheciam, sentar-se no consultório sem olhar para o computador, encostar o rosto na palma da mão e perder-se no olhar do paciente, escutá-lo e fazê-lo sentir-se especial no tempo que a consulta demorasse."
"Saltar nua de mãos dadas com o Ernesto para um rio, para um lago, para o mar… sempre que podiam faziam-no."
Published on March 22, 2021 02:21
March 4, 2021
Spoiler alert novo livro
Sim, já tem título.
É sempre por onde começo um novo livro. Tenho hábitos de que gosto e enrosco sempre um início na mesma espiral: o título, o que quero contar, as personagens que vão desenhar a minha história, um caderninho para ideias e pesquisas. Pensá-las. Escrevê-las.
Permito aos meus leitores que espreitem alguma personagem por uma porta que deixo entreaberta, um vislumbre através de um esvoaçante véu que não permite propositadamente uma visão abrangente.
A protagonista deste livro será a Teresinha. A sua história de amor maior com Ernesto. Eis como a imagino em vários momentos da sua longa vida.
"Houve tantas complicações querida bisneta – pensou – ganhos e perdas, preconceito, inveja e lágrimas. Dor. Muita. Inultrapassável. Cair de joelhos no chão e não conseguir ver para além do horizonte. Mas se houve trovoadas, houve o apaziguamento após cada borrasca. Orgulho quebrado, nariz no ar. Afundar e voltar à superfície. Cada conquista com travo amargo-doce transformado num sereno renascer adoçado com canela e açúcar amarelo e sempre a entrega e o muito amor em tudo o que fiz na vida. Sorriu. Tudo se resumia a que estava bem. Sim, era feliz."
"Teresinha era uma sonhadora – presença assídua nos convívios estudantis, a intrépida miúda que tocava guitarra para os colegas da universidade, sendo de entre as vozes femininas, a mais destacada, criativa e promissora."
"Já Ernesto, o marido, era um protector – um fervoroso defensor do corporativismo estudantil, sem que isso beliscasse o seu excelente percurso académico, pois fazia parte das cúpulas associativas estudantis, sempre engajado numa nova luta que advogava com vigor, embaraçando o regime, cada vez com mais audácia."
"Saltar nua de mãos dadas com o Ernesto para um rio, para um lago, para o mar… sempre que podiam faziam-no."
Published on March 04, 2021 05:12
February 14, 2021
A primeira vez
Hoje é o aniversário deste site. Nasceu de uma brincadeira tola no Twitter, em 2009, quando perguntei “Onde posso publicar um texto para lerem?” uma voz disse: “Faz um Blog!”Se eu não queria escrever num Blog, ter um Blog menos ainda! Encantei-me com o contacto directo que obtive com os meus leitores!
Já não é apenas Blog, cresceu a Site – dou a cara e o nome. Assim mesmo, de ganga vestido.
Porquê dia 14 de Fevereiro? Não deixa de ser irónico, festejar o aniversário deste meu espaço logo numa data que não tenho grande respeito (porque, a meu ver, namorar, namora-se todos os dias) o blog nasceu com este conto
veio posteriormente a ser publicado no livro MAL ME QUERO
Hoje ofereço este conto de novo aos meus leitores
Irene já se tinha esquecido: há muito tempo prometera a si própria que nunca mais sairia à noite num dia de namorados. Mas aconteceu. Com amigas, alheadas da comemoração, na sua nova “solteirice”, combinaram ir todas ao Japonês.Ao entrarem no restaurante habitual depararam-se com um invulgar burburinho – infernal!, nem conseguiam avistar o dono! Todas as mesas estavam preenchidas apenas com casalinhos, até ao redor da zona Teppan-yaki – coisa que pretendiam – estava ocupada por parzinhos, claro!, restaurante da moda e caíam lá todos que nem tordos na noite de saída!“Socorro! Saímos no Dia-Oficial-do-Manel-levar-a-Maria-à-rua!!!!” – Brincou. Alguém sugeriu mudar de restaurante, mas não adiantaria àquela hora, sem marcação, estariam todos a transbordar de Manéis&Marias.Antes, imagina-os:Olhou à volta. Irene não tinha nada a opor ao amor ou a sua celebração, apenas o que chamava de “Dia Oficial”, uma representação patética do que deveria ser, por definição, celebrado todos-os-dias-e-todas-as-noites-das-nossas-vidas.O Manel pespega uma beijoca à sua Maria logo pela manhã antes de sair para o trabalho – ela falou tanto nisso na véspera, entre o intervalo do futebol e o creme de noite que ele teve pesadelos do mês sem sexo que sabia, ela imporia, se ele ousasse esquecer…A Maria, nesse dia sorri feliz, usa roupa nova, vai ao cabeleireiro – muita laca, muito caracol – compra um postal cor-de-rosa já preenchido, tipo-basta-assinar e uma prendinha bem fofinha para o seu Manel pôr no carro – coisa que ele jamais usará ao lado do galhardete do seu clube do coração…O Manel, mais pragmático, compra o que ela discretamente lhe pediu durante a última semana toda, incluindo, a seguir à beijoca matinal sem sumo.A Maria papagueia com as suas colegas de trabalho onde poderá ser levada mais logo a jantar. Todas graciosamente fazem crer umas às outras que não sabem o local e/ou a prenda.O Manel, à tardinha, entre bejecas e tremoços, ri com os amigos que, este dia dos paleios cor-de-rosa, até foi uma coisa bem inventada: é uma noite que seguramente elas não irão passar a ferro até tarde, lhes doerá a cabeça ou terão o período…A Maria já passou em casa da Mãe, depositando os filhos com um bem disposto: “Até amanhã!”O Manel foi à florista.A Maria chegou a casa mais cedo, tomou uma chuveirada e rapou os pêlos.O Manel passou horas na fila da florista, rosnando.A Maria passa o gloss mais uma vez pelos lábios ainda bonitos e com pouca procura.O Manel chega a casa com um previsível ramo de rosas vermelhas, reclama por lhe ter custado 50 euros e, claro, «a» prenda.Ouve-se na casa do Manel e da Maria uma palavra inusitada: Amo-teSaem para a rua. Está tanto trânsito como de dia. Vão a um restaurante com folhas de papel branco por toalha.O Manel pensa: “A TV desligada, que má sorte a minha, espero que alguém repare… se digo alguma coisa, lá se vai a queca.”A Maria suspira: “Ele vestiu a camisa mais velha, logo hoje… qualquer dia rasgo-a e faço panos para os vidros.”Irene respirou fundo e olhou em volta enquanto ainda esperavam mesa. Sentiu um ambiente dengoso nas mesas. Não se distinguia a música do ruído. Contrastava a elegância dos pratos deste espaço usualmente relaxante, seguro pela perplexidade serena dos empregados com o frenesim de tão inusitados clientes que até pediam, imagine-se… karaoke.Irene lembrou-se daquela outra noite, não há tantos anos em que ficara inoculada da noite dos namorados. Presa num extraordinário trânsito para aquela hora tardia, olhou à sua volta: Estupefacta, viu o Manel ao volante com a Maria ao lado em todos os carros! Havia a versão casados-há-muitos-anos visivelmente enfadados pela demora e os namoradinhos que ainda disfarçam hostilidades cortesmente. Olhara para o João, o seu marido, para o seu olhar vazio esperando que o trânsito fluísse. Sentiu um arrepio: era apenas mais um Manel, o que, lamentavelmente, fazia dela mais uma Maria.Decidida a que o Manel e a Maria não lhe estragariam mais nenhuma noite, olhou de novo à volta, desta vez com a sua firmeza acutilante.O frete.Estavam todos a fazer frete! Tinham saído à rua somente porque tinham de fazê-lo!… Todos sorriam complacentemente enquanto gramavam polidamente a estopada.Todos não.De indicador em riste anunciou, peremptoriamente, às suas amigas cansadas de estar em pé:“O único casal a sério nesta sala, é aquele ali do canto.”“Como sabes?” Perguntara a Bárbara.“Sei. Sinto. São os únicos que estão a conversar.” Argumentou encolhendo os ombros.Contrapuseram, estando num restaurante repleto de sons estridentes, com outros pares que tagarelavam demasiado alto.“Estão apenas a falar. Reparem no olhar, estão apenas a falar, não estão a conversar.”“Na mesa mesmo atrás de nós estão os piores espécimes de Manéis&Marias – sussurrou rindo a Maria Clara enquanto se sentavam – os broncos!Olhavam causticamente para trás. Versão cromanhon-namoradinhos, diziam à socapa. Tinham de estar dois paresà mesa! Claro!… aos pares, se não, com quem é que eles haveriam de conversar???Sem estranheza, Irene ouviu um dos rapazes protestar bem alto, com os pauzinhos em riste, pedindo talheres de gente, o outro palerma reclamar do peixe estar mal passado, uma das Marias dizer que o gengibre eram «pétalas de flores comestíveis», que «tinha lido numa revista» até ao momento hilário em que um comeu de uma só vez o “pistachio”, urrou que nem um urso que o tinham enganado… sem mencionar a boa parte da noite a ouvi-los contar anedotas pouco edificantes sobre mulheres… que apropriado! – pensou – mas o melhor ainda estava para vir. Quando entrou uma figura típica da noite, empunhando a habitual braçada de rosas, uma daquelas Marias deu uma valente murraça na mesa afiançando ferozmente:“Eu hoje vou querer uma rosa!!!”Até os outros Manéis&Marias das demais mesas tiveram dificuldade de suster o riso… Resta acrescentar o que já todos sabíamos, se calhar, até ela: não a teve.A pouco e pouco todos os Maneis e Marias foram saindo. Era noite de festa lá em casa ou no banco traseiro do carro! Há casais que são abusivos durante todo o ano, seja verbal, física ou psicologicamente, mas Deus os livre de não festejarem o dia dos namorados!Ficaram embrenhadas na conversa boa e no último sake gelado, depois do ritual de sabores nipónicos numa refeição memorável onde, como manda a tradição, nem um único bago de arroz foi desperdiçado, quando o tema de início de conversa, voltou à baila: As únicas mesas ainda ocupadas, agora sim, naquele tranquilo e prazenteiro restaurante, eram apenas a das amigas e a do tal casal do canto.Ficaram a reparar e comentar ostensivamente nos detalhes sem que nunca sequer dessem conta. Era a mulher que estava virada na direcção delas. Tal como as amigas, não tinha estreado roupa nova, não tinha ido ao cabeleireiro, não havia nenhuma rosa vermelha do ké-frô na mesa.Era particularmente bonita, como só uma mulher segura de si consegue pôr um lápis a segurar-lhe o cabelo, vestir uma qualquer t-shirt branca com jeans e… estar bem.Irene entretanto contava uma situação que ouvira num supermercado na véspera. Estava no corredor dos desodorizantes quando tomou atenção numa frase: “Olha, não tenho ideia nenhuma, pode ser já isto? Ficava já despachada para amanhã.” Irene sorrira ao se aperceber que falavam da prenda para o Dia Oficial. Que romantismo!, claramente uma Maria! Continuando as suas compras, ficou com atenção ao diálogo: “…ou então, pode ser este perfume…?, é que nem sequer é caro!”O grito masculino ecoou pelos corredores:“N-Ã-Ã-Ã-O!!!!”As pessoas, às compras, entreolharam-se, mas ninguém se pronunciou quando a discussão estalou. Num casamento, quem vai meter a colher? Irene também olhou por cima do ombro. Pensou que fossem mais velhos, mas era um casal muito novo, reconheceu a vergonha só no tremor do queixo daquela rapariga que continuava a dizer tontices com ar subserviente enquanto ele lhe virava as costas e a deixava a falar para as prateleiras.Respeito. A ligeira diferenciação entre um casal e um Manel&Maria.Quando saíram do restaurante, o casal da mesa do canto continuava a conversar. Nunca deram pelas outras pessoas que tanto os observaram.Irene deu um último relance ao casal antes de sair.Apeteceu-lhe, por um momento, que soubessem que eram o seu prémio casal da noite, afinal fizeram-na acreditar que não eram apenas os Manéis e as Marias que saltavam para fora de casa nesta noite… mas, sempre soube que casais como este, não celebra o seu Amor apenas porque algum grupo de comerciantes resolveu importar uma moda que nem é nossa para aumentar um pouco mais as vendas – criaram portanto este pomposo evento a comemorar – leia-se a comprar.Sorriu ao casal da mesa do canto e pensou, apesar de ter escolhido o divórcio para si, viver a dois, vale realmente a pena – quando vale a pena, respirou fundo e imaginou todos os casais que sabem: alimentar o amor é uma tarefa diária, construtiva, constante… todos-os-dias-e-todas-as-noites-das-nossas-vidas.Podia estar sozinha nessa noite, poderia continuar sozinha na vida, mas Irene sorriu. Enquanto esperavam para pagar, abriu o seu Moleskine e escreveu:
“Há, é uma forma diferente de ver e viver a vida, o que nos torna loucos aos olhos dos que levam uma vidinha triste e sem sabor. A nossa, sabe a morangos com chocolate, até, quem sabe, sake e wasabi, se e quando deixamos a parte picante entrar na nossa vida.”
Já não é apenas Blog, cresceu a Site – dou a cara e o nome. Assim mesmo, de ganga vestido.
Porquê dia 14 de Fevereiro? Não deixa de ser irónico, festejar o aniversário deste meu espaço logo numa data que não tenho grande respeito (porque, a meu ver, namorar, namora-se todos os dias) o blog nasceu com este conto
veio posteriormente a ser publicado no livro MAL ME QUEROHoje ofereço este conto de novo aos meus leitores
Irene já se tinha esquecido: há muito tempo prometera a si própria que nunca mais sairia à noite num dia de namorados. Mas aconteceu. Com amigas, alheadas da comemoração, na sua nova “solteirice”, combinaram ir todas ao Japonês.Ao entrarem no restaurante habitual depararam-se com um invulgar burburinho – infernal!, nem conseguiam avistar o dono! Todas as mesas estavam preenchidas apenas com casalinhos, até ao redor da zona Teppan-yaki – coisa que pretendiam – estava ocupada por parzinhos, claro!, restaurante da moda e caíam lá todos que nem tordos na noite de saída!“Socorro! Saímos no Dia-Oficial-do-Manel-levar-a-Maria-à-rua!!!!” – Brincou. Alguém sugeriu mudar de restaurante, mas não adiantaria àquela hora, sem marcação, estariam todos a transbordar de Manéis&Marias.Antes, imagina-os:Olhou à volta. Irene não tinha nada a opor ao amor ou a sua celebração, apenas o que chamava de “Dia Oficial”, uma representação patética do que deveria ser, por definição, celebrado todos-os-dias-e-todas-as-noites-das-nossas-vidas.O Manel pespega uma beijoca à sua Maria logo pela manhã antes de sair para o trabalho – ela falou tanto nisso na véspera, entre o intervalo do futebol e o creme de noite que ele teve pesadelos do mês sem sexo que sabia, ela imporia, se ele ousasse esquecer…A Maria, nesse dia sorri feliz, usa roupa nova, vai ao cabeleireiro – muita laca, muito caracol – compra um postal cor-de-rosa já preenchido, tipo-basta-assinar e uma prendinha bem fofinha para o seu Manel pôr no carro – coisa que ele jamais usará ao lado do galhardete do seu clube do coração…O Manel, mais pragmático, compra o que ela discretamente lhe pediu durante a última semana toda, incluindo, a seguir à beijoca matinal sem sumo.A Maria papagueia com as suas colegas de trabalho onde poderá ser levada mais logo a jantar. Todas graciosamente fazem crer umas às outras que não sabem o local e/ou a prenda.O Manel, à tardinha, entre bejecas e tremoços, ri com os amigos que, este dia dos paleios cor-de-rosa, até foi uma coisa bem inventada: é uma noite que seguramente elas não irão passar a ferro até tarde, lhes doerá a cabeça ou terão o período…A Maria já passou em casa da Mãe, depositando os filhos com um bem disposto: “Até amanhã!”O Manel foi à florista.A Maria chegou a casa mais cedo, tomou uma chuveirada e rapou os pêlos.O Manel passou horas na fila da florista, rosnando.A Maria passa o gloss mais uma vez pelos lábios ainda bonitos e com pouca procura.O Manel chega a casa com um previsível ramo de rosas vermelhas, reclama por lhe ter custado 50 euros e, claro, «a» prenda.Ouve-se na casa do Manel e da Maria uma palavra inusitada: Amo-teSaem para a rua. Está tanto trânsito como de dia. Vão a um restaurante com folhas de papel branco por toalha.O Manel pensa: “A TV desligada, que má sorte a minha, espero que alguém repare… se digo alguma coisa, lá se vai a queca.”A Maria suspira: “Ele vestiu a camisa mais velha, logo hoje… qualquer dia rasgo-a e faço panos para os vidros.”Irene respirou fundo e olhou em volta enquanto ainda esperavam mesa. Sentiu um ambiente dengoso nas mesas. Não se distinguia a música do ruído. Contrastava a elegância dos pratos deste espaço usualmente relaxante, seguro pela perplexidade serena dos empregados com o frenesim de tão inusitados clientes que até pediam, imagine-se… karaoke.Irene lembrou-se daquela outra noite, não há tantos anos em que ficara inoculada da noite dos namorados. Presa num extraordinário trânsito para aquela hora tardia, olhou à sua volta: Estupefacta, viu o Manel ao volante com a Maria ao lado em todos os carros! Havia a versão casados-há-muitos-anos visivelmente enfadados pela demora e os namoradinhos que ainda disfarçam hostilidades cortesmente. Olhara para o João, o seu marido, para o seu olhar vazio esperando que o trânsito fluísse. Sentiu um arrepio: era apenas mais um Manel, o que, lamentavelmente, fazia dela mais uma Maria.Decidida a que o Manel e a Maria não lhe estragariam mais nenhuma noite, olhou de novo à volta, desta vez com a sua firmeza acutilante.O frete.Estavam todos a fazer frete! Tinham saído à rua somente porque tinham de fazê-lo!… Todos sorriam complacentemente enquanto gramavam polidamente a estopada.Todos não.De indicador em riste anunciou, peremptoriamente, às suas amigas cansadas de estar em pé:“O único casal a sério nesta sala, é aquele ali do canto.”“Como sabes?” Perguntara a Bárbara.“Sei. Sinto. São os únicos que estão a conversar.” Argumentou encolhendo os ombros.Contrapuseram, estando num restaurante repleto de sons estridentes, com outros pares que tagarelavam demasiado alto.“Estão apenas a falar. Reparem no olhar, estão apenas a falar, não estão a conversar.”“Na mesa mesmo atrás de nós estão os piores espécimes de Manéis&Marias – sussurrou rindo a Maria Clara enquanto se sentavam – os broncos!Olhavam causticamente para trás. Versão cromanhon-namoradinhos, diziam à socapa. Tinham de estar dois paresà mesa! Claro!… aos pares, se não, com quem é que eles haveriam de conversar???Sem estranheza, Irene ouviu um dos rapazes protestar bem alto, com os pauzinhos em riste, pedindo talheres de gente, o outro palerma reclamar do peixe estar mal passado, uma das Marias dizer que o gengibre eram «pétalas de flores comestíveis», que «tinha lido numa revista» até ao momento hilário em que um comeu de uma só vez o “pistachio”, urrou que nem um urso que o tinham enganado… sem mencionar a boa parte da noite a ouvi-los contar anedotas pouco edificantes sobre mulheres… que apropriado! – pensou – mas o melhor ainda estava para vir. Quando entrou uma figura típica da noite, empunhando a habitual braçada de rosas, uma daquelas Marias deu uma valente murraça na mesa afiançando ferozmente:“Eu hoje vou querer uma rosa!!!”Até os outros Manéis&Marias das demais mesas tiveram dificuldade de suster o riso… Resta acrescentar o que já todos sabíamos, se calhar, até ela: não a teve.A pouco e pouco todos os Maneis e Marias foram saindo. Era noite de festa lá em casa ou no banco traseiro do carro! Há casais que são abusivos durante todo o ano, seja verbal, física ou psicologicamente, mas Deus os livre de não festejarem o dia dos namorados!Ficaram embrenhadas na conversa boa e no último sake gelado, depois do ritual de sabores nipónicos numa refeição memorável onde, como manda a tradição, nem um único bago de arroz foi desperdiçado, quando o tema de início de conversa, voltou à baila: As únicas mesas ainda ocupadas, agora sim, naquele tranquilo e prazenteiro restaurante, eram apenas a das amigas e a do tal casal do canto.Ficaram a reparar e comentar ostensivamente nos detalhes sem que nunca sequer dessem conta. Era a mulher que estava virada na direcção delas. Tal como as amigas, não tinha estreado roupa nova, não tinha ido ao cabeleireiro, não havia nenhuma rosa vermelha do ké-frô na mesa.Era particularmente bonita, como só uma mulher segura de si consegue pôr um lápis a segurar-lhe o cabelo, vestir uma qualquer t-shirt branca com jeans e… estar bem.Irene entretanto contava uma situação que ouvira num supermercado na véspera. Estava no corredor dos desodorizantes quando tomou atenção numa frase: “Olha, não tenho ideia nenhuma, pode ser já isto? Ficava já despachada para amanhã.” Irene sorrira ao se aperceber que falavam da prenda para o Dia Oficial. Que romantismo!, claramente uma Maria! Continuando as suas compras, ficou com atenção ao diálogo: “…ou então, pode ser este perfume…?, é que nem sequer é caro!”O grito masculino ecoou pelos corredores:“N-Ã-Ã-Ã-O!!!!”As pessoas, às compras, entreolharam-se, mas ninguém se pronunciou quando a discussão estalou. Num casamento, quem vai meter a colher? Irene também olhou por cima do ombro. Pensou que fossem mais velhos, mas era um casal muito novo, reconheceu a vergonha só no tremor do queixo daquela rapariga que continuava a dizer tontices com ar subserviente enquanto ele lhe virava as costas e a deixava a falar para as prateleiras.Respeito. A ligeira diferenciação entre um casal e um Manel&Maria.Quando saíram do restaurante, o casal da mesa do canto continuava a conversar. Nunca deram pelas outras pessoas que tanto os observaram.Irene deu um último relance ao casal antes de sair.Apeteceu-lhe, por um momento, que soubessem que eram o seu prémio casal da noite, afinal fizeram-na acreditar que não eram apenas os Manéis e as Marias que saltavam para fora de casa nesta noite… mas, sempre soube que casais como este, não celebra o seu Amor apenas porque algum grupo de comerciantes resolveu importar uma moda que nem é nossa para aumentar um pouco mais as vendas – criaram portanto este pomposo evento a comemorar – leia-se a comprar.Sorriu ao casal da mesa do canto e pensou, apesar de ter escolhido o divórcio para si, viver a dois, vale realmente a pena – quando vale a pena, respirou fundo e imaginou todos os casais que sabem: alimentar o amor é uma tarefa diária, construtiva, constante… todos-os-dias-e-todas-as-noites-das-nossas-vidas.Podia estar sozinha nessa noite, poderia continuar sozinha na vida, mas Irene sorriu. Enquanto esperavam para pagar, abriu o seu Moleskine e escreveu: “Há, é uma forma diferente de ver e viver a vida, o que nos torna loucos aos olhos dos que levam uma vidinha triste e sem sabor. A nossa, sabe a morangos com chocolate, até, quem sabe, sake e wasabi, se e quando deixamos a parte picante entrar na nossa vida.”
Published on February 14, 2021 02:30
January 7, 2021
Rosa
Pressa.
Distracção. Páro no maior parque de estacionamento da cidade, arrumo o carro e saio disparada para a marcação que tinha ao meio-dia. Sou pontual e detesto chegar atrasada.
Quando regresso, bate-me: não memorizei onde deixei o carro… fila por fila, percorro todo o estacionamento, ando para cá e para lá e a certa altura, porque ia de phones ao telemóvel, comento: está aqui uma senhora ao mesmo, não deve saber onde deixou o carro… A senhora ouve-me e encetamos um diálogo, é verdade, também não sabe. Gracejo: Vai ver, estão ao lado um do outro! Vamos continuando a procurar e eu continuo na minha conversa telefónica e de repente oiço: achei! Dirijo-me ao som da sua voz respondendo: onde está? Porque o meu deve estar perto!! Rimos e quando chego à beira da senhora com pronúncia do Porto (que eu adoro), responde-me: Que marca é o seu? Eu ajudo-a! Tanta querideza, penso e respondo-lhe: Ohhh... tão querida!, não é preciso… Mas já me interrompe, deixei a minha filha na universidade e vou ficar a fazer tempo, a sério que carro é o seu? Eu digo-lhe a marca e modelo e descrevo o exacto tom de meu – é de um azul celeste cor de dia de trovoada. Agradeço-lhe e começamos à procura. Já adivinharam… estavam lado a lado, com um carro apenas pelo meio! Que momento mágico! Despedimo-nos meio a rir meio emocionadas e lembro-me de me apresentar: qual é o seu nome? Eu sou Ana. E a magia continua… diz: eu sou Rosa. Não resisto e partilho com ela: Rosa?!?... Rosa era o nome da minha avó favorita! Desejamos um bom ano e cada uma segue a sua vida. Nunca mais a irei ver, nem reconhecer – ambas de máscara, como convém em tempos covidianos – a não ser que o acaso queira que a Rosa seja uma das minhas queridas leitoras desta maravilhosa cidade que tão bem me acolhe há 5 anos. Mas venho para casa a conduzir feliz num dia tão frio, mas com imenso sol na hora de almoço e na alma quando escrevo este texto. Quanta magia pode andar no ar, se estivermos atentos, se nos dermos de coração e nos entregarmos a cada momento. Eu sou de dar-me, e nunca me arrependo. Sou de amar e de ser amada. Obrigada Rosa. Que tenhas uma vida feliz!
Distracção. Páro no maior parque de estacionamento da cidade, arrumo o carro e saio disparada para a marcação que tinha ao meio-dia. Sou pontual e detesto chegar atrasada. Quando regresso, bate-me: não memorizei onde deixei o carro… fila por fila, percorro todo o estacionamento, ando para cá e para lá e a certa altura, porque ia de phones ao telemóvel, comento: está aqui uma senhora ao mesmo, não deve saber onde deixou o carro… A senhora ouve-me e encetamos um diálogo, é verdade, também não sabe. Gracejo: Vai ver, estão ao lado um do outro! Vamos continuando a procurar e eu continuo na minha conversa telefónica e de repente oiço: achei! Dirijo-me ao som da sua voz respondendo: onde está? Porque o meu deve estar perto!! Rimos e quando chego à beira da senhora com pronúncia do Porto (que eu adoro), responde-me: Que marca é o seu? Eu ajudo-a! Tanta querideza, penso e respondo-lhe: Ohhh... tão querida!, não é preciso… Mas já me interrompe, deixei a minha filha na universidade e vou ficar a fazer tempo, a sério que carro é o seu? Eu digo-lhe a marca e modelo e descrevo o exacto tom de meu – é de um azul celeste cor de dia de trovoada. Agradeço-lhe e começamos à procura. Já adivinharam… estavam lado a lado, com um carro apenas pelo meio! Que momento mágico! Despedimo-nos meio a rir meio emocionadas e lembro-me de me apresentar: qual é o seu nome? Eu sou Ana. E a magia continua… diz: eu sou Rosa. Não resisto e partilho com ela: Rosa?!?... Rosa era o nome da minha avó favorita! Desejamos um bom ano e cada uma segue a sua vida. Nunca mais a irei ver, nem reconhecer – ambas de máscara, como convém em tempos covidianos – a não ser que o acaso queira que a Rosa seja uma das minhas queridas leitoras desta maravilhosa cidade que tão bem me acolhe há 5 anos. Mas venho para casa a conduzir feliz num dia tão frio, mas com imenso sol na hora de almoço e na alma quando escrevo este texto. Quanta magia pode andar no ar, se estivermos atentos, se nos dermos de coração e nos entregarmos a cada momento. Eu sou de dar-me, e nunca me arrependo. Sou de amar e de ser amada. Obrigada Rosa. Que tenhas uma vida feliz!
Published on January 07, 2021 05:45
November 24, 2020
Ou ele ou eu
25 de Novembro é o Dia Internacional pela Eliminação da Violência Contra as Mulheres. Um conto meu do livro "Mal Me Quero", porque este romance escrito há tantos anos, ainda é tão actual.
Mais do que o Manel que bate na Maria, fixei-me nos casos de que ninguém fala, os que não fazem queixa à polícia, os que não contam nem à própria sombra, os que chamei "os números calados". De toda a pesquisa que fiz, não contei uma história verdadeira. São todas ficção, porém as personagens vão parecer-lhes familiares. Uma tia-avó? A vizinha do 2º esq.? O irmão mais velho? Aquele colega de trabalho?
Sim.
A violência doméstica acontece mesmo debaixo do nosso nariz, aproveita-se do silêncio, vence no medo que a vítima vai tendo de enfrentar ou contrariar a tendência crescente do agressor ou agressora, medra ao mesmo tempo que a inércia, não se compadece de pedidos de perdão e-ai-que-nunca-mais-vou-fazer que só servem para os abusadores ganharem tempo e terreno, porque acreditem - fazem de novo e outras tantas vezes mais sem que a saciedade lhes chegue. Acontece debaixo de telhas bem perto de nós, onde não suspeitamos ou, até mesmo sabendo, não nos metemos porque entre marido e mulher não há quem queira meter a colher. Toda esta pesquisa ensinou-me a meter a colher. Desde 2010, a reacção a este livro é curiosamente calada. As pessoas não dizem publicamente que o leram, antes contam-me à boca pequena, no silêncio de um longo email como gostaram, aproveitam para contar a sua própria história, a passada e também muitas vezes a presente. Há pessoas que compreenderam que são vítimas ao ler uma história em que se revêem, há pessoas em que pressinto a mensagem verdadeira quando me confessam que não conseguiram ler tudo até ao final e aplicam um determinado motivo para o explicar.
Eu compreendo e aceito-o em silêncio. Evito dar conselhos (quem sou eu...?) na verdade para os meus leitores não tenho mais palavras a dizer para além das que escrevi neste livro. Mas acreditem, aprendi a comportar-me como cidadã e a perguntar a cada situação que veja na rua com voz bem firme: - Precisa de ajuda?
Fico muito grata a meus leitores por me continuarem a ler.
Conto "Ou ele ou eu" in Mal Me Quero
De repente ficou desorientada, como se tivesse tomado consciência do que tinha acabado de fazer. Nunca lhe passara pela cabeça, nem nas ocasiões mais perversas que, um dia, pudesse chegar a este ponto. Mas esse dia era hoje.
E agora? Não era alívio o que sentia, tão pouco culpa... como explicar o que não concebia?, uma grande confusão de sentimentos contraditórios. Estaria em choque? Se estivesse, pensava, não seria tão consciente de todos os seus movimentos, pois não? Os que tinha acabado de fazer, os passos que teria forçosamente de executar de seguida, a falta de motivação e o poder irresistível de, por o ter feito, ter mudado todo o curso da sua vida. Arrependimento? Nem sabia. Fora um impulso, a oportunidade surgiu e nem pensou noutra coisa senão... morrer ou matar.
Não tinha visto toda a sua vida em flash-back como dizem nos livros. Agora sim, as imagens sucediam a uma velocidade vertiginosa: sabia que não tinha pretendido fazê-lo, mas, num momento de loucura, como fora este, teria realmente, por algum segundo, pensado em acabar com todo o seu martírio, ao pegar naquele horrível martelo dos bifes? Outro pesadelo estaria agora a começar, sabia-o bem. A cristalina consciência da sua situação era tão evidente quanto veloz: não parava de pensar que, provavelmente, estaria em estado de choque.
Olhou para o vaso derrubado com petúnias que tinha comprado para o jardim, havia terra por todo o lado. Se num primeiro impulso pensou em levantar a planta e limpar a terra, no seguinte, recordou os filmes da TV, em que não se devia mexer no local do crime. Crime...? Cometera um crime, sim! Ela perpetrara o mais terrível delito: matara uma pessoa, a mesma a quem prometera amar, respeitar, estar ao lado na saúde e na doença, até que a morte os separasse...Seria presa, certamente. Quem iria acreditar na sua palavra se alegasse legítima defesa? Ninguém nunca iria crer que, logo eles os dois, tinham um casamento onde imperava o medo, o cinismo, a dissimulação. E sim, a cobardia. A dele, por a atingir a cada olhar, a cada ameaça, a cada murro. A sua, por o esconder, o encobrir e o perdoar.Ainda a limpar as mãos na toalha da cozinha, cuidou que o tinha visto respirar. O peito parecia que subia e descia! Aproximou-se a medo. Lembrou-se quando, em pequena, viu um morto num acidente de viação, também o peito dele subia e descia e nem estava no estado que o marido estava... Impossível estar vivo com a cara naquele estado! Deu-lhe um pontapé no pé. Morto. Só podia ser algum reflexo involuntário, alucinação sua, uma brincadeira de mau gosto da sua mente. Seria presa, decididamente. Fugir não era opção. Só foge quem quer escapar de algo que fez de errado. Teria sido assim tão errado matá-lo? Ele ia matá-la, senão desta vez, da próxima, ou na seguinte. Sabia, havia muito tempo, que eventualmente morreria às suas mãos. Seria tão errado não querer para si esse fim? Seria assim tão errado querer viver?, fugir desse filme de terror em que se transformara o lindo romance de amor que deveria ser o seu casamento?, se não vivessem todas sempre à espera do príncipe e do cavalo branco, pensava, talvez as expectativas não fossem tão altas, quiçá, tendo fechado o canal cor-de-rosa, pudessem avistar um calhorda na roupagem alva logo à distância!Devagar, tacteou a cara. Conseguia ver as suas próprias bochechas, devia estar jeitosa... a toalha húmida soube-lhe bem no rosto dorido. Porque é que permitiu tanto? Porque é que perdoou tanto? Podia ter acabado as coisas antes do casamento. Sim, naquele longínquo dia, devia ter percebido que não se iria meter em coisa boa, mas já tinham comprado a casa, os convites já tinham sido enviados e os sofás eram tão bonitos... hoje parecia-lhe uma futilidade de motivos, mas percebia agora, claramente, que já era o medo a nidificar em todos os poros do seu ser, serenamente, sem permissão, sem deixar sinal, a impossibilitá-la de pensar no assunto, de reagir. Podia ter sido no dia do casamento, quando o seu antigo namorado telefonou e lhe pediu para não o fazer, podia ter sido no primeiro dia em que a desancou sem motivo, podia ter sido... ontem!, mas nunca conseguiu verdadeiramente pressionar o botão agir... Mas, seria preciso matá-lo? Seria. Mil vezes, seria! Jamais teve ou teria coragem de mexer-se! Jamais respondeu empregando semelhante tom, nunca virou ou viraria as costas, nem tentou ou tentaria argumentar, fugir então...Aproximou-se. Mortinho da silva! Agora não a atingiria. Aproximou-se mais um pouco. Tentou decifrar o significado da expressão intacta no lado direito do rosto desfigurado. Estranheza? Pasmo? Estupefacção? Não. Não era isso. Era... sim, era medo! Ele tinha sentido, no último momento da sua vida, medo dela. Ele tinha tido medo! A primeira sensação foi sentir-se vingada, mas não era bem um gosto a vitória, sabia a amargo. Veio a tristeza. Ele tinha uma cara tão bonita, a mãezinha dele, sua sogra querida, nunca a perdoaria... A euforia. Precisava de ajuda... não sabia como ou o que fazer, para onde ir ou ligar, mas... ele estava ali, no chão, caído, ela matara-o, mortinho, matado!Era tão frágil a vida humana, um gesto, num ápice e ceifa-se uma vida. A poça de sangue escuro nauseava-a. Limpava continuadamente as mãos ao pano. Nunca pensara deveras quão precária pode ser a existência do ser humano. Num ápice azarado, podemos apanhar com o vaso do inquilino do segundo esquerdo que, sem se dar conta, sacode despreocupadamente um tapete, ou inocentemente atravessar uma estrada no momento errado, em que um condutor zeloso, para se afastar da clássica situação, a criancinha que corre atrás da bola, vira repentinamente e, ao escolher a direcção contrária, atinge-nos sem sentido, ou então, pode simplesmente acontecer, como hoje, quando a nossa cara-metade nos faz a cara em metade. Tão forte que ele era, pensa, tão fácil que foi. Acabou. Mal, ele não lhe faz mais! Acabou. Respira profundamente. Passa as mãos pelo cabelo, afastando-o do rosto dorido. Está horrorizada com o formato inócuo e desresponsabilizado que todo o seu ser parece adoptar em relação ao que acabou de causar, a facilidade com que o fez, a displicência de quem não tem nada a fazer ali, contudo, no mesmíssimo segundo, sabe e sente a culpabilidade, aguarda a punição, a espera: foi um acto que não tem desculpa possível, nem sequer a do instinto de sobrevivência, de ter estado a lutar para salvar a sua própria vida. Nunca deveria ter permitido que o rumo dos acontecimentos tomassem o leme na sua existência, devia ter feito... poderia ter feito tanto! Pensou na mãe, na sua mãe, no que sentiria quando lhe dessem a notícia, como reagiria quando a soubesse presa? No emprego, certamente iriam preencher o seu lugar quando a soubessem uma assassina! Os amigos, os vizinhos, o que iriam dizer? Foi até à janela e ficou a olhar as gotas de chuva que escorriam pela vidraça. Amanhecera. Caía uma chuvada valente de pingos grossos. Abriu a janela para escutá-la melhor. Sorriu ao cheiro bom de terra molhada. Aspirou-o profundamente, como que a degustar o seu novo momento. Paz...? Estranhamente, não tinha vontade de chorar, como, achava, seria normal acontecer. Engoliu em seco, doeu-lhe a garganta. Veio-lhe à lembrança as mãos bojudas em torno do seu pescoço, a correria pela casa... olhou em volta – parecia o cenário de uma guerra. Não era o que tinha sido? Desta vez tinha lutado firmemente, não se resignara em apanhar umas biqueiradas placidamente, como se a reacção tivesse sido mandada de folga, desta vez reagiu! O seu marido tinha ficado atónito com a primeira caçarolada na cara, nunca o havia feito e apanhou-o desprevenido. Acto contínuo, como seria bom de ver, ficou mais violento, bateu-lhe com as duas mãos bem abertas, como tão bem fazia, mas, desta vez esqueceu a precaução de não a marcar no rosto e bateu até a ver com a cara num bolo. Devagar, tacteou de novo a cara. Incomodava-a o inchaço, poder ver as próprias bochechas... Recordou esse instante... Sim, claro!, ela não tinha tido a intenção de o matar! Fechou a janela e voltou a olhar para aquele corpo inerte. Chegou bem perto e afastou-lhe a franja no lado intacto da cara. Amava-o apesar dos pesares... Ele parara de bater, olhou-a no rosto e viu o que tinha feito: ela achou que tinha terminado a investida do dia. Já suspirava de alívio quando sentiu que ele abrira a gaveta dos talheres e, enquanto remexia, ameaçava: “Achas bem a colher de pau, querida? Já estão fora de moda! Hoje vou usar uma faca, ou preferes um martelo, não deve ser giro?” Não fora nada giro. Inicialmente apenas fugira, quando encurralada, ela ainda achara que não a iria matar, apenas a queria intimidar, era o costume, este era apenas um novo instrumento, mas um brilho novo no seu olhar que, momentânea e estupidamente, a fez lembrar o capitão Gancho, assustou-a. Era desta! O seu inferno ia ter um fim. Gritou. Gritou muito alto. Ele tapou-lhe a boca. Ela nunca gritava, e os vizinhos?! Fora aquele o instante. O martelo deposto ali ao lado... nunca mais... nunca mais... nunca mais... nunca mais me tocas... nunca mais me bates. – Murmurara a cada investida. O céu estava carregado. Ia ser outro dia de chuva forte, tinham dado trovoada. - ‘Tá lá? É do 112? Olhe, desculpe, mas eu matei o meu marido.
Mais do que o Manel que bate na Maria, fixei-me nos casos de que ninguém fala, os que não fazem queixa à polícia, os que não contam nem à própria sombra, os que chamei "os números calados". De toda a pesquisa que fiz, não contei uma história verdadeira. São todas ficção, porém as personagens vão parecer-lhes familiares. Uma tia-avó? A vizinha do 2º esq.? O irmão mais velho? Aquele colega de trabalho?
Sim.
A violência doméstica acontece mesmo debaixo do nosso nariz, aproveita-se do silêncio, vence no medo que a vítima vai tendo de enfrentar ou contrariar a tendência crescente do agressor ou agressora, medra ao mesmo tempo que a inércia, não se compadece de pedidos de perdão e-ai-que-nunca-mais-vou-fazer que só servem para os abusadores ganharem tempo e terreno, porque acreditem - fazem de novo e outras tantas vezes mais sem que a saciedade lhes chegue. Acontece debaixo de telhas bem perto de nós, onde não suspeitamos ou, até mesmo sabendo, não nos metemos porque entre marido e mulher não há quem queira meter a colher. Toda esta pesquisa ensinou-me a meter a colher. Desde 2010, a reacção a este livro é curiosamente calada. As pessoas não dizem publicamente que o leram, antes contam-me à boca pequena, no silêncio de um longo email como gostaram, aproveitam para contar a sua própria história, a passada e também muitas vezes a presente. Há pessoas que compreenderam que são vítimas ao ler uma história em que se revêem, há pessoas em que pressinto a mensagem verdadeira quando me confessam que não conseguiram ler tudo até ao final e aplicam um determinado motivo para o explicar.
Eu compreendo e aceito-o em silêncio. Evito dar conselhos (quem sou eu...?) na verdade para os meus leitores não tenho mais palavras a dizer para além das que escrevi neste livro. Mas acreditem, aprendi a comportar-me como cidadã e a perguntar a cada situação que veja na rua com voz bem firme: - Precisa de ajuda?Fico muito grata a meus leitores por me continuarem a ler.
Conto "Ou ele ou eu" in Mal Me Quero
De repente ficou desorientada, como se tivesse tomado consciência do que tinha acabado de fazer. Nunca lhe passara pela cabeça, nem nas ocasiões mais perversas que, um dia, pudesse chegar a este ponto. Mas esse dia era hoje.
E agora? Não era alívio o que sentia, tão pouco culpa... como explicar o que não concebia?, uma grande confusão de sentimentos contraditórios. Estaria em choque? Se estivesse, pensava, não seria tão consciente de todos os seus movimentos, pois não? Os que tinha acabado de fazer, os passos que teria forçosamente de executar de seguida, a falta de motivação e o poder irresistível de, por o ter feito, ter mudado todo o curso da sua vida. Arrependimento? Nem sabia. Fora um impulso, a oportunidade surgiu e nem pensou noutra coisa senão... morrer ou matar.Não tinha visto toda a sua vida em flash-back como dizem nos livros. Agora sim, as imagens sucediam a uma velocidade vertiginosa: sabia que não tinha pretendido fazê-lo, mas, num momento de loucura, como fora este, teria realmente, por algum segundo, pensado em acabar com todo o seu martírio, ao pegar naquele horrível martelo dos bifes? Outro pesadelo estaria agora a começar, sabia-o bem. A cristalina consciência da sua situação era tão evidente quanto veloz: não parava de pensar que, provavelmente, estaria em estado de choque.
Olhou para o vaso derrubado com petúnias que tinha comprado para o jardim, havia terra por todo o lado. Se num primeiro impulso pensou em levantar a planta e limpar a terra, no seguinte, recordou os filmes da TV, em que não se devia mexer no local do crime. Crime...? Cometera um crime, sim! Ela perpetrara o mais terrível delito: matara uma pessoa, a mesma a quem prometera amar, respeitar, estar ao lado na saúde e na doença, até que a morte os separasse...Seria presa, certamente. Quem iria acreditar na sua palavra se alegasse legítima defesa? Ninguém nunca iria crer que, logo eles os dois, tinham um casamento onde imperava o medo, o cinismo, a dissimulação. E sim, a cobardia. A dele, por a atingir a cada olhar, a cada ameaça, a cada murro. A sua, por o esconder, o encobrir e o perdoar.Ainda a limpar as mãos na toalha da cozinha, cuidou que o tinha visto respirar. O peito parecia que subia e descia! Aproximou-se a medo. Lembrou-se quando, em pequena, viu um morto num acidente de viação, também o peito dele subia e descia e nem estava no estado que o marido estava... Impossível estar vivo com a cara naquele estado! Deu-lhe um pontapé no pé. Morto. Só podia ser algum reflexo involuntário, alucinação sua, uma brincadeira de mau gosto da sua mente. Seria presa, decididamente. Fugir não era opção. Só foge quem quer escapar de algo que fez de errado. Teria sido assim tão errado matá-lo? Ele ia matá-la, senão desta vez, da próxima, ou na seguinte. Sabia, havia muito tempo, que eventualmente morreria às suas mãos. Seria tão errado não querer para si esse fim? Seria assim tão errado querer viver?, fugir desse filme de terror em que se transformara o lindo romance de amor que deveria ser o seu casamento?, se não vivessem todas sempre à espera do príncipe e do cavalo branco, pensava, talvez as expectativas não fossem tão altas, quiçá, tendo fechado o canal cor-de-rosa, pudessem avistar um calhorda na roupagem alva logo à distância!Devagar, tacteou a cara. Conseguia ver as suas próprias bochechas, devia estar jeitosa... a toalha húmida soube-lhe bem no rosto dorido. Porque é que permitiu tanto? Porque é que perdoou tanto? Podia ter acabado as coisas antes do casamento. Sim, naquele longínquo dia, devia ter percebido que não se iria meter em coisa boa, mas já tinham comprado a casa, os convites já tinham sido enviados e os sofás eram tão bonitos... hoje parecia-lhe uma futilidade de motivos, mas percebia agora, claramente, que já era o medo a nidificar em todos os poros do seu ser, serenamente, sem permissão, sem deixar sinal, a impossibilitá-la de pensar no assunto, de reagir. Podia ter sido no dia do casamento, quando o seu antigo namorado telefonou e lhe pediu para não o fazer, podia ter sido no primeiro dia em que a desancou sem motivo, podia ter sido... ontem!, mas nunca conseguiu verdadeiramente pressionar o botão agir... Mas, seria preciso matá-lo? Seria. Mil vezes, seria! Jamais teve ou teria coragem de mexer-se! Jamais respondeu empregando semelhante tom, nunca virou ou viraria as costas, nem tentou ou tentaria argumentar, fugir então...Aproximou-se. Mortinho da silva! Agora não a atingiria. Aproximou-se mais um pouco. Tentou decifrar o significado da expressão intacta no lado direito do rosto desfigurado. Estranheza? Pasmo? Estupefacção? Não. Não era isso. Era... sim, era medo! Ele tinha sentido, no último momento da sua vida, medo dela. Ele tinha tido medo! A primeira sensação foi sentir-se vingada, mas não era bem um gosto a vitória, sabia a amargo. Veio a tristeza. Ele tinha uma cara tão bonita, a mãezinha dele, sua sogra querida, nunca a perdoaria... A euforia. Precisava de ajuda... não sabia como ou o que fazer, para onde ir ou ligar, mas... ele estava ali, no chão, caído, ela matara-o, mortinho, matado!Era tão frágil a vida humana, um gesto, num ápice e ceifa-se uma vida. A poça de sangue escuro nauseava-a. Limpava continuadamente as mãos ao pano. Nunca pensara deveras quão precária pode ser a existência do ser humano. Num ápice azarado, podemos apanhar com o vaso do inquilino do segundo esquerdo que, sem se dar conta, sacode despreocupadamente um tapete, ou inocentemente atravessar uma estrada no momento errado, em que um condutor zeloso, para se afastar da clássica situação, a criancinha que corre atrás da bola, vira repentinamente e, ao escolher a direcção contrária, atinge-nos sem sentido, ou então, pode simplesmente acontecer, como hoje, quando a nossa cara-metade nos faz a cara em metade. Tão forte que ele era, pensa, tão fácil que foi. Acabou. Mal, ele não lhe faz mais! Acabou. Respira profundamente. Passa as mãos pelo cabelo, afastando-o do rosto dorido. Está horrorizada com o formato inócuo e desresponsabilizado que todo o seu ser parece adoptar em relação ao que acabou de causar, a facilidade com que o fez, a displicência de quem não tem nada a fazer ali, contudo, no mesmíssimo segundo, sabe e sente a culpabilidade, aguarda a punição, a espera: foi um acto que não tem desculpa possível, nem sequer a do instinto de sobrevivência, de ter estado a lutar para salvar a sua própria vida. Nunca deveria ter permitido que o rumo dos acontecimentos tomassem o leme na sua existência, devia ter feito... poderia ter feito tanto! Pensou na mãe, na sua mãe, no que sentiria quando lhe dessem a notícia, como reagiria quando a soubesse presa? No emprego, certamente iriam preencher o seu lugar quando a soubessem uma assassina! Os amigos, os vizinhos, o que iriam dizer? Foi até à janela e ficou a olhar as gotas de chuva que escorriam pela vidraça. Amanhecera. Caía uma chuvada valente de pingos grossos. Abriu a janela para escutá-la melhor. Sorriu ao cheiro bom de terra molhada. Aspirou-o profundamente, como que a degustar o seu novo momento. Paz...? Estranhamente, não tinha vontade de chorar, como, achava, seria normal acontecer. Engoliu em seco, doeu-lhe a garganta. Veio-lhe à lembrança as mãos bojudas em torno do seu pescoço, a correria pela casa... olhou em volta – parecia o cenário de uma guerra. Não era o que tinha sido? Desta vez tinha lutado firmemente, não se resignara em apanhar umas biqueiradas placidamente, como se a reacção tivesse sido mandada de folga, desta vez reagiu! O seu marido tinha ficado atónito com a primeira caçarolada na cara, nunca o havia feito e apanhou-o desprevenido. Acto contínuo, como seria bom de ver, ficou mais violento, bateu-lhe com as duas mãos bem abertas, como tão bem fazia, mas, desta vez esqueceu a precaução de não a marcar no rosto e bateu até a ver com a cara num bolo. Devagar, tacteou de novo a cara. Incomodava-a o inchaço, poder ver as próprias bochechas... Recordou esse instante... Sim, claro!, ela não tinha tido a intenção de o matar! Fechou a janela e voltou a olhar para aquele corpo inerte. Chegou bem perto e afastou-lhe a franja no lado intacto da cara. Amava-o apesar dos pesares... Ele parara de bater, olhou-a no rosto e viu o que tinha feito: ela achou que tinha terminado a investida do dia. Já suspirava de alívio quando sentiu que ele abrira a gaveta dos talheres e, enquanto remexia, ameaçava: “Achas bem a colher de pau, querida? Já estão fora de moda! Hoje vou usar uma faca, ou preferes um martelo, não deve ser giro?” Não fora nada giro. Inicialmente apenas fugira, quando encurralada, ela ainda achara que não a iria matar, apenas a queria intimidar, era o costume, este era apenas um novo instrumento, mas um brilho novo no seu olhar que, momentânea e estupidamente, a fez lembrar o capitão Gancho, assustou-a. Era desta! O seu inferno ia ter um fim. Gritou. Gritou muito alto. Ele tapou-lhe a boca. Ela nunca gritava, e os vizinhos?! Fora aquele o instante. O martelo deposto ali ao lado... nunca mais... nunca mais... nunca mais... nunca mais me tocas... nunca mais me bates. – Murmurara a cada investida. O céu estava carregado. Ia ser outro dia de chuva forte, tinham dado trovoada. - ‘Tá lá? É do 112? Olhe, desculpe, mas eu matei o meu marido.
Published on November 24, 2020 16:00
October 24, 2020
A hora do nada
Sempre que acontece a mudança de hora, em que recuamos uma hora nos nossos relógios, nas nossas vidas, a minha imaginação dispara nas múltiplas possibilidades do que pode ou não acontecer a cada um de nós numa hora que não existe e que de uma forma utópica mude a forma de estar e ser para sempre. É claro que esse momento nos pode surgir em qualquer hora de nossas vidas, mas muito mais poético se for naquela hora mágica que só se designou (não) existir uma vez por ano, poético e definitivamente uma excepcional história para, um dia contar aos seus netos.
Não seria o caso de Sandrine, se fosse o caso desta minha personagem de livro ser real. É uma das muitas caras sem rosto que dão cor ao meu livro "Mal Me Quero" que sendo um romance de ficção, aborda realidades vividas por muitas Marias e Sandrines. Nem sempre mulheres, nem sempre Marias, e sim, também o reforço no meu livro com personagens masculinas, apesar de o rosto mais visível da vítima da violência doméstica seja o feminino.
Deixo-vos com a Sandrine, quiçá para ser lido na hora do nada deste ano, acompanhado pelo som de Billy Joel - num dos contos deste meu livro de ficção (que pode ser tão real, silenciada debaixo das telhas de cada casa) "MAL ME QUERO" - páginas 53 a 56 - "A hora do nada".
Billy Joel - She's always a woman to me
A Hora do Nada
Sandrine convenceu-se que não tinha acontecido. Até porque fora só daquela vez e aquela vez não tinha existido.Engraçado os mecanismos que a nossa cabeça arranja para se defender do lixo mental que não queremos ver, ouvir, cheirar, sentir, menos ainda saborear.O Ruben tinha aquele hábito horrível de beber bagaço com a bica do jantar. O pai dela também o fazia, quando imigraram para França, dizia sentir-se mais português por comer bacalhau, chouriças e beber bagaço. Esse era um fedor que se lhe entranhava nas roupas, junto com esse, o do tabaco dos outros da taberna, entrava pela cama lavada a cheirar a alfazema e roubava-lhe o odor a casamento feliz que tanto queria sustentar.A mãe e o pai ainda tinham um casamento composto, tinham lá as suas coisas, mas qual o casal que não as tem? Viria a ser assim com o Ruben também. Era um bom homem, amigo de trabalhar, um bocado rude devido à educação que tinha tido. A princípio, quando vinha nas férias, até o achara peculiar e pensava que se poliria com o tempo, o convívio e o ficarem juntos em Portugal.Mas era o Portugal dele. Não o seu. Não agora.O marido era de perto da terra dos seus pais, uma zona de quintas bem perto de Lisboa. Visitavam os avós todos os verões, no mês habitual e o namoro com o moço despontou. Coisa de miúdos, quando se encontravam nos passeios de bicicleta, pelas pequenas florestas onde depois brincavam. Sandrine recordava-se sempre das histórias de bruxas quando passava por lá, devido ao marulhar esfregadiço das folhas quando havia vento.
Só nos seus 16 anos levararam o namorico da menina mais a sério num amargo fim de Agosto: Sandrine não queria, porque não queria voltar à França deles e pedia: porque não ficava a viver com os avós? Nascera lá, mas o coraçãozinho de jovem ficara só às últimas chuvadas de Verão porque os pais não permitiram que a sua menina de ouro interrompesse a escola e o sonho de a vir a tornar alguém na vida. A promessa de trabalho dos tios do marido, o sonho adolescente de um casamento perfeito e um irredutível Ruben de mochila às costas frente à casa dos pais sem aviso prévio, fizeram-na deixar os pais aos dezoito anos e vir para uma terra que nunca viria a sentir sua.
Três filhas depois sentia-se sugada, estupidificando a cada dia, numa casa sem graça no bairro escuro, como se um vagaroso torpor tomasse lugar da menina inteligente para os livros de escola, enquanto a sua bicicleta enferrujava nas traseiras do quintal.Aquela noite não tinha existido. Não naquele momento mágico em que a hora de Inverno anda para trás e por isso mesmo nada tinha acontecido. Todos os dias pensava nisso e tentava focar-se apenas na ideia da hora que não tinha acontecido, por isso era tão fácil convencer-se! Contudo, nada ficou igual depois dessa hora em que nada, mas tudo aconteceu.
O Ruben chegou da taberna tarde como vinha sendo habitual. Estranhou quando o ouviu dar uma volta na fechadura da porta do quarto, apenas cerrou mais os olhos, encostou o nariz no lençol e fingiu dormir, como já se tornara seu hábito, tentando reter a lavanda nas suas narinas.Só teve tempo de estranhar ele não se sentar pesadamente do outro lado da cama e atirar com as botas sem pensar que por baixo dormiam vizinhos: Estava do seu lado da cama e...Pôs as mãos dentro da sua camisa de dormir e... fez o que não lhe foi muito confortável.Sabia o nome da coisa, porque tinha dito veemente e repetidamente NÃO.Honoré de Balzac dizia «Pode-se perdoar, mas esquecer, isso, é impossível.» Sandrine tentava esquecer, tentava ferozmente esquecer, sem se dar conta que nem perdoar conseguia. Talvez o que mais lhe custava desculpar fosse aquele momento, logo no início, quando se debateu, fechou as pernas e disse, “NÃO FAÇAS ISSO”, a valente chapada na cara e aquela voz bagacenta a ordenar: “ESTÁ QUIETA!”Está quieta...?Como se não fosse dona do seu ser, do seu querer ou não querer.Não se ajeitou, tão pouco lhe facilitou a coisa. Parvamente recorda quando, desesperada, olhou para cima e na escuridão do quarto viu o neon da luz do despertador e se recordou que teria de mudar a hora.Depois...Quando ele saiu para o toillete, rolou na cama e limpando as lágrimas com o pulso dorido, recuou a hora do despertador. Esboçou um sorriso tonto e tentou evadir-se para o campo ensolarado lilás da plantação de alfazema que havia na propriedade onde os pais trabalhavam na sua França enquanto apertava o relógio contra si. Foi a primeira vez que lhe ocorreu esse pensamento a que se agarrava até hoje: A hora do nada. Porque se não existira, logo, nada se passara!Havia ocasiões em que ponderava e a culpa era dela. Era um dever conjugal a que se esquivava frequentemente quando o Ruben bebia e, verdade se diga, recusava muito. Não suportava aquele cheiro a entrar-lhe pelas narinas e a bloquear-lhe a líbido. Era mais fácil fingir que dormia e dormia muito.Nunca falaram sobre aquela noite.Ele solicitava e ela não se debatia. Assim. Função cumprida. Todos os dias.Até que uma noite – daquelas em que Sandrine agora dormia mesmo muito com uns comprimidos que, entretanto, comprara – acordou e não o sentiu na cama a seu lado.Nessa noite em vez de sentir alívio por ele não estar a seu lado... gelou.As meninas.Sorrateiramente foi espreitar o que podia estar a acontecer, mas um sonoro sopro anal vindo do toillete anunciou a localização de Ruben.
Entrou no quarto das meninas e foi beijar e aconchegar uma a uma no soninho descansado. Cheirinho a Alfazema. Perfumava-as sempre depois do banho antes de as deitar. E se... Não. NÃO!Sabia que no bairro havia uma Associação de Imigrantes. Sabia que eram bastante activos com a população em perigo, não iriam negar ajuda a uma mãe com três filhas, como tinha conhecimento não negavam a ninguém. Uma vizinha cabo-verdiana perto dela andava a ser ajudava por esses senhores da associação, a outra família lá além também e percebia claramente tanto empenho e dedicação.Deu duas voltas à chave do quarto das meninas e deitou-se na cama com a mais pequenita. Inspirou bem profundamente o ar impregnado de lavanda.Não pensou no que tinha de comprar na mercearia na manhã seguinte: Mentalmente soube onde iria assim o sol amanhecesse.
Não seria o caso de Sandrine, se fosse o caso desta minha personagem de livro ser real. É uma das muitas caras sem rosto que dão cor ao meu livro "Mal Me Quero" que sendo um romance de ficção, aborda realidades vividas por muitas Marias e Sandrines. Nem sempre mulheres, nem sempre Marias, e sim, também o reforço no meu livro com personagens masculinas, apesar de o rosto mais visível da vítima da violência doméstica seja o feminino.Deixo-vos com a Sandrine, quiçá para ser lido na hora do nada deste ano, acompanhado pelo som de Billy Joel - num dos contos deste meu livro de ficção (que pode ser tão real, silenciada debaixo das telhas de cada casa) "MAL ME QUERO" - páginas 53 a 56 - "A hora do nada".
Billy Joel - She's always a woman to me
A Hora do NadaSandrine convenceu-se que não tinha acontecido. Até porque fora só daquela vez e aquela vez não tinha existido.Engraçado os mecanismos que a nossa cabeça arranja para se defender do lixo mental que não queremos ver, ouvir, cheirar, sentir, menos ainda saborear.O Ruben tinha aquele hábito horrível de beber bagaço com a bica do jantar. O pai dela também o fazia, quando imigraram para França, dizia sentir-se mais português por comer bacalhau, chouriças e beber bagaço. Esse era um fedor que se lhe entranhava nas roupas, junto com esse, o do tabaco dos outros da taberna, entrava pela cama lavada a cheirar a alfazema e roubava-lhe o odor a casamento feliz que tanto queria sustentar.A mãe e o pai ainda tinham um casamento composto, tinham lá as suas coisas, mas qual o casal que não as tem? Viria a ser assim com o Ruben também. Era um bom homem, amigo de trabalhar, um bocado rude devido à educação que tinha tido. A princípio, quando vinha nas férias, até o achara peculiar e pensava que se poliria com o tempo, o convívio e o ficarem juntos em Portugal.Mas era o Portugal dele. Não o seu. Não agora.O marido era de perto da terra dos seus pais, uma zona de quintas bem perto de Lisboa. Visitavam os avós todos os verões, no mês habitual e o namoro com o moço despontou. Coisa de miúdos, quando se encontravam nos passeios de bicicleta, pelas pequenas florestas onde depois brincavam. Sandrine recordava-se sempre das histórias de bruxas quando passava por lá, devido ao marulhar esfregadiço das folhas quando havia vento.
Só nos seus 16 anos levararam o namorico da menina mais a sério num amargo fim de Agosto: Sandrine não queria, porque não queria voltar à França deles e pedia: porque não ficava a viver com os avós? Nascera lá, mas o coraçãozinho de jovem ficara só às últimas chuvadas de Verão porque os pais não permitiram que a sua menina de ouro interrompesse a escola e o sonho de a vir a tornar alguém na vida. A promessa de trabalho dos tios do marido, o sonho adolescente de um casamento perfeito e um irredutível Ruben de mochila às costas frente à casa dos pais sem aviso prévio, fizeram-na deixar os pais aos dezoito anos e vir para uma terra que nunca viria a sentir sua.Três filhas depois sentia-se sugada, estupidificando a cada dia, numa casa sem graça no bairro escuro, como se um vagaroso torpor tomasse lugar da menina inteligente para os livros de escola, enquanto a sua bicicleta enferrujava nas traseiras do quintal.Aquela noite não tinha existido. Não naquele momento mágico em que a hora de Inverno anda para trás e por isso mesmo nada tinha acontecido. Todos os dias pensava nisso e tentava focar-se apenas na ideia da hora que não tinha acontecido, por isso era tão fácil convencer-se! Contudo, nada ficou igual depois dessa hora em que nada, mas tudo aconteceu.
O Ruben chegou da taberna tarde como vinha sendo habitual. Estranhou quando o ouviu dar uma volta na fechadura da porta do quarto, apenas cerrou mais os olhos, encostou o nariz no lençol e fingiu dormir, como já se tornara seu hábito, tentando reter a lavanda nas suas narinas.Só teve tempo de estranhar ele não se sentar pesadamente do outro lado da cama e atirar com as botas sem pensar que por baixo dormiam vizinhos: Estava do seu lado da cama e...Pôs as mãos dentro da sua camisa de dormir e... fez o que não lhe foi muito confortável.Sabia o nome da coisa, porque tinha dito veemente e repetidamente NÃO.Honoré de Balzac dizia «Pode-se perdoar, mas esquecer, isso, é impossível.» Sandrine tentava esquecer, tentava ferozmente esquecer, sem se dar conta que nem perdoar conseguia. Talvez o que mais lhe custava desculpar fosse aquele momento, logo no início, quando se debateu, fechou as pernas e disse, “NÃO FAÇAS ISSO”, a valente chapada na cara e aquela voz bagacenta a ordenar: “ESTÁ QUIETA!”Está quieta...?Como se não fosse dona do seu ser, do seu querer ou não querer.Não se ajeitou, tão pouco lhe facilitou a coisa. Parvamente recorda quando, desesperada, olhou para cima e na escuridão do quarto viu o neon da luz do despertador e se recordou que teria de mudar a hora.Depois...Quando ele saiu para o toillete, rolou na cama e limpando as lágrimas com o pulso dorido, recuou a hora do despertador. Esboçou um sorriso tonto e tentou evadir-se para o campo ensolarado lilás da plantação de alfazema que havia na propriedade onde os pais trabalhavam na sua França enquanto apertava o relógio contra si. Foi a primeira vez que lhe ocorreu esse pensamento a que se agarrava até hoje: A hora do nada. Porque se não existira, logo, nada se passara!Havia ocasiões em que ponderava e a culpa era dela. Era um dever conjugal a que se esquivava frequentemente quando o Ruben bebia e, verdade se diga, recusava muito. Não suportava aquele cheiro a entrar-lhe pelas narinas e a bloquear-lhe a líbido. Era mais fácil fingir que dormia e dormia muito.Nunca falaram sobre aquela noite.Ele solicitava e ela não se debatia. Assim. Função cumprida. Todos os dias.Até que uma noite – daquelas em que Sandrine agora dormia mesmo muito com uns comprimidos que, entretanto, comprara – acordou e não o sentiu na cama a seu lado.Nessa noite em vez de sentir alívio por ele não estar a seu lado... gelou.As meninas.Sorrateiramente foi espreitar o que podia estar a acontecer, mas um sonoro sopro anal vindo do toillete anunciou a localização de Ruben.
Entrou no quarto das meninas e foi beijar e aconchegar uma a uma no soninho descansado. Cheirinho a Alfazema. Perfumava-as sempre depois do banho antes de as deitar. E se... Não. NÃO!Sabia que no bairro havia uma Associação de Imigrantes. Sabia que eram bastante activos com a população em perigo, não iriam negar ajuda a uma mãe com três filhas, como tinha conhecimento não negavam a ninguém. Uma vizinha cabo-verdiana perto dela andava a ser ajudava por esses senhores da associação, a outra família lá além também e percebia claramente tanto empenho e dedicação.Deu duas voltas à chave do quarto das meninas e deitou-se na cama com a mais pequenita. Inspirou bem profundamente o ar impregnado de lavanda.Não pensou no que tinha de comprar na mercearia na manhã seguinte: Mentalmente soube onde iria assim o sol amanhecesse.
Published on October 24, 2020 16:00
May 15, 2020
novos livros para a sua mesa de cabeceira
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Published on May 15, 2020 01:21
May 12, 2020
A mal contada fábula da cigarra e da formiga
Na quarentena dei comigo a pensar na opinião que sempre tive acerca da forma como se conta a fábula da cigarra e da formiga.
Povoámos a nossa mente com admiração, ao termos sempre escutado como a sofrida formiga acartava zelosa e diligentemente um respeitável peso para a sua fraca compleição, carregando dia e noite as provisões para o seu formigueiro, servindo abnegadamente a comunidade.
Em contraponto, sempre nos foi incutido um certo desdém pela conduta boémia da cigarra que preguiçando pelos prados cantava dia e noite.Uma das recordações mais antigas de raciocínio em tenra infância que tenho, prende-se com esta fábula.
Observante dos bichinhos que me rodeavam e com a imaginação sedenta de histórias, guardo a lembrança das quentes noites de Agosto, a tentar conciliar o sono, deleitando-me a escutar os sons da natureza, encantada com o estridular das cigarras a cortar o silêncio profundo e a embalar os meus sonhos. Eram as minhas cantoras favoritas! Talvez por isso nunca compreendia o final daquela história em que só a formiga era louvada pelo seu árduo trabalho.
Hoje compreendo. Fui educada numa família que valorizava as artes. Tive o privilégio de crescer rodeada de livros que o meu pai me incentivava a ler, ao som de discos de vinil que pavimentaram a minha vida, ou o deslumbramento sentido da primeira vez que a minha mãe me levou à Gulbenkian assistir ao bailado Quebra-nozes. Esta infância criativa marcou indelevelmente a minha personalidade. Penso mesmo que os teatrinhos que encenava para toda a embevecida família, foram certamente as primeiras histórias que criei, tão pequenina, imaginando-as ainda antes de as saber escrever!
Outro dia perguntaram-me o que quis ser em miúda quando crescesse. Depois dos sonhos infantis de bailarina e veterinária, eu sempre quis escrever. No entanto, já adulta, sempre que escrevi tive outros empregos paralelos para poder pagar contas.
Sempre considerei que o trabalho árduo da cigarra tem tanto valor quando o da formiga. Quantas vezes os artistas são intitulados de sonhadores, no entanto, sabem respirar fundo, descer à terra e têm outros e diferentes sofridos empregos para se sustentarem e poderem alimentar os seus sonhos. É uma dicotomia difícil de ser explicada ou conciliada.
Se há lição que escuto dizerem deste tempo que todos tivemos de nos confinar em quarentena é que nos teria sido incomensuravelmente mais complicado se não tivéssemos acesso a um livro que nos fez sair de casa sem sair do sofá, escutado uma música que nos fez dançar sozinhos, assistido a um filme que balançou as nossas emoções e que nos fez rir, chorar.
Impedidos de formigar para os nossos empregos vimos à nossa volta tanta criatividade cigarrear - do vídeo engraçado na internet ao pão no forno.
O poeta brasileiro José Paulo Paes sempre foi um apaixonado pelos livros.
Após ter estudado química e trabalhado durante anos num laboratório farmacêutico, um dia resolveu escrever poesia, inicialmente para adultos, só depois para crianças. Ao abandonar a rigidez da química nos 25 anos seguintes entregou a sua alma à edição de livros e traduções. Esqueceu-se de formigar pela química e entregou-se à magia de cigarrear pela poesia infantil, aprendeu a brincar com as palavras e escreveu um mundo maravilhoso para as crianças viverem.
"Enquanto a formiga
Carrega a comida
Para o formigueiro,
A cigarra canta,
Canta o dia inteiro.
A formiga é só trabalho.
A cigarra é só cantiga.
Mas sem a cantiga
da cigarra
que distrai da fadiga,
seria uma barra
o trabalho da formiga."
José Paulo Paes
Se "A Cigarra e a Formiga" é uma das fábulas atribuídas a Esopo na Grécia antiga ("O Gafanhoto e Formiga" no original) e só veio a ser popularizada mais tarde pelo francês Jean de La Fontaine, eu penso que em 1989 o poeta José Paulo Paes trouxe-a finalmente à sua verdadeira dimensão: a união, a compreensão, a aceitação e o respeito pela diferença do labor do outro.
Afinal todos são especializados, todos são fruto de muito empenho, de horas incalculáveis de dedicação ao seu trabalho, seja ele manual, intelectual ou artístico.
Formigas e cigarras de mãos dadas entreajudando-se na esperança de um mundo melhor. Talvez, assim - talvez só assim - se possa cumprir o jargão estafado que tanto se ouviu na quarentena de que vamos todos ficar bem.
Povoámos a nossa mente com admiração, ao termos sempre escutado como a sofrida formiga acartava zelosa e diligentemente um respeitável peso para a sua fraca compleição, carregando dia e noite as provisões para o seu formigueiro, servindo abnegadamente a comunidade.Em contraponto, sempre nos foi incutido um certo desdém pela conduta boémia da cigarra que preguiçando pelos prados cantava dia e noite.Uma das recordações mais antigas de raciocínio em tenra infância que tenho, prende-se com esta fábula.
Observante dos bichinhos que me rodeavam e com a imaginação sedenta de histórias, guardo a lembrança das quentes noites de Agosto, a tentar conciliar o sono, deleitando-me a escutar os sons da natureza, encantada com o estridular das cigarras a cortar o silêncio profundo e a embalar os meus sonhos. Eram as minhas cantoras favoritas! Talvez por isso nunca compreendia o final daquela história em que só a formiga era louvada pelo seu árduo trabalho.
Hoje compreendo. Fui educada numa família que valorizava as artes. Tive o privilégio de crescer rodeada de livros que o meu pai me incentivava a ler, ao som de discos de vinil que pavimentaram a minha vida, ou o deslumbramento sentido da primeira vez que a minha mãe me levou à Gulbenkian assistir ao bailado Quebra-nozes. Esta infância criativa marcou indelevelmente a minha personalidade. Penso mesmo que os teatrinhos que encenava para toda a embevecida família, foram certamente as primeiras histórias que criei, tão pequenina, imaginando-as ainda antes de as saber escrever!
Outro dia perguntaram-me o que quis ser em miúda quando crescesse. Depois dos sonhos infantis de bailarina e veterinária, eu sempre quis escrever. No entanto, já adulta, sempre que escrevi tive outros empregos paralelos para poder pagar contas.
Sempre considerei que o trabalho árduo da cigarra tem tanto valor quando o da formiga. Quantas vezes os artistas são intitulados de sonhadores, no entanto, sabem respirar fundo, descer à terra e têm outros e diferentes sofridos empregos para se sustentarem e poderem alimentar os seus sonhos. É uma dicotomia difícil de ser explicada ou conciliada.
Se há lição que escuto dizerem deste tempo que todos tivemos de nos confinar em quarentena é que nos teria sido incomensuravelmente mais complicado se não tivéssemos acesso a um livro que nos fez sair de casa sem sair do sofá, escutado uma música que nos fez dançar sozinhos, assistido a um filme que balançou as nossas emoções e que nos fez rir, chorar.
Impedidos de formigar para os nossos empregos vimos à nossa volta tanta criatividade cigarrear - do vídeo engraçado na internet ao pão no forno.
O poeta brasileiro José Paulo Paes sempre foi um apaixonado pelos livros.
Após ter estudado química e trabalhado durante anos num laboratório farmacêutico, um dia resolveu escrever poesia, inicialmente para adultos, só depois para crianças. Ao abandonar a rigidez da química nos 25 anos seguintes entregou a sua alma à edição de livros e traduções. Esqueceu-se de formigar pela química e entregou-se à magia de cigarrear pela poesia infantil, aprendeu a brincar com as palavras e escreveu um mundo maravilhoso para as crianças viverem.
"Enquanto a formiga
Carrega a comida
Para o formigueiro,
A cigarra canta,
Canta o dia inteiro.
A formiga é só trabalho.
A cigarra é só cantiga.
Mas sem a cantiga
da cigarra
que distrai da fadiga,
seria uma barra
o trabalho da formiga."
José Paulo Paes
Se "A Cigarra e a Formiga" é uma das fábulas atribuídas a Esopo na Grécia antiga ("O Gafanhoto e Formiga" no original) e só veio a ser popularizada mais tarde pelo francês Jean de La Fontaine, eu penso que em 1989 o poeta José Paulo Paes trouxe-a finalmente à sua verdadeira dimensão: a união, a compreensão, a aceitação e o respeito pela diferença do labor do outro.
Afinal todos são especializados, todos são fruto de muito empenho, de horas incalculáveis de dedicação ao seu trabalho, seja ele manual, intelectual ou artístico.
Formigas e cigarras de mãos dadas entreajudando-se na esperança de um mundo melhor. Talvez, assim - talvez só assim - se possa cumprir o jargão estafado que tanto se ouviu na quarentena de que vamos todos ficar bem.
Published on May 12, 2020 01:21


