Bruno M. Franco's Blog, page 2
March 15, 2021
Teaser #4 | "SEGREDO MORTAL"Em breve, o segredo será reve...
Em breve, o segredo será revelado. "Segredo Mortal" nas livrarias a 25 de março.
Pré-venda no site da Cultura Editora com direito a dedicatória personalizada:
https://culturaeditora.pt/products/segredo-mortal
Boas leituras!
Bruno M. Franco
March 11, 2021
Teaser #3 | "SEGREDO MORTAL"Em breve, o segredo será reve...
Teaser #3 | "SEGREDO MORTAL"
Em breve, o segredo será revelado. "Segredo Mortal" nas livrarias a 25 de março.
Pré-venda no site da Cultura Editora com direito a dedicatória personalizada:
https://culturaeditora.pt/products/segredo-mortal
Boas leituras!
Bruno M. Franco
March 8, 2021
Teaser #2 | "SEGREDO MORTAL"Em breve, o segredo será reve...
Teaser #2 | "SEGREDO MORTAL"
Em breve, o segredo será revelado. "Segredo Mortal" nas livrarias a 25 de março.
Pré-venda no site da Cultura Editora com direito a dedicatória personalizada:
https://culturaeditora.pt/products/segredo-mortal
Boas leituras!
Bruno M. Franco
March 7, 2021
Teaser #1 | "SEGREDO MORTAL"Em breve, o segredo será reve...
Teaser #1 | "SEGREDO MORTAL"
Em breve, o segredo será revelado. "Segredo Mortal" nas livrarias a 25 de março.
Pré-venda no site da Cultura Editora com direito a dedicatória personalizada:
https://culturaeditora.pt/products/segredo-mortal
Boas leituras!
Bruno M. Franco
March 5, 2021
Revelação da Capa do livro "Segredo Mortal".É com enorme...

Revelação da Capa do livro "Segredo Mortal".
É com enorme orgulho e emoção que apresento o meu livro, "SEGREDO MORTAL".
Estou muito orgulhoso desta capa. É bastante atrativa e chamativa. Espero que faça muito sucesso quando estiver nas livrarias.
A capa é da autoria da Vera Braga. Os meus parabéns. Está maravilhosa.
Não podia ter tido mais sorte!
O lançamento do livro será dia 25 de março. Vamos a isso!
Bruno M. Franco
December 20, 2020
CONTO NATAL 2020 All I want for Christmas is you...

CONTO NATAL 2020
All I want for Christmas is youuu! Sempre que ouço esta música pela primeira vez no início de dezembro, ou em finais de novembro como foi o caso deste ano, sei que chegou o Natal. É a música mais icónica desta época festiva e funciona como o sinal de partida para a época natalícia. É uma música adorada por praticamente todos, nem que seja pelas memórias que as pessoas associam a esta época sempre tão quente, tão cheia de amor, tão cheia de reuniões familiares, tão cheia de prendas e tão cheia de doces e iguarias deliciosas que aguardam onze meses para serem feitas e provadas novamente. Por muito que haja quem se farte desta música ao fim de um ou dois dias, a verdade é que aquela primeira vez, aquela primeira nota que aponta imediatamente para a grande Mariah Carey, rouba sempre um sorriso e um vislumbre feliz do que está para vir uma semana antes do final do ano. Mas não a mim. Sempre que aquele primeiro sininho da música surge no rádio, ou na televisão, ou em alguma loja, o meu primeiro pensamento é sempre o mesmo: Lá vamos nós outra vez. Já começou a pior época do ano. E vocês perguntam-se que estapafúrdica razão posso eu ter para pensar isto, tendo em conta que sou tão nova, ainda uma rapariga de treze anos. Certamente que me diriam que devia ficar radiante por saber que ia receber muitas prendinhas e comer muitos doces até enjoar ou vomitar, como acontece a alguns amigos meus que não têm qualquer autocontrolo no que toca a doces. Eu percebo a vossa admiração. Juro que sim. Mas, para mim, é um hábito sentir um aperto no coração e uma tristeza profunda sempre que ouço a icónica música natalícia. É um dado adquirido. Eu nunca soube o que é um Natal em família. Um Natal assim quentinho, aconchegado, cheio de coisas boas para comer e conversar. Não. Para mim, o Natal é sinónimo de tristeza, de sofrimento e de afastamento. Nunca percebi o porquê de as pessoas adorarem tanto o Natal, de ficarem felicíssimas quando estamos no último mês do ano. Adorava perceber. Adorava sentir isso. A sério que sim. No entanto, eu até preferia ter aulas nessa altura só para me abstrair do que se passa em minha casa. A partir do momento em que se ouve a dita música, ou quando se vê a primeira decoração natalícia, o meu pai fecha-se em copas, fecha-se sobre si mesmo e só volta a sair de lá após a passagem de ano. Fica irritadiço, zangado, não fala comigo e ausenta-se de casa muitas horas sem dizer para onde vai. Desde que nasci que nunca passei um dia de Natal com o meu pai. Sou apenas eu, o meu irmão mais novo e a minha mãe. Mas sem o meu pai nem conseguimos celebrar como deve ser. A nossa casa é a única do bairro que não tem o mínimo enfeite de Natal. Até os Gonçalves do segundo esquerdo, cuja única “decoração” de Natal é colocarem um cartão a dizer «Feliz Natal» na sua porta, como se todos passassem por lá para o ver, tinham mais espírito natalício do que nós. Honestamente, eu adoro decorações de Natal. Adoro como as ruas se iluminam, ficam cheias de luzes de várias cores, ficam mais acolhedoras perante o frio gelado que se sente sempre por estes dias. Um dos meus sonhos é ver a minha casa recheada de cor, de luz, de árvores de natal em miniatura, vários Pais Natal ao longo dos móveis, vários azevinhos, velas vermelhas e, claro, uma majestosa e pesadamente decorada árvore de natal, que seria um trabalho de equipa de nós os quatro. Juntos. No entanto, o meu Natal é ver o meu pai rabugento, maldisposto, sempre longe de casa, a reclamar a cada anúncio ou música de Natal e, claro, sem haver qualquer espécie de decoração para entrar no espírito. No dia 25, o meu pai desaparece sempre antes de eu me levantar e só chega à noite, quando já estamos todos a dormir no sofá a ver televisão. Claro que já perguntei à minha mãe várias vezes, principalmente quando era mesmo pequenina, por que razão não celebramos o Natal e por que razão o pai desaparece sempre nesta altura. A minha mãe abraçava-me sempre que lhe fazia a pergunta. Depois, dava-me um beijo na cabeça e afagava-me o cabelo, antes de me responder condescendentemente: – São coisas do teu pai e temos que respeitar, filha. A partir dos nove anos deixei de perguntar e resignei-me a ter Natais cinzentos, sem o meu pai, sem tudo o que os outros tinham. Nunca lhe perguntei diretamente, receando uma explosão da parte dele. Às vezes até uma simples brincadeira do meu irmão levava-o a gritar com ele e acabava sempre por se ir embora uma hora ou duas ao café. Mas agora, já mais crescida, sinto uma comichão que não me quer largar. Estou farta de ter Natais assim, sem alegria nenhuma, enquanto os meus amigos partilham fotografias e vídeos lindíssimos da família e da casa cheios de alegria e amor. Por isso, este ano, ao ouvir a primeira nota da música mais conhecida de Natal, decido fazer um desvio no meu caminho após o final deste dia de aulas. Apanho o autocarro e vou ter a casa dos meus avós paternos. Sou recebida com alguma surpresa pelos meus queridos e fofos avós, que é logo posta de lado perante o agrado e felicidade com que eles me abraçam e me apaparicam. Não sei como é que os avós fazem, mas há sempre comida pronta a servir. Nem dois minutos passaram, já tenho uma sanduíche mista na mão, um iogurte e uma pequena árvore de natal de chocolate. Acho que as pessoas quando se tornam avós devem ganhar poderes mágicos para fazerem coisas com tanta facilidade e para saberem sempre o que precisamos para nos sentirmos bem. Vou adorar ser avó! Depois de comer a sanduíche e o iogurte, guardei o chocolate para o caminho de volta e fiz a pergunta que me tinha levado ali. – Porque é que o pai odeia o Natal? A reação deles foi igual à da minha mãe: tenebrosa e receosa. A minha avó tenta sorrir e pergunta se eu quero outro iogurte ou algo para comer. Eu digo que já ia ouvir da minha mãe por comer tão perto do jantar; não quero mais problemas. Só quero saber o que está por trás de toda a tristeza e fúria que o meu pai sente para com o Natal. Só isso. Já chega de me esconderem o verdadeiro motivo. Não sou nenhuma criança. Sou uma adolescente e tenho o direito de saber. Acho que consigo lidar com o que quer que seja a resposta. Eles ficam visivelmente aflitos, sem saber o que dizer. Olham um para o outro e parecem comunicar através do olhar, como decerto conseguem fazer com naturalidade. Após tantos anos de casados, conhecem-se tão bem que nem precisam de dizer o que pensam para se entenderem. O amor dos velhotes é lindo, há que admitir. Sentados assim, de mãos dadas, são mesmo um casal bonito. No entanto, vejo que, neste caso, não estão a chegar a um entendimento e passam para os sussurros, dos quais consigo captar algumas partes. – Ela já é crescida… – …pode não saber o que fazer… – …merece saber, é do pai dela que… – …estragar tudo? – …temos de confiar que… Mais uns sussurros são ditos sem que eu perceba e eles calam-se subitamente. Já tomaram uma decisão. Olham para mim com ternura e aceitam contar-me o que aconteceu. O meu pai tinha uma irmã gémea, mas tinham a particularidade de fazerem anos em dias diferentes. Isto porque ele nasceu já no final da noite e a irmã foi pouco depois, mas já tinha passado da meia-noite. Eram muito chegados, tal como se espera que os gémeos sejam. Nunca se largavam e estavam sempre juntos. Sempre que chegava o inverno, passavam horas e horas a fazer uma atividade que ambos amavam e que até tinham bastante jeito: patinagem no gelo. Eles costumavam patinar juntos quase todos os dias da época natalícia, e chegaram a ser convidados por equipas federadas de patinagem artística no gelo. Mas eles nunca aceitaram. Achavam que a competição ia estragar aquilo que tinham, que era puro divertimento. Eles davam espetáculos sempre que se punham a patinar naquelas pistas de gelo que há nos centros comerciais. Quando os meus avós iam às compras de Natal, em que demoravam mais de uma hora e meia, bastava deixá-los na pista de gelo que o meu pai e a gémea nem davam pelo tempo passar. Patinavam, patinavam, patinavam. Os meus avós nem percebiam como é que eles não se fartavam daquilo. Mas a verdade é que nunca se fartaram. Uns anos depois, começaram a treinar rotinas para certas músicas e dançavam na pista de gelo, atraindo a atenção de imensa gente, que ficava ali só para os ver deslizar graciosamente ao som da música e sempre extremamente coordenados. Era algo lindo de se ver e os meus avós adoravam. Era o que dava cor ao Natal deles. Era a melhor tradição que tinham em família. – Se o meu pai era assim, por que razão mudou tão drasticamente? A minha avó continua o relato, dizendo que o último Natal feliz que eles tiveram foi quando o meu pai tinha mais ou menos a minha idade, treze ou catorze anos. Nesse inverno, foi feito um desafio de caráter amador a todas as pessoas: no fim de semana anterior ao Natal iria haver uma competição para o melhor dançarino no gelo. O meu pai e a irmã ficaram mais que radiantes com a notícia. Apesar de terem recusado os convites dos clubes, sempre tiveram curiosidade em saber o que realmente valiam na patinagem artística. Portanto, durante um mês eles treinaram e treinaram e treinaram. De tanto os ver, até a minha avó saberia executar a coreografia à primeira. Só faltava era saber patinar como eles sem ir de rabo ao gelo. Então, na noite da competição, eles arrasaram e ganharam com notoriedade. Venceram a taça. Foi um momento lindo, magnífico. Eles estavam mesmo felizes. Os meus avós creem que foi o dia em que viram o meu pai mais feliz em toda a vida. Nesta altura do relato, os rostos deles, que já estavam cheios de lágrimas pelas recordações bonitas do passado, ensombram-se quando prosseguem a história. Depois de entregarem a taça ao meu pai e irmã, o júri pediu para que eles voltassem a dançar. Era um género de prémio adicional, poder mostrar o talento deles novamente para gáudio de todos. Claro que eles aceitaram a proposta e voltaram a executar toda a coreografia. No entanto, perto do final, havia um momento em que ela se apoiava no meu pai e ele ajudava-a a saltar, fazendo com que ela fizesse um pequeno voo, antes de aterrar e prosseguir a dança de forma harmoniosa e fluída como lhes era característico. Eles executaram esse movimento como tantas outras vezes. No entanto, desta vez, ao pousar os pés no gelo, a gémea do meu pai não apoiou o pé bem e acabou por torcê-lo gravemente. Interromperam ali a dança e foram para o Hospital. O mais certo era ela ficar umas semanas a andar de muletas. Mas o problema não era esse. Tomara que fosse. O problema foi que, ao fazerem uma radiografia à perna para perceberem os danos causados pela queda, detetaram algo que foi confirmado com outros exames que ela fez a seguir: um osteossarcoma. Portanto, descobriram que ela tinha um tumor nos ossos. Um tumor maligno. Fico sem palavras, embargada de emoção. A minha tia tinha a minha idade quando soube que tinha cancro. Deixo os meus avós rumarem até ao final da história, o rosto deles desfeito pela tristeza e mágoa. Os tratamentos prolongaram-se durante um ano e, na altura do Natal seguinte, a gémea do meu pai estava com o sistema imunitário muito debilitado e acabou por contrair uma infeção hospitalar. Numa semana piorou drasticamente, faleceu e foi enterrada. E, como eu já estava a calcular, calhou na semana do Natal. A minha tia, que nunca conheci, foi enterrada três dias antes do Natal daquele ano. Desde então, o meu pai nunca mais foi o mesmo no Natal. Nunca mais quis celebrá-lo e recusava-se a fazê-lo sem a irmã. Dizia que o Natal sem ela não era Natal. Não era nada. Os meus avós bem que tentaram convencê-lo do contrário, mas o meu pai nunca mais mostrou o mínimo interesse. Começou a desaparecer nessa altura e eles nunca sabiam para onde ia. O certo é que voltava são e salvo e eles nunca lhe faziam perguntas. Respeitavam a dor dele, que também era a deles, obviamente. Afinal de contas, os meus avós eram os pais dela e também sofreram uma perda que ninguém deve passar na vida. Mas eles aguentaram o forte pelo meu pai. Pelos vistos, ele não quis saber e nunca deu valor a esse esforço. Os meus avós explicam que teria sido fácil para eles também enveredarem pelo caminho mais negro do luto. Mas não o fizeram pelo meu pai. Queriam que ele fosse feliz apesar do que lhes tinha acontecido. Só que ele não conseguiu sair desse caminho negro. Nunca o conseguira. Todos os Natais, era para lá que ele voltava. Vou para casa a lamentar o azar do meu pai. Imagino o quanto deve ter doído perder a irmã desta forma, principalmente uma irmã gémea e com quem partilhava tanta coisa na vida. Falo disso com a minha mãe assim que chego a casa e ela amaldiçoa os sogros por se terem descosido, mas aceita conversar comigo sobre isso. A resposta dela, em jeito de conclusão da situação, é a mesma dos meus avós: que o meu pai volta sempre para esse caminho negro todos os Natais e nunca descobriram uma forma de o tirar de lá. Ao que eu respondo, tendo uma ideia brilhante: – O problema é que vocês nunca viram o problema dele da perspetiva certa. – Como assim, filha? – Vocês pensaram sempre em como o podiam tirar desse caminho negro em que ele se enfiou quando a irmã morreu, certo? – Certo. – Pois bem, a vossa abordagem está errada. Nós não temos de o tirar do caminho negro. Temos de o iluminar para que essa negrura desapareça. A minha mãe fica calada e subitamente emocionada. Pergunta-me se tenho alguma ideia em mente. Sorrio. Claro que tenho.
Um mês depois, estamos a dois dias do Natal. Apesar de trombudo e de ter recusado todas as nossas propostas até então para nos divertirmos, conseguimos convencer o meu pai a ir connosco ver um espetáculo único no Coliseu Comendador Rondão Almeida, em Elvas. É um espetáculo infantil que o meu irmão anseia ver há meses. Apesar de ter aceite, o meu pai diz que só vai porque não quer que a minha mãe tenha de conduzir quase quatro horas seguidas para Elvas. Ia dividir a viagem com ela, mas depois ficaria cá fora num bar qualquer enquanto eles assistiam ao espetáculo musical. Não é bem isso que eu quero, mas já é alguma coisa. A viagem decorreu em silêncio. O meu pai, sempre sério e carrancudo, nunca esteve para conversas. Quando estacionamos nas imediações do Coliseu de Elvas, depois de almoçarmos rapidamente num restaurante à entrada da cidade, o meu pai diz que vai ficar ali num bar próximo, ao que eu respondo que não me importo que ele faça isso, desde que nos leve aos nossos lugares. Nunca se sabe o que pode acontecer. Está ali tanta gente… E é verdade. Estão imensas pessoas na rua, em redor do Coliseu, ansiosas para entrar. Mas eu tenho bilhetes VIP que nos possibilitam entrar antes de todos os outros. O meu pai acredita na minha conversa e lá nos acompanha ao interior do Coliseu, onde os funcionários do local recebem-nos com muita atenção e carinho. Antes de entrarmos no recinto do Coliseu, um dos funcionários pede para ver a identificação do meu pai e fê-lo ficar para trás enquanto leva o seu tempo a ver o cartão de cidadão. Quando termina e o deixa prosseguir caminho, já nós desaparecemos de vista. O meu pai fica confuso, sem saber para onde ir. Um funcionário muito prestável aparece ao seu lado e pergunta se pode ajudar. O meu pai mostra os bilhetes falsos e o funcionário acompanha o meu pai até chegarem a uma porta que dá acesso ao recinto. Um pouco receoso, faz força no puxador da porta e esta abre-se. Entra no recinto e fica pasmado a olhar em frente, para nós. O que o meu pai não sabe, porque desliga sempre na altura do Natal, é que o Coliseu de Elvas alberga, desde 2009, a maior pista de gelo do país no Natal. São oitocentos metros quadrados de gelo que encantam mais de vinte mil patinadores por ano. A razão para estar tanta gente no exterior e ninguém cá dentro, é porque a pista só abre a partir das dezasseis horas. Temos quinze minutos só para nós, resultado de um acordo feito com a direção do Coliseu após um e-mail que lhes enviei semanas antes a explicar a história do meu pai e o que tencionávamos fazer: salvar este Natal. Haverá melhor altura para fazer um milagre? E é por isso que o meu pai, ao passar a porta, depara-se com a maior pista de gelo da Península Ibérica totalmente vazia. À entrada da pista estou eu, de mãos dadas com o meu irmão, a minha mãe e os meus avós, que vieram mais cedo para prepararem tudo sem levantar suspeitas ao meu pai. O meu pai avança sem compreender. Pergunta-me o que se está a passar e eu aponto para um quadro colocado à entrada da pista de gelo, atrás de nós. No quadro constam várias imagens do meu pai a patinar com a sua irmã em miúdos. São imagens lindas, nostálgicas, que mostram o meu pai feliz como nunca o vi. No centro do quadro está escrita uma mensagem que a minha tia terá dito ao meu pai nos seus últimos dias de vida e que foi escutado pelo meu avô, que nunca a esqueceu: «Só vivemos uma vez, maninho. Não a desperdices com coisas fúteis e inúteis e foca-te na família. A família é o melhor que temos. Aprendi isso da pior forma, agora que me vejo privada de vocês. Por favor, maninho, cria a tua família e faz dela o teu mundo todo. Porque tu foste o meu mundo e não podia ter sido mais feliz.» Aproximo-me do meu pai com uma prenda embrulhada em papel vermelho com árvores de natal. O meu pai está com os olhos a brilhar e olha para mim, sem compreender nada do que se passa. Estendo-lhe o presente e ele pega nele com cuidado. – Abre, pai. O meu pai desembrulha o presente, avistando uma caixa de cartão. Abre a caixa e é então que vejo o meu pai chorar pela primeira vez, os olhos vermelhos e as narinas a dilatarem. Do interior, retira duas botas para patinar no gelo. As mesmas que ele usava em miúdo, quando tinha a minha idade. Os meus avós dizem que ele não cresceu desde os catorze anos, pelos que ainda lhe deviam servir. E servem. De botas calçadas e de olhar incrédulo, o meu pai aproxima-se da pista de gelo que está toda iluminada com luzes brilhantes e bonitas. Entramos com ele e vejo que fica surpreendido por estarmos todos preparados para patinar. Com ele. Ao seu lado. Ao fim de uns minutos aos círculos, decido dar-lhe a minha segunda prenda. Estendo a mão ao meu pai e ele recebe-a com hesitação. O resto da família afasta-se para nos dar espaço. Eu e o meu pai deslizamos de mãos dadas pelo gelo com calma e suavidade. Até que, de repente e sem aviso, uma música surge das colunas de som e preenche o espaço com a sua nostalgia natalícia. É a música que até ao início deste Natal odiava ouvir, mas que agora faz o meu pai chorar por ter sido a música que ele e a irmã gémea utilizaram para dançarem na pista de gelo pela última vez. A coreografia deles começava com a minha tia a fazer uma pirueta seguida de um círculo em torno do meu pai. Largo a mão dele e executo os mesmos movimentos, como se o transportasse vinte anos no passado. Assim que termino esses movimentos e me junto a ele novamente, ele já percebeu a minha ideia e prossegue, comigo, a coreografia deles como se nunca a tivesse deixado de a treinar. A verdade é que passei o último mês a treinar a coreografia deles através dos vídeos que os meus avós ainda tinham. E valeu a pena. A chorar como nunca o vi, o meu pai dança comigo ao som de Mariah Carey, ao mesmo tempo que as bancadas vão enchendo com as pessoas que vão patinar a seguir a nós. Eram centenas. E ficam a ver-nos dançar. No final, quando salto e continuo a dança sem nenhum percalço, para grande alívio do meu pai, as pessoas aplaudem de pé e gritam em uníssono com a música: – All I want for Christmas is youuu! Abraço o meu pai no final e ele agarra-me com força, bem apertada no seu peito, levantando-me do chão. O abraço fica completo a seguir, quando a minha mãe, irmão e avós se juntam a nós. Ficamos abraçados enquanto as pessoas aplaudem, cientes de que está a acontecer um momento de família muito bonito, mas sem perceberem a profundidade do que se está a passar. Começo a chorar e olho para o rosto molhado do meu pai, que está a dizer o quanto tem saudades da irmã e como lamenta o que nos fez sofrer todos estes Natais. Eu dou-lhe uma festinha no rosto e tento sorrir. Com aquela música ainda na minha cabeça, só penso numa coisa para lhe dizer. – Por favor, nunca mais fujas de nós no Natal. Eu nem quero presentes nem nada disso. Quero apenas a tua presença. – Aponto para cima, a indicar a música. – Só te quero a ti para o Natal, pai. Mais nada. Abraçamo-nos novamente com força. Nunca mais iria perder o meu pai na negrura do seu luto. Nunca mais. Iluminei-lhe o caminho para não se perder novamente. Quando a pista começa a encher-se de patinadores entusiasmados e pouco equilibrados, passamos mais uma hora a patinar, a dar trambolhões e a rir muito uns dos outros. Como uma família normal. Nunca vi o meu pai tão feliz. Fico de coração cheio com o que vejo. Os meus avós, mais tarde, ainda emocionados, aproximam-se de mim e apertam-me com força. – Obrigado por trazeres o teu pai de volta. A partir desse ano, a tradição de patinarmos no gelo é retomada, para nunca mais ser quebrada. E foi assim que se deu mais um milagre de Natal. Feliz Natal a todos!
Bruno M Franco
December 22, 2019
Conto de Natal 2019Há quem diga que o Natal é a época ma...

Conto de Natal 2019 Há quem diga que o Natal é a época mais maravilhosa do ano e, quando Dezembro chega, até há quem agradeça a Deus por ser Natal novamente. Para Nico, um homem de quarenta anos, não podíamos estar mais perto da verdade. Nico tinha um espírito alegre e adorava socializar com as pessoas. Gostava de as conhecer, de saber os seus desejos, os seus receios, o que as deixava felizes.Nico nasceu para ser o Pai Natal. Filho de um casal que celebrava o Natal com toda o fervor e tradição, não era de admirar que o tivessem baptizado com um nome que se assemelhava ao do homem barrigudo com barba branca e roupa vermelha: Nicolau.Os Natais de Nico em criança eram sempre maravilhosos. A árvore de Natal era montada na manhã de 1 de Dezembro. Nico adorava abrir as caixas dos anos passados que continham todos os adereços natalícios. Sempre que desembrulhava uma caixa recordava-se dos anos anteriores e isso enchia-o de entusiasmo para o mês que se avizinhava. Depois de abertas as caixas, punham-se ao trabalho. Apesar de não parecer, os seus pais tinham todo um método para colocar as bolas e as fitas na árvore de forma a que, no final, ficasse deslumbrante. A Nico cabia a concretização de duas missões muito importantes: a de colocar a estrela no topo da árvore e a de acender as luzes. Quando o seu trabalho terminava, os três afastavam-se uns passos e, de braços cruzados, apreciavam a vista. Era naquele momento, com a árvore colorida e iluminada, que Nico acreditava na magia e no poder do Natal. Eles até fechavam as cortinas para que o brilho da árvore fosse resplandecente e magnífico. Quando era muito pequeno, a sua mãe pegava-o ao colo enquanto admiravam a árvore. Ali, agarrado à sua mãe com os seus braços a envolverem-no, era quando sentia que a vida era perfeita. Ali, no conforto do abraço e do amor do seu lar. A vida era sempre perfeita no Natal.Após o almoço, iam para a baixa de Lisboa e passeavam pelas ruas cheias de pessoas agasalhadas e nitidamente felizes pela época natalícia. Lanchavam num café algures até que, ao anoitecer, ocorria outro grande momento que o marcava sempre: o acender das luzes de Natal. Nico ficava de coração cheio ao passear pelas ruas iluminadas de Lisboa, de mãos dadas com os pais e a ser envolvido pelo Natal através das luzes, das pessoas e dos cheiros que tanto caracterizavam a cidade no último mês do ano. Era simplesmente esplêndido.Outra tradição que o empolgava imenso começara como um desafio do seu pai.- Nico, vou-te fazer um desafio.- Qual, papá?O pai, agachado ao lado do seu filho, envolvendo-o com o seu braço, lançou um olhar às pessoas que o rodeavam.- Deseja “Feliz Natal” ao maior número de pessoas que conseguires.- A todas as pessoas?- Às que passarem por nós.- Mas porquê, papá?- Já vais perceber, filho.Receoso, Nico foi desejando “Feliz Natal” a quem passasse por eles. Inicialmente, dizia de forma envergonhada e poucos eram os que o ouviam. Mas os que ele captava a atenção abriam-se num sorriso e retribuíam a felicitação com ternura. Afinal de contas, Nico era um menino rechonchudo com um rosto querido e ainda com laivos de bebé. Nico foi ganhando confiança até que, às páginas tantas, saltitava entre as pessoas a gritar “Feliz Natal”. Todas elas o felicitavam de volta e foi assim que Nico percebeu como o espírito natalício era verdadeiro e moldava as pessoas para serem mais altruístas, generosas e simpáticas. Era fantástico!Ainda assim, levantava uma questão: Por que razão as pessoas não eram assim tão bondosas o ano inteiro? Embebido em tanta magia natalícia, não foi de admirar que, a partir dos seus 30 anos, fizesse questão de ter um part-time digno de fazer os seus pais orgulhosos: era o Pai Natal num centro comercial. Numa das principais praças do centro comercial existia todos os anos uma pequena vila de natal, com bastantes atracções natalícias. A principal, claro, era o homem barrigudo e barbudo, vestido de vermelho e branco, sentado numa poltrona digna do seu estatuto de difusor de magia e alegria. Era uma figura do imaginário infantil e juvenil mas que todos os adultos sentiam sempre um carinho muito especial.Quando Nico começara a sua tradição de ser o Pai Natal, fizera-o com todo o entusiasmo e alegria que se pedia à figura que representava. Durante várias semanas, passava horas sentado a receber crianças no seu colo e a ouvir os seus desejos e a tirar a cada vez mais exigente e obrigatória fotografia. Quando não estava na poltrona, Nico passeava-se pelo centro comercial a espalhar sorrisos pelas pessoas com as suas brincadeiras. Era, realmente, a época mais maravilhosa do ano.Excepto este ano.Este ano, Nico não sentia essa mesma energia. Não sentia aquela atracção orgânica que o fazia sentir a necessidade de ser o Pai Natal. Não sabia como ia dizer aos seus pais que este ano não iria cumprir a sua tradição. Este ano, não.E porque não?, perguntariam eles.Nem Nico sabia o que responder. A verdade é que estava cansado do materialismo impingido nas crianças. Nos adultos, era normal. Já fizera as pazes com isso. Mas não com as crianças. As crianças não. Como era possível que todas as crianças que passavam pelo colo a pedir prendas de Natal, só soubessem pedir consolas, jogos e telemóveis? Ao menos que pedissem um livro de vez em quando, mas não. Era sempre os malditos telemóveis o principal pedido. Algumas eram más ao ponto de o chantagearem. Afirmavam que se não recebessem o telemóvel ou o jogo, que se portavam ainda pior e a culpa seria dele.Mesmo nos seus passeios com a vestimenta Natalícia, via crianças a berrar e a chorar lágrimas forçadas por não terem o que queriam. Meu Deus, teria Nico envelhecido assim tanto? Desde quando é que as crianças se tinham tornado assim? Onde estavam as outras crianças que queriam ter amigos ou irmãos para brincarem? Ou que queriam ser como este ou aquele ídolo?Apesar da sua vontade, não conseguiu dizer que não quando o seu pai lhe ligou a perguntar quando voltaria a ser o Pai Natal. Por isso, em Dezembro, lá foi Nico ouvir os desejos das crianças, disfarçados de ordens e imposições arrogantes. Nico limitava-se a abanar a cabeça e a dizer: "Sim, menino, vou trabalhar nas tuas prendas com os meus amigos elfos. Agora, porta-te bem!".Mas não era a mesma coisa. A chama ardente do Natal era, agora, uma pequeníssima labareda, como a de um fósforo.Mas, tal como o fogo, bastaria um pequeno sopro para a chama se propagar e aumentar de tamanho.O seu milagre aconteceu num dos seus passeios, já Dezembro ia adiantado.Estava Nico a passear pela rua, do lado de fora do centro comercial, um pouco cansado pela atenção que dera a tantas crianças que o exasperaram profundamente, quando sentiu um puxão na sua manga felpuda. Nico parou. Olhou para baixo. Uma criança pequena, com cerca de sete anos, olhava para si com um ar surpreendido. Era uma menina bonita, que tinha umas tranças longas e um gorro vermelho. Os seus lábios estavam abertos de surpresa e emoção. Nico conhecia aquele olhar, mas já não o via há dois ou três anos. Era um olhar de quem encontrava alguém que adorava imenso. A menina estava embasbacada por ver Nico, o Pai Natal.- Pai Natal, és tu?Nico olhou à volta, à espera de encontrar os pais da criança. Mas não viu ninguém.- Sim, sou eu mesmo. Em carne e osso! Oh oh oh!Nico tentara impregnar a sua voz com entusiasmo, mas falhara redondamente. O dia já ia longo e estava mesmo sem grande vontade de celebrar o Natal com pessoas que não conhecia. Só o desiludiam.- Estás triste, Pai Natal?Nico agachou-se e encarou a menina nos olhos. Ela parecia genuinamente confusa por ver o Pai Natal triste.- Um bocadinho. Sabes como é, muito trabalho. Há muitas crianças a quererem prendas e eu tenho de as fazer todas.- Os elfos não te ajudam?- Ajudam, mas eu faço a maior parte do trabalho.- Recebeste a minha carta, Pai Natal?- A tua carta?- Sim, a que escrevemos na escola. Eu escrevi uma carta com os meus desejos. A nossa professora disse-nos que tínhamos três desejos. Se calhar por isso é que tens tanto trabalho. Se cada menino pedir três desejos, são muitos mesmo. Não tens tempo para isso tudo. Mas eu posso ajudar-te, Pai Natal.Nico sorriu. Passou a mão pelo cabelo da rapariga.- Deixa-me adivinhar: pediste um telemóvel, uma consola de jogos e um jogo ou um computador? Talvez um tablet, até. Acertei?A menina parecia não compreender. Franziu a testa e abanou a cabeça.- Não. Não pedi nada disso.Nico ficou intrigado.- A sério?- A sério, Pai Natal.- Então conta lá o que me pediste?- Mas não viste a minha carta?- Ainda não, mas de certeza que um dos elfos ma vai entregar hoje. Diz-me lá, o que pediste?- Pedi só um desejo.- Só um? Então e os outros dois?- Só tinha uma coisa que queria. Não sei o que pedir mais. Mas agora já sei.- Sabes? O que é?- O meu segundo desejo vai ser que o Pai Natal seja feliz e que faça os outros felizes. Sem ti não há Natal, tens de estar animado.Nico riu-se para não chorar.- És muito atenciosa, menina. Como te chamas?- Carolina.- És uma menina muito especial, Carolina. Obrigado.Nico abraçou a rapariga e sentiu-se emocionar.- E qual foi o teu primeiro desejo?A menina olhou para trás e disse adeus a alguém. Nico seguiu a direcção do olhar da criança e viu um homem da sua idade a acenar de volta e a caminhar na direcção deles.- O meu primeiro desejo é que a minha mãe passe o Natal connosco. Ao ver o pai da menina com um sorriso de quem pede desculpa por a filha o poder estar a incomodar, Nico sentiu as lágrimas surgirem.- Vamos, Carolina.- Sim, papá.Nico ficou a vê-los afastarem-se, pai e filha de mãos dadas rumo a um Natal sem a mãe. Num impulso, caminhou atrás deles. Tinha de saber a extensão do pedido da menina. Que quereria ela dizer com aquele desejo? Estaria a mãe dela...?Não podia pensar nisso.Caminhou atrás deles até ao parque de estacionamento. Aí, ao vê-los entrar no carro, decidir segui-los de táxi. Entrou no primeiro que apareceu e tirou as suas vestimentas no veículo enquanto executava a perseguição. Aquela miúda era especial. Era uma raridade. Nico sentia uma necessidade tremenda de a ajudar. Só não sabia como.Ao pararem perto de um cemitério, o coração de Nico estacou. O carro onde eles iam foi estacionado e saíram calmamente. Encararam o cemitério. Nico mandou o táxi parar a uma distância segura e saiu, a sua roupa de Natal num saco que trazia sempre consigo no bolso.Ao longe, Carolina e o pai ajeitaram os casacos e atravessaram a rua. Para longe do cemitério. Mais aliviado, Nico continuou a segui-los por umas ruas até que eles pararam no destino. Foi então que o Pai Natal percebeu tudo. Nico regressou a casa, nessa noite, e delineou um plano para a noite de Natal. Tinha de resultar.No início da noite de 24, Nico abandonou o seu posto e foi trocar de roupa. Saiu do centro comercial e foi para a zona onde seguira a rapariga no outro dia. Chegou a uma praça de táxis e aguardou um pouco. Depois de esperar que alguns táxis seguissem caminho com os respectivos clientes, entrou no próximo da fila. Sentou-se no banco de trás. Colocou o saco com a roupa do Pai Natal ao seu lado e sorriu para a condutora, que o olhava pelo retrovisor, claramente aborrecida por trabalhar na noite de Natal.- Boa noite.- Boa noite, senhor. Para onde é a viagem?Nico deu-lhe a morada e não pôde deixar de reparar na surpresa contida da condutora. Mas ela manteve o seu ar profissional e não comentou.Seguiram caminho.- Então, a trabalhar na noite de Natal?A mulher, da idade de Nico, encolheu os ombros como quem diz que estava resignada.- Este ano teve de ser. Preciso mesmo do dinheiro. A minha filha entrou na escola o ano passado e são muitas despesas. Todo o dinheiro é bem-vindo.- Pois, não se pode dar ao luxo de não trabalhar.- Exactamente. E o senhor, tem filhos?- Não. Eu e a minha namorada estamos a tentar há um ano e até agora ainda nada. Mas não temos pressa. Apesar de eu ser quarentão, ela tem menos seis anos que eu, portanto temos tempo.- Isso não o preocupa?- Claro que estou um pouco ansioso por ser pai, mas tenho a certeza que vai correr tudo bem. E a sua filha, é uma boa rapariga?A mulher assentiu e o seu olhar brilhou tanto como as luzes de Natal.- É uma menina maravilhosa. Tive muita sorte.- É pena não passarem o Natal juntos.Ela pareceu ficar emocionada e não disse mais nada. Nico podia ver que lhe custava muito ficar longe da filha. Decidiu não insistir.Ao chegarem à rua que Nico fornecera como destino, a mulher encostou o carro à berma a parou, pronta para cobrar pelo trabalho.- Preferia se estacionasse o táxi, por favor. Ali, está um lugar vazio.A mulher ficou alarmada. Provavelmente, estaria a pensar que ele lhe queria fazer mal ou algo do género. Nico abriu os braços, como que se rendendo.- Por favor, confie em mim.A mulher estacionou o táxi e desligou o motor. Disse o preço a Nico e este estendeu-lhe uma mão cheia de notas chorudas. A mulher abriu os olhos e encarou Nico com surpresa. Não acreditava no que via.- Que é isso, senhor? Isso é bem mais do que lhe disse.- Quantas horas de trabalho teria de fazer para ganhar este valor?A mulher estava nitidamente confusa, mas começou a contar o dinheiro que Nico lhe deu e fez as contas.- Este dinheiro dá para umas sete ou oito horas, à vontade. Mas por que é que...?Nico apontou para aquele que sabia ser o prédio onde a mulher morava.- A Carolina e o seu marido estão à sua espera para celebrar o Natal. Aproveite. Feliz Natal.A mulher olhou para a janela correspondente à sua sala. Eram visíveis as luzes da árvore de Natal a piscar, animadas. O chamamento do calor e amor da família era forte. Irresistível. A mulher começou a chorar. Não acreditava na sorte que tivera. A bondade daquele homem era inacreditável. Tinha-lhe pago as horas de trabalho para que pudesse passar tempo com a sua família. Já imaginava os braços pequeninos de Carolina à volta do seu pescoço, a sua risada fofinha e querida, quando se virou para trás.- Mas eu não posso aceitar... - Começou por dizer, parando ao constatar que estava sozinha no táxi. O homem tinha ido embora. O dinheiro estava na sua mão. A sua família ali perto. A mulher tomou a decisão e saiu do veículo, correndo para casa, para os braços do marido e para a alegria e maravilha da filha, que não parava de dizer que o seu desejo de Natal se tinha realizado. Era tudo perfeito. No entanto, quando a noite acabou um pouco, recordou-se de algo.- Mas ainda me falta um desejo... Eu pedi dois desejos mas só um é que se realizou. - Disse a menina para os pais. Olhou para eles com um ar implorante. Os pais entreolharam-se durante uns momentos. Depois, sorriram e assentiram.Nico chegou a casa e passou um Natal extraordinário com a sua família. Tinha o coração quente pela felicidade que proporcionara a uma criança que era uma raridade nos tempos que corriam. O coração de Carolina ainda era puro, como deveria ser o coração de todas as crianças. Nico esperava que, quando tivesse um filho, também ele fosse assim. Pelo menos, Nico iria tentar passar a mensagem de bondade, altruísmo e simpatia em que ele tanto acreditava.Mas, actualmente, havia pouco disso.Ou será que Nico estava enganado?No dia 25, dia de Natal, Nico ia trabalhar algumas horas antes do jantar para entreter as pessoas que fossem passear no centro comercial, onde a maioria das lojas estava fechada excepto na restauração.Estava Nico no seu vestiário a preparar-se quando um colega surgiu bastante afogueado.- Que se passa, homem? Estás aí todo ofegante. Há algum incêndio ou quê?- Tens que ver isto. Veste-te! Vamos!Surpreso, Nico, já transformado em Pai Natal, caminhou para a praça principal. Antes de dobrar a última esquina, notou um certo burburinho que se sobrepunha à música ambiente natalícia que se espalhava por todo o centro comercial.Ao virar a esquina, deparou-se com a sua vila de Natal completamente lotada. Aliás, ele nem conseguia ver a sua poltrona. Dezenas, talvez centenas, de pessoas, vestidas com roupas e adereços alusivos ao Natal, encontravam-se em plena cavaqueira. Nico caminhou de forma insegura, incerto sobre o que se estava a passar. Quando se aproximou da multidão, as pessoas começaram a bater palmas e a gritar "Feliz Natal!" a plenos pulmões. Nico acenou e continuou a caminhar para a sua poltrona. Um corredor humano abriu-se no meio, furando o amontoado de pessoas. No final do corredor, antes da sua poltrona, estava uma menina com os seus pais. Nico reconheceu-os de imediato.- Olá, Carolina.- Olá, Pai Natal! Feliz Natal!Nico estava sem reacção. Sentia o seu fato a escaldar por toda a atenção a que estava a ser alvo.- O que se passa aqui?Foi a mãe de Carolina quem respondeu.- Pelos vistos, o Pai Natal ajudou a minha filha a realizar o seu desejo de Natal. Mas a verdade é que ela tinha dois desejos.Nico olhou para a menina, que tinha uns olhos brilhantes de alegria. Agachou-se e abraçou-a com força. Muita força mesmo. Aquela era definitivamente uma menina muito especial.- Fazer o Pai Natal feliz... - Murmurou Nico, recordando-se do segundo desejo.Voltou a erguer-se e sentiu a emoção a picar-lhe por trás dos olhos.A mãe do rapaz voltou a falar, toda ela emocionada:- Você ajudou a Carolina a realizar o primeiro desejo e nós... - Abriu os braços de forma a abarcar toda a vila do Natal. - Nós vamos realizar o segundo. Feliz Natal!De imediato, Nico começou a ser abraçado por crianças de todos os lados. Cada uma agradecia a ajuda e desejava-lhe um Feliz Natal. Ele não tinha mãos para tanta gente. Tantas mãozinhas pequeninas a agarrarem na sua roupa, a querer um pouco do Pai Natal para si, para lhe dar um beijinho ou um abraço. Era inacreditável.Nico reparou, então, que as crianças tinham um presente na mão.- Não vão abrir o vosso presente?- Não, Pai Natal. Estas prendas são para os meninos que não conseguem ter prendas. - Respondeu um menino, levando o seu presente e colocando-o junto de um monte gigante de caixas embrulhadas com presentes.- Estamos a fazer uma recolha para fins solidários. - Concluiu um dos pais.Carolina voltou a aparecer e disse:- Estamos a ajudar outras crianças por ti, Pai Natal. Para veres que as crianças não querem só coisas para si mesmas. Também sabemos ajudar os outros!Nico sentiu-se pequeno, humilde por tamanha homenagem. Pegou em Carolina ao colo e virou-se para o seu lugar como Pai Natal.Reparou, então, que por cima da poltrona estava um cartaz enorme, todo ele pintado e feito à mão pelas crianças. A mensagem era linda:"Obrigado por tornares o nosso Natal mágico!".Nico começou a chorar e caminhou para a sua poltrona. Quando lá chegou, estava uma pequena caixa embrulhada no assento. Nico rasgou o embrulho sem sequer pensar no que poderia ser, tal era o seu estado surpreendido e abalado perante o que estava a acontecer.Abriu a caixa e o que avistou deixou-o sem forças. Literalmente. Teve de se sentar para não cair.Tirou o conteúdo da caixa e admirou-o. Olhou por cima da prenda quando algo lhe captou a atenção. À sua frente estava a sua namorada e os seus pais. Na mão de Nico estava uma farda de Pai Natal. Mas o que o deixara ainda mais emocionado foi precisamente o tamanho dessa farda.Era do tamanho de um bebé.Nico levantou-se e abraçou a sua namorada grávida. Rodopiaram de felicidade, as lágrimas a brotar de ambos como de uma fonte no Verão. Nico só não tirou a barba falsa para não estragar a magia às crianças que o continuavam a rodear. Havia prioridades.E foi assim que, com uma boa acção de intenções puras e altruístas, Nico conseguiu ter o melhor Natal de todos os tempos.
Fim.FELIZ NATAL A TODOS!Bruno M Franco
December 13, 2019
Ser Nadador (de Competição)

"Ser nadador (de Competição)"Dias 14 e 15 de Dezembro realiza-se mais um Campeonato Nacional de Clubes da 2a Divisão de Natação. Para quem não sabe, é um evento em que se nadam as principais provas de todos os estilos. Cada equipa tem de colocar um nadador por prova e, consoante a respectiva classificação, dão um número de pontos para a equipa. No final, há uma classificação geral de equipas com o somatório de todas as provas e decide-se o campeão e, claro, quem sobe e desce de divisão. É um fim-de-semana muito intenso, repleto de emoção e que põe à prova cada nadador. Mas o que é, na verdade, ser-se nadador?Para celebrar este evento que tantas vezes me marcou na vida, eis o que eu acho sobre esse tema:
Ser nadador é uma forma de estar, de ser, de viver.Ser nadador é querer e muitas vezes não poder.É, também, poder e ainda assim não conseguir.É saber lidar com a frustração.É saber lidar com a vitória.É saber lidar com os treinos.Ser nadador é acordar de madrugada, muitas vezes com a temperatura próxima dos zero graus, para se meter numa piscina que parece ainda mais fria. E ainda assim sorrir. E treinar como deve ser. E esforçar-se.É saber que temos na nossa equipa uma família e no nosso treinador não só um amigo, mas também uma figura paternal cujos conselhos e reprimendas nos servem para a vida.Ser nadador é treinar todos os dias. É treinar mais que uma vez por dia. É fazer centenas de horas de treino para melhorar apenas um centésimo de segundo numa prova, e dificilmente à primeira tentativa.É saber que quando saltas para a piscina numa competição os teus adversários não são o principal alvo a abater, ou a ser ultrapassado. És tu próprio. Tu és o teu maior obstáculo.Ser nadador é estar sempre numa guerra constante contra os próprios limites físicos e também mentais. Sim, mentais. Porque muitas vezes as competições e os recordes pessoais ganham-se na nossa cabeça.Ser nadador é treinar mesmo que não apeteça. Principalmente se não apetecer. É nesses treinos que se cria a mentalidade de campeão.Ser nadador é faltar a jantares, festas ou saídas com os amigos e não se importar com isso, porque sabemos que estamos a lutar pelos nossos objectivos. É adorar o cheiro a cloro. É comer imenso e ter fome a toda a hora. É ter sempre um fato de banho ou toalha a secar na casa de banho ou no carro. É habituarmo-nos ao cheiro da humidade que se impregna nas nossas coisas.Ser nadador é saber passar por cima da ignorância dos amigos que acham que nadar é chapinhar na água e que é fácil, que não percebem por que razão damos tanta prioridade a algo que nos deixa frustrados tantas vezes, e que nos enche todo um fim-de-semana para nadarmos um minuto ou dois no total.Ser nadador é ter um físico invejável e uma saúde de ferro.Ser nadador é testar os limites constantemente. É ficar feliz por fazer perto do melhor tempo. É ficar frustrado por não bater o recorde pessoal. É ganhar por um centésimo de segundo. É perder por uma má braçada, no meio de tantas. É ter em atenção tantos detalhes que nem caberiam numa página.Ser nadador é uma contínua construção de personalidade capaz de enfrentar o mundo lá fora como poucos conseguem. É ter uma mentalidade, resiliência e paixão que os outros não têm.Ser nadador é celebrar o sucesso da equipa e arranjar motivação para ultrapassar os falhanços. É saber que se pode passar uma época inteira sem melhorar nenhum tempo e, mesmo assim, ser uma época extraordinária. É saber que com trabalho e dedicação conseguimos alcançar tudo o que pretendemos.Ser nadador é amar e odiar nadar ao mesmo tempo.Ser nadador é dar tudo. É gritar por dentro quando está a doer na alma e a ficar sem forças pelo esforço. É saber que um abraço ou um elogio do treinador ou colega vale a pena todo o sangue, suor e lágrimas. É saber que tens de te entregar totalmente se queres evoluir. É prestar atenção aos pormenores. É ir a máximo. Sempre.Ser nadador é conciliar tudo isto com a vida académica e ter sucesso em ambas.Ser nadador é ser especial.Ser nadador é isto e muito mais. Muito mais, mesmo.Ser ex-nadador é ter saudades de tudo isto. É saber que esse período nunca mais voltará. É saber que foi a melhor coisa que podia ter acontecido na vida. É tentar voltar a nadar a sério novamente, independentemente do tempo que tenha passado desde que deixámos a competição. É sentir falta de, depois de um dia cansativo de aulas, estarmos felizes por nos encontrarmos com a nossa segunda família, mesmo sabendo que isso implica esgotarmos as forças que nos restavam na piscina. É sentir um aperto no coração ao recordar os bons e os maus momentos que passámos em equipa. Cada peripécia, cada vitória, cada derrota. Tudo. Tudo traz uma enorme saudade.Ser nadador é nunca deixar de o ser o resto da vida.A todos os ex-nadadores, actuais nadadores e futuros nadadores: nadar é a melhor coisa do mundo. Por vezes, também é a pior. E não podíamos ser mais sortudos na vida por isso.Parabéns por serem quem são.Boas braçadas!
Bruno M Franco(Ex-)Nadador do Clube Lisnave e CIRL.
December 1, 2019
O touro estava a centímetros de atingir o homem barbudo. ...

O touro estava a centímetros de atingir o homem barbudo. Mas ele era muito ágil para a sua idade. A prova disso é que conseguiu escalar a árvore com rapidez, até uma altura suficiente para ficar acima do alcance do touro. Ouviram-se gritos e assobios de aprovação e louvor pela actuação do homem. Pendurado na árvore, com o touro por baixo a focar a sua atenção noutras pessoas que passavam com os seus casacos abertos nas mãos, o homem esticou a sua perna e pisou o dorso do animal, que se agitou no seu lugar. A provocação verbal do homem não escapou à rapariga.- Porque é que ele está a tratar mal o touro? Pensei que estavam a brincar.Novo pontapé no animal e a rapariga abriu muito a boca, revoltada.- Pai!- Filha, o touro tem um corpo muito rijo. Ele não sente praticamente nada. Parece-te que o touro se aleijou? A mim parece-me tranquilo.Não parecia aleijado, mas parecia mais enfurecido, ao ponto de arrancar com fúria rumo a outros alvos. O que surpreendeu a rapariga, no meio disto tudo, era o à-vontade com que as pessoas circulavam pelas ruas, umas a andar calmamente apenas para apreciar de perto o espectáculo, outras para provocar o animal de forma a que ele os perseguisse. Como é que andavam assim de forma tão descontraída com um animal tão assustador e forte a meros metros de distância?- É um abuso estarem a gozar desta forma com um animal. – Comentou a mãe da rapariga, farta do espectáculo. – Ele fez-vos algum mal para o maltratarem esta forma?Olhou para o pai, chateado por ter aquela conversa num momento tão entusiasmante da largada.- Faz parte da nossa cultura, da nossa tradição, querida. E sabes bem que os touros são tratados com todo o cuidado.- É desumano usar animais desta forma, para nosso entretenimento. Ainda por cima quando o espectáculo é feito à custa do sofrimento do animal. Isto é uma tradição muito antiga? Também o de arranjar casamentos. E actualmente, como é? Nada a ver. As coisas evoluíram; por que razão não evoluiu também esta tradição? Supostamente uma tradição deve ser para dignificar o Homem e um povo, mas como é que fazer isto a um animal nos dignifica?- Querida, sabes uma coisa? Nos anos em que o touro está a ser preparado para estes momentos, ele tem uma óptima qualidade de vida, até melhor que as vacas ou as galinhas. Essas, coitadas, vivem em currais apertadíssimos e muitas nascem e morrem sem ver o Sol. E não me parece que tenhas problemas em comer carne de vaca e de galinha.- Ah e vais-me dizer que nessa preparação dos touros não sujeitam os animais a testes violentos?- Não sou nenhum especialista, como sabes, mas creio que isso não é verdade. E se não houvessem touradas, estes touros provavelmente nem existiriam. Seria uma espécie extinta. É isso que queres?- Se for para viverem sempre a sofrer desta forma, talvez fosse melhor.- Se a tourada fosse algo assim tão maquiavélico, por que razão as arenas estão sempre cheias? Por que razão há sempre turistas nestes espectáculos? Além de que a televisão pública transmite as touradas, portanto não creio que tenhas razão. – Olhou para a filha e sorriu. – E para provar que não tem mal nenhum…Dito isto, o pai saltou a grade e foi para o meio da rua, deixando a esposa enfadada pela discussão e a filha em choque pela ousadia do pai. O touro estava a correr atrás de algumas pessoas, que fugiam com um sorriso na cara. O pai bateu palmas e chamou o touro para si. Quando o animal estava a fazer uma curva atrás de outra pessoa, passou perto do pai da rapariga. Ela ficou assustada no momento em que o touro desviou os seus chifres na direcção do pai.- Pai!Mas o pai também tinha alguma experiência e afastou-se com ligeireza. Escapou ileso, embora não tenha arriscado tanto como outros que a rapariga vira.O pai regressou incólume, para alívio da rapariga e para desprezo da esposa, que continuava rabugenta com toda a situação.Umas horas depois, após um almoço agradável no meio de imensas pessoas que deixaram a rapariga com um sentimento de pertença muito grande naquela festa, foram para a Praça de Touros de Alcochete. A rapariga ficou imediatamente deslumbrada com a forma como as pessoas encheram as bancadas para o espectáculo. Era realmente notável. O povo gostava mesmo daquilo, embora a sua mãe não apreciasse nem um pouco.A rapariga sentia-se um pouco dividida. Os seus pais tinham opiniões bastante opostas mas, ainda assim, válidas da perspectiva de cada um. Para a rapariga, o envolvimento da população, todo o convívio e a alegria das pessoas era algo realmente bonito e contagiante, ao ponto de ela se sentir ansiosa para que o touro aparecesse na arena só para sentir o entusiasmo a vibrar no ar. Por outro lado, pensar na forma como o animal sofria e era gozado por todos, acabava por ser desumano e muito pouco digno da parte dos seres humanos.Todo o espectáculo desenrolou-se com agrado, com vários homens, chamados de forcados, a arriscarem a sua integridade física enfrentando o touro com alguns malabarismos que fizeram a rapariga bater palmas fervorosamente, para agrado do seu pai. Ela ficou mesmo impressionada com a primeira actuação.Então, chegara a hora dos cavaleiros. Um cavalo entrou na arena, com um homem a cavalgar muito bem vestido. Mas o que chamou a atenção da rapariga foi o que ele tinha na mão. Tinha uma estaca comprida. E a sua função era bem clara.- Pai, o que vai acontecer agora?O pai engoliu em seco, sabendo que desta vez seria difícil de defender a sua perspectiva da tourada. Mas foi a esposa quem falou primeiro.- Vão espetar aquelas coisas pontiagudas no touro até que no final...- Querida! – Admoestou o pai, chocado.- O que tem o final, mãe? Mas ela percebeu tudo. Não precisava que a mãe completasse a frase.Acto contínuo, o cavaleiro evitou a investida do touro graças a uma destreza bastante impressionante do seu cavalo. Ao passar ao lado do touro, o cavaleiro ergueu a espiga e espetou-a no dorso do animal, levando-o a dar um coice como reacção.A rapariga arregalou os olhos. Assustada, levantou-se e saiu das bancadas. Começou a descer as escadas e a andar de forma atabalhoada, sem rumo. Não via para onde ia, a sua cabeça a repetir aquela imagem em repetição vezes sem conta. Quando imaginou que se tratava de Porthos, começou a chorar. Sem dar por isso, passou por várias pessoas que pareciam atarefadas com a organização e não lhe prestaram atenção nenhuma. Ela era muito pequena e passava despercebida.A rapariga não cabia em si de espanto. Eles iam matar o touro no fim. Iam matar o animal! Como podiam fazer isso? Coitado do animal. Desorientada, só parou quando embateu numa porta de madeira. Cheirava a fezes e a feno com intensidade. Não havia ninguém por perto. A rapariga pegou no trinco da porta e abriu um pouco, curiosa como só as crianças sabem ser.Vários touros circulavam pelo pequeno espaço. Pareciam tristonhos para a rapariga, ali encurralados à espera de irem para a arena.- É injusto o que fazem convosco, amigos. Vocês não merecem esta vida. Merecem liberdade e merecem ser felizes.Sem pensar, a rapariga abriu a portinhola e escondeu-se atrás dela, deixando a saída escancarada. Aos poucos, os touros saíram do seu espaço e fugiram, para agrado da rapariga. Sentia que tinha feito uma óptima acção pelos animais.Momentos depois, começou o terror.Várias pessoas começaram a gritar e a rapariga ficou aterrorizada e muito confusa. Alguns gritos eram mesmo horripilantes, como se estivessem em sofrimento. O que estaria a acontecer? A menos que...A rapariga desatou a chorar, sentando-se no chão. Não acreditava no que estava a acontecer e, na verdade, nem conseguia compreender na totalidade.Horas mais tarde, abraçada pelos pais que a tentavam reconfortar do trauma, souberam que cinco pessoas ficaram feridas e que duas estavam em estado crítico.E a culpa era sua. De mais ninguém. Dela apenas. Ingenuamente, não contara que os touros agissem daquela forma depois de serem libertados. Estavam livres. A rapariga assumiu que fossem correr para o campo e se afastassem das pessoas, rumo à liberdade. Mas não. Agiram contra elas, como se ainda estivessem presos.- Porque é que os touros fizeram mal às pessoas? Eu só os libertei para eles irem à sua vida, não queria que aleijassem ninguém.- A culpa é da forma como são tratados. – Atirou a mãe, abalada pelo estado em que a filha ficara. Todos sabiam que nunca mais a iriam calar a respeito das touradas.- Também tem que ver com a sua natureza. – Acrescentou o pai, abatido por um dia tão especial como aquele ter terminado daquela forma. – Por isso é que eles são tão bem controlados pelos criadores. Tem que haver um balanço. É como os leões. São muito giros e tudo isso, mas experimentem libertá-los numa cidade para ver o que acontece. É a mesma coisa. É preciso balanço, para que os animais possam entreter as pessoas mantendo a sua natureza, mas que sejam controlados saudavelmente de forma a não causar estragos como os de hoje e, claro, para que sejam animais felizes.Um balanço. Era isso que a rapariga gostava que houvesse. Por ela, até podiam haver touradas e largadas de touros. Ela adorara a experiência. Mas só o queria se os touros fossem realmente bem tratados.O que a rapariga iria descobrir anos mais tarde, quando enfrentasse a vida sozinha, era que neste mundo poucas coisas eram perfeitas ou ideais.E iria concluir que era por esse motivo que o mundo não era perfeito. Cabia a cada pessoa lutar pela sua definição de perfeição e, se não desse a nível global, que o fosse no seu próprio mundo. Na sua própria vida. Cada ser humano tem a missão de lutar pela sua felicidade.O problema era quando a felicidade de uns embatia na de outros.Aí é que começavam os problemas.
FIM.
November 30, 2019
- Busca, Porthos! A voz aguda da rapariga que entrar...

- Busca, Porthos! A voz aguda da rapariga que entrara recentemente na fase dos teenagers alongou-se pelo pátio e teve o efeito pretendido. Um grande e bonito husky siberiano, com o pêlo preto no dorso e o focinho branco, correu atrás da bola de ténis que a rapariga tinha atirado com todo o entusiasmo. Estavam naquilo há mais de meia hora e não havia sinal de qualquer dos intervenientes se estar a fartar. Longe disso. A rapariga adorava o seu cão, baptizado com o nome de Porthos em homenagem a um dos mosqueteiros de Alexandre Dumas, o favorito do seu pai por ser o mais divertido da história, na sua perspectiva. O grande e musculado husky regressou a trotear para junto da rapariga com a bola de ténis na sua boca. A rapariga, uma jovem de treze anos magra e de cabelos longos acastanhados, agachou-se e retirou a bola da boca do husky com toda a naturalidade de quem fazia aquilo com extrema frequência. Afagou o pêlo do animal com carinho e recebeu umas lambidelas bem molhadas na face em troca.- Quem é um menino bonito? Quem é? Quem é?Empolgado, Porthos ladrou enquanto se empoleirava sobre a rapariga e a mandava ao chão, continuando a lamber a sua face. A rapariga explodiu em gargalhadas pelas cócegas das lambidelas do husky e abraçou-o, sem nunca deixar de lhe dar festinhas ternurentas. Ao fim de uns momentos, já com o rosto molhado, a rapariga conseguiu atirar a bola novamente para o fundo do pátio.Porthos, subitamente atento à trajectória da bola, parou as lambidelas e perseguiu o objecto que ele mais adorava apanhar. A rapariga levantou-se e limpou a sua face às mangas da fina camisola.Quando o cão regressava com a cauda a abanar, orgulhoso por ter cumprido a sua missão, a porta das traseiras daquela moradia abriu-se e uma senhora apareceu no umbral.- Filha, vamos. Está na hora!A rapariga virou-se para a sua mãe e colocou a mão sobre os olhos para os proteger do Sol ascendente daquela manhã de Verão.- Já vou, mãe.- Sim, mas vem mesmo. Não me faças vir cá outra vez.- Vou-me só despedir do Porthos.A mãe fechou a porta e a rapariga agachou-se novamente. Tirou a bola da boca do husky mas, desta vez, deixou-a tombar para o chão. A brincadeira havia terminado.- Por agora, não podemos brincar mais, Porthos. – O cão parecia querer escutá-la, rodando a cabeça. – Mas mais logo voltamos a brincar. – O cão ladrou uma vez. – Prometo, a sério!Deu um abraço ao cão e este foi cheirar a relva, afastando-se. A rapariga, com uma enorme tristeza por deixar o seu grande amigo para trás, foi ter com os pais à frente da moradia. Já a esperavam no carro. Ela fechou a porta e foi ter com eles.- Então sempre vamos lá?- Oh yeah! Vamos sim! – Respondeu o pai, sentado no banco do pendura, claramente entusiasmado. – É desta que vou levar a minha filha a ver uma das tradições mais emblemáticas aqui da nossa terra.A rapariga olhou para a mãe, que abanou a cabeça e iniciou a marcha do carro.- Eu acho que ainda é cedo para ela, mas…- Já falámos sobre isto, querida. Há lá crianças bem mais pequenas que a nossa filhota e que adoram aquilo.- Está bem, eu sei, mas não sei se ela vai gostar.O pai olhou para a rapariga com um sorriso enorme. Estava notoriamente feliz por levar a filha consigo a participar em algo que lhe dizia muito.- Vais adorar. Tenho a certeza, filha.- Sim, pai. Espero que sim!A mãe revirou os olhos e inspirou fundo. Era notória a diferença de opiniões sobre o espectáculo que iam assistir e participar. Era uma tradição muito antiga que o seu pai, oriundo da região em questão, participava desde sempre e queria, agora, que a sua filha conhecesse essa faceta tão importante para si.A rapariga olhou em frente e viu uma placa que indicava vários destinos possíveis, e o deles estava lá no meio.Alcochete.
Iam assistir a um espectáculo tauromáquico.Neste caso, a uma tauromaquia popular: a Festa do Barrete Verde de Alcochete.Estacionaram o carro à entrada do centro da vila e caminharam a pé. Passaram por uma grade que avisava da largada de touros e a rapariga ficou surpreendida por ver as ruas cheias de terra, em vez do habitual alcatrão ou pedra.- Porque é que a estrada está cheia de terra, pai?- Então, é para os touros andarem mais à vontade.A rapariga ficou surpreendida.- Vamos ver os touros aqui na rua?- Sim, como é óbvio.- Mas eles não nos fazem mal?- Fazem se não tivermos cuidado. – Apontou para umas estruturas de madeira, pintadas de vermelho que se encontravam espalhadas pela rua, normalmente próximos das portas das casas. – Aquelas trincheiras servem para nos abrigarmos. Além de que também há grades pela rua para as pessoas verem à vontade. Não há perigo, garanto-te.O movimento era já elevado. Estava a chegar a hora da largada dos touros.- Vamos para aqui.Abrigaram-se atrás de uma grade de madeira que limitava a acção do touro e protegia quem viesse de ruas adjacentes. Várias pessoas circulavam despreocupadamente nas ruas, como se um touro de algumas centenas de quilos não estivesse prestes a ser solto. A rapariga sentia-se embasbacada com o que via. Seriam as pessoas malucas? Não tinham amor à vida? Não, isso não devia ser. Até estavam todas animadas. Muitos homens e mulheres andavam de cerveja na mão e riam-se imenso. Tiravam fotos e conversavam alegremente.Definitivamente, não pareciam não ter amor à vida. Estavam, pelo contrário, cheios dela. A rapariga sorriu perante o convívio das pessoas. Gostava do que estava a ver.Subitamente, um estouro semelhante a um tiro assustou a rapariga. Agarrou-se ao pai, com medo. O seu grito estridente não passou despercebido às pessoas que também aguardavam pelo touro. Sorriram perante a reacção da rapariga.- Filhota, não tenhas receio. Este é o sinal de que o touro já está na rua.Afagou-lhe a cabeça e a rapariga sentiu-se melhor. Ao ver que o entusiasmo e o tom da conversa das pessoas subiram consideravelmente, constatou que o pai tinha razão.E quando soaram vários gritos de entusiasmo e surgiram muitas máquinas fotográficas e telemóveis na mãos das pessoas a filmarem a rua, percebeu que o touro tinha chegado. Uns segundos mais tarde, uma enorme criatura surgiu no meio da rua. Um touro preto, com cornos bicudos e bem afiados, trauteava atrás de algumas pessoas que passavam à sua frente a correr, levando a que o animal estivesse constantemente a mudar o foco da sua atenção. Sem decidir quem perseguir, estacou no meio da rua, próximo da rapariga.Ela olhou para ele com atenção, o animal claramente à procura de um alvo para perseguir. Ou queria apenas ir-se embora?A rapariga começou a olhar para ele e associou-o ao seu Porthos, o seu husky lindíssimo e brincalhão. As pessoas passavam à frente do touro e mandavam bocas, troçando do pobre animal.- Pai, porque é que as pessoas estão a dizer aquelas coisas ao touro?O pai desviou o olhar sorridente do espectáculo e encarou a filha.- Eles estão só a brincar com o touro, filha. Tal como tu brincas com o Porthos quando atiras a bola ou lhes fazes cócegas. A diferença é na forma como se brinca.- Se fores fazer cócegas a um touro pode não correr bem. – Acrescentou a mãe, claramente contrariada por estar ali a sua filha.- O que é que pode acontecer, mãe?- Olha, filha, o touro pode muito bem espetar…- O touro pode empurrar as pessoas para o chão, filha. – Cortou o pai, aborrecido com a esposa. – Com força. Pode aleijar.A rapariga voltou a sua atenção para a rua. O touro corria atrás de um homem com vigor, mas este fora mais rápido e conseguiu esconder-se atrás de uma trincheira que tinha o desenho de um barrete verde.- Foi por pouco!Mais à frente, uma pequena árvore servia de apoio a um homem com uma barba grisalha que gritava para o animal. Era um homem mais velho, claramente confiante naquela situação. Não era a sua primeira largada, isso era certo. O homem barbudo continuou a chamar a atenção, até que o touro se foi aproximando. O homem afastou-se da árvore e aproximou-se do animal, provocando-o. As pessoas em redor riam-se e algumas passavam perto do touro a correr, com o casaco nas mãos a ser agitado com vigor para puxar por ele.E conseguiram.Com um arranque em força, o touro investiu contra o homem barbudo, que começou a correr de regresso à árvore.A rapariga engoliu ar, assustada. Colocou a mão na sua boca, com medo que o touro conseguisse empurrar o homem com força e o magoasse. Apertou a mão do pai com aflição quando o impacto era o mais certo.O tempo parecera parar para a rapariga.
Continua…