Maria Isaac's Blog, page 2
July 14, 2022
Manias de Escrita
Alguma vez pensaste em como terá sido escrito aquele livro maravilhoso que acabaste de ler?
Não me refiro à curiosidade eterna “de onde terá vindo aquela ideia?” mas sim em como terá sido para o escritor escrevê-la, palavra após palavra, mês após mês… em muitos casos durante anos.
Pois bem. Eu resolvi perguntar-lhes.
Neste episódio do podcast tenho convidados muito especiais… eles são, nem mais nem menos, do que alguns dos nossos escritores portugueses contemporâneos favoritos:
Helena Magalhães
Hugo Gonçalves
Iris Bravo
João Reis
Nuno Nepomuceno
Ricardo Fonseca Mota
Susana Amaro Velho
***
Nos últimos dois meses, apanhei covid, como tanta gente, mas foi uma febre de escrita de escrita que me apanhou de jeito e me manteve fins de semana inteiros em casa com hábitos muito pouco saudáveis, meia-alienada.
Perdoem-me família e amigos.
Esta “febre de escrita”, como a baptizei há alguns anos, é um estado de espírito que aprendi a reconhecer como parte do meu processo de escrita, e hoje em dia, apesar de continuar a ser um pouco estranho, lido com ela tal como uma verdadeira febre, que mais tarde ou mais cedo, vai passar, mas que enquanto dura tem de ser gerida. Uma espécie de loucura controlada.
Mas agora, que volto a sentir-me mais “eu-normal” lembrei-me de todos os outros escritores que também têm as suas próprias experiências de escrita e fiquei curiosa para descobrir sobre este processo de criação que é sempre único.
Então… fiz o que todos fazemos: google!
Foi fácil, se procurarem hábitos de escritores são 18 milhões e 400 mil resultados.
Eu li alguns e tudo se resume a cerca de 15 ou 20 escritores famosos, na sua maioria clássicos, com hábitos curiosos, alguns mais loucos do que outros… o que gostei mais foi de Victor Hugo, o escritor francês que nos deixou clássicos como “Os Miseráveis” que adquiriu o hábito de escrever nu, e de pé. Ele dava ordens ao mordomo para lhe esconder as roupas até que ele tivesse terminado o que propôs fazer.
Existem muitos artigos curiosos, que vale a pena procurar e ler, até porque são escritores que com certeza já todos nós lemos.
Mas no que respeita à minha curiosidade, não me serviram de nada… isto porque, eu, escritora portuguesa, ainda a respirar e caminhar no assustador ano de 2022, pouco me consigo identificar com autores que viveram no século passado, na américa, inglaterra, frança como o nosso excêntrico Vitor Hugo e o seu mordomo… ou mesmo que sejam escritores contemporâneos, mas cujo contexto cultural nada tem que ver com o meu, por muito que admire o seu trabalho e até gostasse de ser como eles quando crescer.
Refinei então a procura: hábitos de escritores portugueses
De 18 milhões de resultados no Google passamos para 3 milhões 720 mil, mas… de artigos que falam sobre “hábitos de leitura portugueses” e nada do que eu realmente queria saber.
Já sabes qual foi a minha ideia genial que se seguiu, não é?
Pois assim aconteceu. Enviei mensagem a alguns dos nossos escritores portugueses contemporâneos favoritos e perguntei-lhes qual é a sua fórmula mágica? Hábitos, superstições, tiques, manias ou fobias.
Eles aceitaram o desafio, responderam-me, e alguns deles a viva-voz.
(Helena Magalhães)
O medo de perder o manuscrito!
Eu fiz precisamente o que a Helena fazia (antes da maravilha do google docs) …quantos emails enviados para mim mesma!
Até hoje é uma fobia que continua a reinar os meus temores diários e pesadelos noturnos: perder o que escrevi… e nem precisa ser o manuscrito inteiro, um parágrafo basta.
Todos conhecemos o Ferozes, o mais recente livro da Helena, um livro de não-ficção… mas que se lê tão bem como se fosse ficção… é como se o género do ensaio e da autobiografia decidissem ter um filho rebelde e voilá: o Ferozes!
Quando o li não me lembrei nem por instantes deste trabalho de pesquisa, de leitura de muitos outros livros… que é característico da escrita de não-ficção. Talvez por aquele sentimento alinhamento de almas que sentimos com o escritor, pois se nos é fácil e bom ler um livro, imaginamos que também foi fácil escrevê-lo.
Obrigada, Helena, e numa próxima vou pedir-te que partilhes algumas dessas mezinhas!
Hugo Gonçalves, é o escritor que se segue, e vem destruir o maior dos mitos. Talvez tenhas lido “Filho da Mãe” que acho que se tornou no seu livro mais popular, ou o recente “Deus, Pátria, Família”… mas seja qual for, com cerca de 10 livros publicados, traduções e tantas colaborações com revistas e jornais que nem me vou atrever a tentar nomeá-los aqui, o Hugo bem sabe do que fala.
(Hugo Gonçalves)
Dizem que os gostos em comum nos aproximam, o contrário também é verdade, porque eu bem que gostei de saber que partilho uma neura com o Hugo. Adivinhaste qual? Hmmm pois é aquela gente que mastiga como um herbívoros esgalgado…
Trabalho, método, um ofício que se pratica diariamente. Escrever bem é uma arte a praticar… e ouvi-lo dito pelo Hugo, pelo Philip Roth não deixa margem para dúvidas de que assim é!
Aliás, eu lembro-me de o Hugo dizer que quando lhe perguntavam qual a profissão que exercia ele costumava responder: trabalho nas obras.
Ah! E não resisto a uma confidência. Talvez te recordes de um episódio anterior em que falei sobre as muitas pessoas que colaboram para a criação de um livro, as que aparecem naquela primeira página técnica e que há ainda algumas que nem lá vêem mencionadas… pois o Hugo Gonçalves foi uma destas pessoas para o Onde Cantam os Grilos, há uns bons aninhos atrás, e não posso perder a oportunidade de lhe agradecer algumas das dicas e sugestões que me deu e que bem as aproveitei.
Já a Iris Bravo, autora mais romântica do nosso coração, sempre nos tops das livrarias por este país fora e que nos trouxe há bem pouco tempo um novo livro “O Regresso de Julie Blue”, diz conseguir reinar no caos… ora oiçam-na:
(Iris Bravo)
Obrigada, Iris.
Pois… ela conquista-nos não apenas com histórias apaixonantes.
A Íris mencionou uma parte fundamental no processo de escrita que é a revisão, e na resposta dela percebe-se o quão distintos são estes dois momentos: escrita e revisão, um momento criativo e um crítico.
Ela consegue escrever “no caos”, como lhe chama, aquela vida que existe nas nossas casas com os barulhos e outras pessoas em redor, mas… para a revisão, essa, ela precisa da noite e do silêncio.
É preciso não esquecer que um autor lê e revê o seu livro dezenas de vezes antes de ficar pronto… são muitas horinhas a queimar pestanas.
(João Reis)
Digo-vos já que todos estes escritores me disseram “ah, não há nada de especial no meu processo de escrita” e tentam desmistificar a coisa, mas, o João Reis foi o que mais se contradisse na tentativa, porque nas mensagens que troquei com ele, disse:
“Tento sempre ter um caderno (ou vários) à mão, no qual anoto diversas ideias que me ocorrem ao longo do dia. (...) Costumava ter esse meu caderno ou bloco na mesinha de cabeceira, para anotar ideias que me ocorriam a meio da noite. Anotava-as amiúde sem acender a luz. Mas perdi esse hábito quando me tornei pai.”
João, não imaginava que se pudesse tomar notas de luz apagada, e fico curiosa para saber a caligrafia que sairá daí.. E como a consegues decifrar na manhã seguinte.
Mas esperem que o melhor está para vir, porque o João Reis, autor d’A Noiva do Tradutor e mais recentemente Cadernos da Água, escreve no seu computador sempre virado para Norte!
Maravilhoso, eu que amo o Norte de paixão tenho de experimentar. Agora que sei desta não dá para esquecer.
O João Reis assume-a como excentricidade e ainda partilha mais uma:
"também alterno a escrita em português com a escrita em inglês.”
Imagino que esta venha da sua faceta de tradutor e fez-me lembrar de um artigo que li há algum tempo sobre o facto de o nosso cérebro funcionar de forma diferente consoante a língua em que estamos a pensar.
Isto no que toca à criatividade, vale tudo!
Estão recordados daquela minha pesquisa inicial, a que me levou aos hábitos dos autores estrangeiros? Pois bem, dois dos pontos mais repetidos nesses artigos eram: rotinas e manhãs. Ou seja, criar rotinas e escrever de manhã são referidos como dois segredos fundamentais para escrever bem e com produtividade.
O Nuno Nepomuceno, que vão ouvir já de seguida, autor da série Afonso Catalão, indispensável nas estantes dos fãs de thrillers, é o mais internacional dos autores no que respeita ao seu processo de escrita porque ele é o único, neste nosso pequeno grupo de escritores portugueses, que privilegia as manhãs e as suas rotinas… metódico no que chama as suas “regras de conveniência”
Audio (Nuno Nepomuceno)
Tal como o Nuno Nepomuceno, eu também preciso de ter um bloco de várias horas disponíveis para escrever, o meu cérebro não tem grande velocidade de arranque, como costumo dizer, é mais tipo, aqueles motores antigos que era necessário deixá-los a trabalhar um bocado para aquecer e só depois funcionavam em condições.
Já deu para percebermos, que a escrita, para todos, é um processo composto por várias etapas, e o Ricardo Fonseca Mota, autor de As Aves Não Têm Céu, foi quem partilhou toda esta linha de abordagem ao processo criativo precisamente como uma metodologia, ele disse:
“Divido-o em dois momentos distintos: criação e escrita.
O primeiro é permanente. Registo ideias, textos, pesquisas, imagens, músicas, arte, cinema, (...) e outros materiais que, em simultâneo com a criação, vão dando corpo à peça artística em que estou a trabalhar.”
Depois vem então o momento da escrita que ele encara, tal como o Hugo Gonçalves, como um ofício.
Diz ele:
“Ultrapassadas estas etapas, vem outra fase oficinal e exaustiva. A revisão é a tarefa menos prazerosa mas uma das mais importantes.”
Do estilo metódico do Ricardo levamos uma reviravolta de 180º e somos deixados de cabeça para baixo pela Susana Amaro Velho, nada que me surpreenda vindo da autora do Inquieta, que define o seu processo de escrita como living on the edge…
(Susana Amaro Velho)
Pois é… esperar pela inspiração, as condições ideais parece ser mais um mito. Escreve-se quando os filhos deixam!
E a música, que a Susana não dispensa em alto e bom som, e… cafeínada, parece ser o portal mágico para aquele lugar tão estranho para onde se vai criar histórias.
Foi por coincidência da ordem do alfabeto que a Susana encerra este grupo de escritores, e ainda bem, porque não poderia terminar com uma mensagem mais forte do que a dela: quando se sente uma paixão, paixão pela escrita e por contar histórias, encontramos sempre lugar e um tempo para ela… ainda que super-cafeínada!
***
Escrever de manhã, ou à noite?
Será necessária uma rotina de escrita?
Quais as melhores ferramentas para se ser mais produtivo?
Devo escrever no silêncio, em solidão? Com música? Entre o caos?
E o que fazer com tudo o resto? Como gerir tudo o resto que compõem a vida, o dia-a-dia, e que não pára só porque tudo o que mais se quer é escrever.
As perguntas são muitas e as respostas certas, inúmeras.
Ao ouvir estes escritores percebi que a noite é a grande companheira de escrita e é com ela que nascem as suas grandes histórias, na companhia de cadernos e blocos de notas, ao ritmo da música, da nossa língua, da vontade de criar em português.
Uma parte de nós pode até pensar que os grandes escritores são simplesmente geniais, nasceram assim e portanto basta-lhes a sorte do talento com que nasceram e já está, nasce um grande livro!
Estes escritores dizem-nos que não é bem assim.
O que distingue então os grandes escritores de todos os outros?
Muitas respostas possíveis, que normalmente mencionam palavras como: trabalho, perseverança, improviso, insónias, método… muitas palavras que não podem ser simplesmente substituídas por talento, sorte, génio.
Obrigada Helena, Hugo, Íris, João, Nuno, Ricardo e Susana… depois de ouvirmos este episódio podemos imaginar-vos mais facilmente, talvez neste preciso momento, enquanto escrevem o nosso próximo livro favorito.
June 24, 2022
Estantes, livros e muito pó
A Primavera.
Há quem desfrute do sol, das flores, organize o guarda-roupa, faça limpezas e, para os aficionados dos livros, é também uma boa época para tirar o pó das prateleiras mais altas e reorganizar as estantes.
Nesta estação segui a deixa da natureza e pus em alvoroço a minha pequena biblioteca caseira, com o entusiasmo, e também alguma daquela nostalgia que as mudanças sempre trazem.
Rodeada de pilhas de livros, reencontrei-me com velhos amigos, com os livros favoritos
e os injustiçados e alguns daqueles incompreendidos que todos mantemos lá por casa, embora sem sabermos bem o que pensar deles.
Neste episódio falo-te sobre estantes, livros, pó, e o quão difícil é julgar um livro, pois por mais que tente acabo sempre com aquela sensação de estar a ser injusta.
Bem-vindo!
Vamos à organização em três passos! (os meus três passos muito aldrabados)
Começo pelo mais fácil: os grandes amores de uma vida inteira:
Jorge Amado, Isabel Allende, Gabriel García Márquez, Fernando Pessoa…
Estes, e seus amigos literários igualmente geniais, estão bem aconchegados em redor da minha secretária, sempre à mão, e tem lugar cativo para todo o sempre.
Nestes livrinhos, é só passar um paninho e aproveitar para abrir numa página aleatória e reler um parágrafo que nunca falha em pôr-me um sorriso aluado, a imaginar como será conseguir escrever coisas tão maravilhosas.
Como:
“O mundo era tão recente que muitas coisas não tinham nomes, e para as mencionar era preciso apontá-las com o dedo.”
Cem anos de Solidão
Ou
“Ela não acreditava que o mundo era um vale de lágrimas, mas sim uma piada de Deus e era uma estupidez levá-la a sério.”
A Casa dos Espíritos
Pertinho destes, também estão os livros autografados de autores contemporâneos, alguns deles meus amigos do coração, porque é tão bom ter os amigos por perto.
Depois vem o trabalho braçal de movimentar a multidão de bons livros que fui lendo ao longo dos anos e que, claro, vou carregar comigo pelo resto da vida! Muitos deles, pobres coitados, perderam a juventude comigo… desbotados, amarelados, com pó tão entranhado nas lombadas que já é papel!
Mas lá continuo a passá-los de lado para lado, paninho na mão, a alinhá-los na vertical e depois a preencher os buracos vagos com os que sobram. Não há critério alfabético, nem organização de natureza nenhuma, nas minhas estantes reina o caos!
Por esta altura, obviamente, já estou consumida pela alergia ao pó, a estrebuchar com sequências de 3 a 5 espirros por minuto, e a amaldiçoar a minha decisão.
Para o fim… o terceiro passo, a maior das dores de cabeça.
Pois se até é fácil descartar a maioria dos livros que não gostei, para dar, vender… eclipsar de alguma forma… restam sempre aqueles demónios com uma história por detrás da história.
Aquele livro que foi oferecido por alguém especial, com a melhor das intenções, mas que lemos e detestamos. Não há coração para me desfazer dele, mas também… vê-lo a dividir a prateleira com o meu estimado Paul Auster, a maravilhosa Elena Ferrante… não pode!
É assim que nasce então a prateleira “longe da vista”.
Ela normalmente fica rentita ao chão e é a desgraçada que come com o pó do chão o ano todo.
Não vos vou contar quem lá está porque, como bem sabemos, os ódios de uns são os grande amores de muitos outros, e eu quero que continues a ouvir o meu podcast.
As horas passadas a reorganizar as nossas estantes são muito mais do que simplesmente arrumação e limpeza, são viagens biográficas no tempo, meditações com um pano do pó na mão…
As nossas estantes estão cheias de nostalgia e sempre que lhes tocamos reencontramo-nos com diferentes versões de nós próprios que… por incrível que pareça, em mais uma daquelas coisas mágicas dos livros, eles não nos deixam esquecer.
Basta olhar para um livro do Henry Miller para me lembrar de um verão inteiro que seguiu ao final do liceu, ver a capa do Sputnik, Meu Amor, do Murakami e volto a noites de inverno no primeiro ano da faculdade, pegar no Tigre Branco e sinto o medo na véspera da minha primeira cirurgia.
É difícil falar sobre livros destes que adorei tanto lê-los e que se tornaram marcos de memória. Não sei se também te acontece isto de… tipo, ficar meio atrapalhado com as palavras… e ser escritora não ajuda em nada, acredita, é como se tudo o que eu possa dizer não esteja à altura do que aquele livro, aquela história, significa para mim. E… quem é que se quer arriscar a ser injusto com um livro favorito!? Certo?
Mas esta dificuldade em julgar um livro, simplesmente falar sobre uma opinião sincera sobre ele, não é exclusiva dos livros de que gosto, ela existe também naqueles infelizes que não gostei de ler e me roubaram tempo de vida.
Eu sei que não estou sozinha nisto. Em conversa com amigos muitos referiram sentir a mesma coisa.
O que me leva a pensar: por que razão é tão difícil julgar um livro?
Pode reduzir-se a um gosto porque sim, ou não gosto porque não, e há quem o faça, não mata ninguém, mas parece-me injusto e simplista.
No que toca a livros que não gosto, encontrei uma forma simples que tem funcionado e é para manter. Simplesmente não falo neles. Se alguém me falar sobre livros ou autores que de não gosto, não comento, se me questionarem, a resposta vai com o mínimo de palavras possíveis. Tem funcionado!
Agora, os outros, os maravilhosos, os nossos favoritos… esses é que me continuam a atormentar.. mas … só resta ir fazendo o melhor possível, sempre que falo deles, para estar à altura do enorme significado que tiveram para mim, do que me fizeram sentir, mesmo que com aquela sensação de ficar sempre um pouco aquém, de por mais que tente não conseguir fazer-lhes justiça, de estar, um pouco atrás do que deveria ser.
Os livros da nossa vida, os favoritos que nunca sairão das nossas estantes, aqueles que nos lembram que existem palavras capazes de expressar mundo inteiros, os nossos próprios corações.
Alguém encontrou as palavras certas e escreveu-as por nós. Vemo-nos em palavras no papel, já não somos desconhecidos, solitários, incoerentes, muito menos invisíveis.
Estamos nos livros que guardamos nas nossas estantes, espalhados por histórias, a viver em personagens imortais.
Há liberdade nos livros, para experiências e emoções, para o que vivemos e sentimos, porque podemos ler-nos neles, descrever-nos, a nós, aos nossos mundos, invocar para fora de nós o que, de outra forma, esconderíamos.
Olha a tua estante, vê-te em todos os teus livros, guarda-os como um tesouro.
Livro Vs Filme
O debate entre livros e filmes vem de longe e, vamos já admitir, todos nós temos o coração dividido.
São paixões e desilusões que nunca mais acabam, sem conseguirmos resistir-lhes.
Se os livros são a nossa paixão e os filmes, em mais vezes do que seria aceitável, as grandes desilusões, ambos são merecedores do nosso amor e tolerância em troca das histórias que nos permitem viver.
No episódio de hoje falo-te sobre os nossos livros transformados em filmes e estas duas artes que nos dividem o coração.
Bem-vindo!
Há alguns anos atrás, durante uma reunião familiar, um primo meu com cerca de onze ou doze anos, chegou-se perto de mim e com um ar muito solene e toda uma postura de quem quer parecer o mais crescido possível: perguntou-me se eu era a prima escritora, eu gostei do interesse dele e disse-lhe que sim, que era. Ao que ele me respondeu: pois, era para te dizer que eu ainda li nenhum dos teus livros, porque estou à espera que façam o filme.
Quem estava por perto desatou a rir e eu, como imaginam, agradeci ao meu querido primo a confiança inabalável no sucesso dos meus livros, que mesmo sem os ler, ele não parecia ter qualquer dúvida sobre um futuro garantido na sétima arte.
Ter um livro adaptado para filme, é, sem dúvida, um marco na vida de qualquer escritor, um corar do sucesso do seu trabalho. No entanto, o resultado final é uma incógnita.
Se eu gostaria de ver o nosso Formiga e a vila de Mont-o-Ver no ecrã? Sim.
Se esse seria um daqueles sonhos tornados realidade que três segundos depois virava pesadelo? Muito provavelmente, sim.
A adaptação de um livro em filme (ou série televisiva) é um trabalho criativo gigante! E há tanta coisa que pode correr mal, e que provavelmente correrá, ou não seria tão célebre aquela frase: o livro é melhor do que o filme!
Os gostos são subjetivos e as opiniões questionáveis, mas não parecem sê-lo quando se trata deste tema.
Porque são os nossos queridos livros considerados melhores do que os filmes?
Bem, podemos começar pelo seu talento na atenção aos detalhes, detalhes da história, dos cenários, das personagens, referir a proeza do seu vocabulário rico que tanto nos encanta, e a “nossa” relação com ele. Leitor e livro é um assunto privado, silencioso, íntimo. Construímos com os livros um universo de liberdade para imaginarmos, à nossa vontade e ritmo.
Há que admitir que esta é uma experiência imersiva difícil de superar.
Mas existem várias razões que explicam, logo à partida, as dificuldades que os filmes enfrentam nesta competição, talvez até desleal, com os livros, e que talvez nos façam compreender mais facilmente tantas das suas tentativas fracassadas.
Como em tudo na vida, o tempo é essencial, e os filmes são obrigados a reger-se pelo relógio, o que os leva a ter de apresentar uma versão corte-e-costura da história original, em que grandes porções são deixadas para trás para cumprir pré-requisitos.
Este desrespeito pelo enredo tende a deixar bastantes de nós furiosos, em especial os mais aficcionados.
Porque é justamente o leitor “mais aficionados” quem dedicou mais de si, do seu tempo e imaginação, a construir o universo com o escritor e o viveu na sua maior plenitude.
Ao ver um filme, esta imaginação de leitor não tem lugar, é-lhe apresentado uma recriação pronta a viver, e, como toda a gente sabe, ninguém imagina uma personagem principal com o mesmo rosto, cada um de nós tem o seu próprio Padre Amaro e a sua Amélia, o seu Carlos da Maia e a sua Maria Eduarda.
É difícil, senão impossível até, traduzir palavras para imagens, por isso se chamam adaptações.
As duas formas de arte têm como nos apaixonar, e os filmes, mesmo que em grande desvantagem quando se aventuram a adaptar o universo dos livros, conseguem em certas ocasiões, surpreender-nos à boa maneira da regra que tem sempre as suas exceções (e nós que bem gostamos delas)
Pois se olharmos para os nossos também queridos filmes eles são ótimos companheiros no que respeita a ajudar-nos a desvendar enredos complicados e narrativas intrincadas de alguns daqueles escritores (que não vou mencionar mas vocês bem sabem de quem falo) aqueles escritores que não nos facilitam em nada a vida e nos obrigam a ler três vezes o mesmo parágrafo até conseguirmos perceber o que diabos nos está a querer dizer.
Os filmes conseguem combinar experiências sensoriais, juntar uma experiência visual e o sentido da audição à história, e isto tem assumido especial importância nos últimos anos, em que temos assistido a um avanço na tecnologia de imagem, som e efeitos especiais que tornaram possível a adaptação de obras de fantasia, que até agora não foi possível recriar.
E… há muitas pessoas como o meu querido priminho, que simplesmente preferem filmes a livros.
Numa procura no Google podes encontrar muitas listas que prometem exceções, filmes imprevisíveis que superaram os livros nos quais foram baseados.
A minha lista é bem curta e se quiseres pôr-me a prova, vê estes filmes:
Expiação, com a Keira Knightley e o James MacCavoy
Clube de Combate, com Brad Pitt e a maravilhosa Helena Bonham Carter
Psicopata Americano, com Christian Bale
Este país não é para velhos, com Ravier Bardem
Silêncio dos Inocente, com Anthony Hopkins e Jodie Foster
O Diário da nossa Paixão, adaptação de um dos muitos bestsellers do Nicolas Sparks e que só os mais duros conseguem terminar de ver sem uma lágrima no canto do olho.
E um filme de animação, para colorir esta lista de recomendações:
O Fantástico Sr. Raposo, a quem George Clooney dá voz numa adaptação inteiramente filmada em stop motion que se tornou num dos meus filmes favoritos deste género.
Não quero com isto, obviamente, dizer-vos que não devem ler estes livros, porque sim, devem lê-los se tiverem a oportunidade, no entanto estas adaptações saíram-se MUITO bem no que diz respeito a tirar uma história do papel e a colocá-la no grande ecrã.
Estas são duas artes que se complementam, os livros são uma matéria-prima riquíssima para o cinema.
Falar sobre a comparação entre livros e filmes é como escolher entre laranjas e tangerinas, são ambos citrinos mas de sabores bem distintos.
Leitores facilmente preferem o livro, os cinéfilos facilmente escolhem o filme. Para compreender as suas escolhas, é fácil, temos apenas de considerar o melhor de ambos.
Somos todos grandes fãs das nossas histórias, contadas da forma como mais adoramos vê-las contadas.
Os filmes são uma experiência possível de partilhar, com amigos, a família, alguém especial.
Na leitura, há intimidade, estamos a sós com um livro e personalizamos a sua história, tornando-a, só nossa.
É uma relação a longo termo, esta nossa química com os livros, nas horas, dias, semanas de refúgio silencioso num mundo interior. Eles são imaginação materializada em papel, que seguramos nas mãos, abrimos e fechamos à nossa vontade, acariciamos, e está sempre à nossa espera.
O melhor de ambos, livros e filmes, é que não precisamos de escolher. Podemos ter cada um deles no momento certo, aproveitar o melhor dos dois e viver a arte como ela deve ser vivida, história a história.
Desistir de uma leitura? Eis a questão!
É inevitável, todos nós já tivemos um certo livro nas mãos que não se revelou à altura das expectativas e, a determinado momento, vimo-nos apanhados no dilema: devo desistir? Ficar por aqui. Ou, devo persistir? Continuar a penosa experiência que está a ser a leitura?
Apesar de não haver uma escolha certa ou errada entre estas duas opções, todos nós temos a nossa opinião pessoal sobre abandonar uma leitura, se o fazemos, se não o fazemos, o porquê e em que circunstâncias ou sob que critérios.
Neste episódio vou partilhar os melhores argumentos a favor e contra, para que da próxima vez que estiveres perante esta decisão, não te restem dúvidas do que queres fazer.
Bem-vindo!
Há alguns episódios atrás, no episódio intitulado “Tantos livros e tão pouco tempo”, falei-te sobre esta nossa vontade de ler mais. Não importa quantos livros lemos porque gostávamos sempre que fossem mais alguns. E apesar das dicas que partilhei para conseguirmos tirar um bocadinho mais partido do pouco tempo que temos para ler, no final das contas o dia tem 24 horas e 8 delas devem ser para dormir e nada muda isso.
Com esta limitação do tempo para as nossas leituras, convém que ele seja dedicado a livros que nos dão prazer a ler. Isto, seria possível num mundo perfeito em que todos os livros que nos vem parar às mãos se revelam ser tudo aquilo que nós leitores sonhamos que eles serão, naquele momento de euforia em que o escolhemos na livraria e decidimos levá-lo para casa, porque afinal, é para esses momentos maravilhosos que vivemos: quando folheamos mais um livro favorito, não é verdade?
Só que o mundo não é perfeito e quando finalmente abrimos o dito livro para o ler, muitas vezes ele revela-se uma desilusão.
O ambiente da história não nos cativa nem envolve Vem com personagens que nos deixam indiferente ou não são de forma nenhuma credíveis Com um enredo em que nos perdemos (não pelos motivos certos) mas porque já nos esquecemos do fio condutor e é preciso voltar atrás, reler a frase, o parágrafo completo porque de repente estamos mas é a pensar no que vai ser o jantar E lá nos pomos a contar as páginas que ainda faltam para acabar… …ou simplesmente até poderá ser um bom livro, mas aquele é o momento errado…Sejam quais forem as razões para o descontentamento, se não o abandonamos, pelo menos pensamos em fazê-lo.
E é aqui que surge a grande dúvida:
É aceitável desistir de um livro?
Esta é a pergunta da discórdia…. Porque na verdade existem bons argumentos contra e a favor desta decisão tão difícil de parar uma leitura e abandonar uma história muitas páginas antes do seu fim.
A hesitação em desistir até é fácil de entender:
Quando escolhemos ler um livro há uma vontade em nós de entrar no mundo que ele guarda e fazer parte dele, de descobrir até onde o autor nos quer levar… e essa disponibilidade, mental e emocional, leva-nos a querer honrar a nossa decisão, uma espécie de compromisso privado e silencioso que assumimos para connosco mesmos e indiretamente com o autor.
Há aquela esperança de que, mais lá para a frente, com mais algumas páginas as coisas comecem a correr melhor, que o que não entendemos passe a fazer sentido e que as personagens a que somos indiferentes finalmente nos emocionem.
Afinal, se já nos aconteceu antes, isto de um livro começar morno e depois levar um volte de face que acaba por o redimir, pode acontecer novamente, mas só se persistirmos na tortuosa leitura por páginas que parecem não ter fim.
Noto que isto acontece com muitos leitores especialmente quando se trata de livros que são amplamente divulgados e muito elogiados, porque se toda a gente parece gostar deles, com certeza que alguma coisa nos está a escapar.
E lá persistimos, muitos de nós como bons católicos que somos e bem educados a não nos deixarmos vencer por insignificantes tormentos. As dificuldades de uma luta são professores experientes que nos deixam mais fortes e orgulhosos na conquista da última página, contra tudo e contra todos, incluído sono, tédio e frustração.
Desistir significa assumir que fizemos uma escolha errada, e sabemos que isso não é fácil para ninguém.
Depois há sempre aquela opção intermédia, também a favorita de muita gente: pousar o livro num cantinho, com a página marcada e a promessa de voltar a ele mais tarde, ainda que esse mais tarde seja dali a alguns anos.
Mas há quem garanta que não tem dúvidas nem hesitações.
Quando não sente prazer na leitura de um livro, ele é posto de lado, sem peso na consciência, se considerações sobre o “talvez” mais há frente ou “talvez” melhore… se não é o livro certo, não é o livro certo, o facto de “ainda” estarem nos primeiros capítulos é antes vistos como “já” foram lidos os primeiros capítulos.
Como consta da teoria do copo meio-cheio e meio-vazio é uma questão de perspetiva.
O principal argumento referido por quem não tem hesitações em deixar um livro de lado é: o tempo é limitado e existem demasiados livros bons para serem descobertos.
Quanto a mim, é sabido, em episódios anteriores aqui no podcast já assumi que me incluo neste grupo de leitores. O tempo é limitado e existem demasiados livros bons para serem descobertos.
Mas para cada leitor disposto a desistir, os critérios que segue para tomar essa decisão são muito pessoais.
Pode ser a regra das 100 páginas, de ler pelo menos 100 páginas, ou então 100 páginas menos a própria idade… que é a minha favorita (quanto mais velhos somos menos tempo temos a perder com hesitações e a minha tolerância será reduzida muito em breve para as 60 páginas)
Há também a regra dos terços, de ler pelo menos um terço do número total de páginas de cada livro e então tomar uma decisão.
Algumas regras como estas (e os mais variados e incontáveis critérios que possamos criar) podem ser uma boa ajuda, mas acredito que esta é uma decisão essencialmente de instinto. Cada leitor sabe, sente, quando uma leitura não é o que deveria ser.
Se para alguns esta é uma decisão muito fácil (desistir ou persistir), na minha experiência pessoal, não o foi. E neste episódio estão todas as razões que durante muito tempo me fizeram hesitar.
Ao fazer um balanço, não sinto qualquer arrependimento pelos livros que deixei para trás porque mudou a minha relação com a leitura para melhor.
Hoje dedico mais atenção e cuidado à escolha dos livros e sou mais consciente nas compras que faço. Se tenho dúvidas, leio algumas páginas na livraria antes de comprar, ou vou espreitá-los à biblioteca.
Ofereço ou vendo grande parte dos livros que abandono, e fico apenas com alguns, os que identifico como bons livros que tiveram o azar de se cruzar comigo na altura errada, e aos quais pretendo voltar no futuro. Porque os nossos gostos literários também mudam ao longo do tempo, às vezes sem darmos conta, às vezes de um dia para o outro.
Para mim desistir de um livro é sem sombra de dúvida consequência de o tempo ser um bem limitado. Pois asseguro-vos que a partir do momento em que alguém descobrir um comprimido para a vida eterna, de preferência que inclua manter as minhas faculdades básicas a operar na sua plenitude, nunca mais desistirei de um livro! Fica aqui a promessa.
Já é tão difícil conseguir ler entre o tumulto que nos rodeia lá fora. O livro que estamos a ler não deve tornar os nossos dias ainda mais difíceis.
Abandonar um livro não é um defeito de personalidade ou caráter, é apenas uma opção.
É normal hesitarmos?
É, porque investimos num livro mesmo antes de o começar a ler, investimos energia na sua escolha, dinheiro na sua compra e tempo na leitura daqueles primeiros capítulos que nos começaram a desiludir e nos fizeram ponderar.
É normal hesitarmos porque está na nossa natureza ligarmo-nos a histórias, mesmo que estas não sejam do nosso agrado, que as suas personagens não nos cativem, queremos saber como terminam, qual o seu destino final, se é feliz ou infeliz, justo ou injusto, há uma curiosidade em nós que nem a desilusão consegue apagar.
Mas hesitamos porque “parece mal desistir” ouvimos dizer “desistir é para os fracos”.
Há tanto mérito em desistir de um livro, ou de qualquer outra coisa que não sentimos ser boa para nós, como em persistir na sua leitura e manter-nos fiéis a uma história que, mesmo sem nos agradar, mesmo a testar os limites da nossa vontade, sabemos que terminá-la tem um propósito.
Nunca desistas de um livro, ou de fazer qualquer outra coisa, se fazê-lo vem com um propósito, e se concretizá-lo faz parte de um plano maior.
Desistir ou persistir? Só tu o saberás.
O que aprendi com... Isabel Allende
Ela decidiu escrever uma carta ao avô e essa carta transformou-se numa história mágica chamada A Casa dos Espíritos.
Isabel Allende está entre as grandes escritoras da língua espanhola, traduzida em mais de 40 idiomas, e o seu primeiro livro A Casa dos Espíritos foi um daqueles raros sucessos de estreia, com o qual todos os autores sonham e temem.
Porque escrever um bom primeiro livro é um desafio que alguns superam, mas é no segundo livro que um verdadeiro escritor se prova.
Isabel Allende provou-se uma escritora GIGANTE, e uma mulher de dimensão a condizer, que me ensinou que:
Uma grande história pode ser escrita na mesa de uma cozinha no silêncio da noite Que o feminismo pode até ser antigo, mas nunca passou de moda E que escrever e viver… são ambas artes a praticar sempre com paixão!Bem-vindo a mais um episódio!
Isabel Allende escreveu o seu primeiro livro aos 40 anos. Disse: “Se eu tivesse nascido homem, teria escrito as minhas memórias aos 19 anos. Mas nasci mulher, nos anos 40, numa sociedade muito conservadora, católica e fechada, onde era esperado que as mulheres fossem mães, de alguém, esposas e talvez, que fizessem algum trabalho para ajudar nas despesas mensais mas não era suposto que fosse bem-sucedidas em nenhuma área que fosse dos homens.”
Sem uma figura-modelo feminina na literatura, Isabel Allende tornou-se jornalista e manteve guardado um sentimento, um desejo de escrever histórias, que, nas palavras da própria “nunca se atreveria a pronunciar” pois “seria tão arrogante tão presunçoso” dizê-lo.
Depois do golpe militar no Chile, exilou-se na Venezuela onde teve grande dificuldade em encontrar trabalho como jornalista e se manteve a guardar as histórias que tinha dentro de si.
Até… 8 de janeiro de 1981.
Tudo começou na mesa da cozinha, com uma carta destinada ao seu avô, escrita ao longo de muitas noites, e que veio a tornar-se no seu primeiro livro (e que livro!) intitulado A Casa dos Espíritos.
Todas as suas futuras histórias, os seus livros que se seguiram também começaram a 8 de janeiro, porque esta é a data em que Isabel Allende escolheu começar a escrever todos eles. Isto sim, é superstição e método!
Com o sucesso de A Casa dos Espíritos o seu agente de então disse-lhe que “sim, este é um bom livro, e está a sair-se muito bem, mas não faz de ti uma escritora, um escritor prova-se no segundo livro; porque toda a gente consegue escrever um bom primeiro livro no qual colocam tudo de si mesmos, tudo o que são, é o segundo livro que faz de ti uma escritora.”
Então Isabel Allende pôs-se de imediato a escrever um segundo livro para se provar escritora. E como veio a consegui-lo de forma majestosa!
Hoje são mais de 20 livros publicados em mais de 40 idiomas e neles alguns temas são recorrentes, como o misticismo, labirintos de coincidência, premonições, sonhos, intuições, magia e também a violência, morte, questões sociais e políticas, a liberdade.
E as mulheres, mulheres fortes e protagonistas das próprias vidas, são transversais aos livros de Isabel Allende.
O seu feminismo é tão conhecido quantos os seus livros e é possível vê-lo espelhado nas histórias que conta assim como em muitas das entrevistas que podemos encontrar numa pesquisa rápida pelo Youtube.
Numa palestra TED, intitulada Contos de Paixão, ela partilha diversas histórias de mulheres anónimas, mas incríveis, dando visibilidade a situações de discriminação, injustiça e violência que continuam a ser uma realidade para muitas mulheres.
O feminismo pode até ser antigo, mas nunca passou de moda, diz ela, se não gostam da palavra, inventem outra, porque os ideais que defende continuam a precisar de ser defendidos por todos, homens e mulheres.
Apesar de o mundo ocidental ter feito, sem dúvida, grandes progressos nas últimas décadas, não esqueçamos o resto do mundo, que ele não tem avançado ao mesmo ritmo, e todas as mulheres que continuam a viver nele.
Isabel Allende é uma escritora que foi além do enorme poder das suas palavras e criou uma fundação dedicada a apoiar programas que promovam e preservem direitos fundamentais de mulheres e crianças.
Ouvi Isabel Allende falar sobre o seu processo de escrita e, tal como já a imaginava, ela descreve-o de uma forma tão honesta e simples que só poderia ser inspirador.
Ela diz que quando se senta para escrever, pensa apenas na história… e ao dizê-lo ilumina-se com um sorriso dos verdadeiros apaixonados pela sua arte…
então, começa, como sabemos, a 8 de janeiro, depois de ter feito antecipadamente as pesquisas que considera necessárias, de ter todas as peças de um puzzle que será o cenário da sua história, foca-se na personagem sobre a qual pretende escrever… ela dá o exemplo do livro “A Ilha Debaixo do Mar” que era sobre uma mulher escrava… e esse é o ponto de partida, ela tem uma “imagem” desta mulher, sabe quem ela é… mas a sua história, o que vai acontecer-lhe, ela não sabe… à medida que vai escrevendo, a história surge e desenvolve-se por si própria… com paciência… até que a personagem faz algo inesperado e é aí que a história se impõem e passa a existir… a fluir.
As restantes personagens surgem à medida que vão sendo necessárias, explica-nos: Se existe uma mulher escrava, é necessário um mestre, e uma família, e outros escravos, e pessoas que ajudem esta mulher a conseguir a sua liberdade, alguém apaixonado por ela.
Dito assim, parece tão simples, não é?
Para mim, sentar-me para escrever sem saber o que vou escrever, não é sequer uma possibilidade. Passo vários meses a arquitetar a estrutura de um novo livro, a delinear a história, dias e dias em longos diálogos com as minhas personagens, a ponderar como as vou dar a conhecer, capítulo a capítulo.
Há muito pouco de impulsivo, improviso nas minhas histórias. Adoro escolher as palavras trabalhar as frases, usar tudo o que a nossa lingua maravilhosa, a lingua portuguesa, nos permite fazer.
Não deixa de ser curioso, entre tantas incongruências deste nosso espírito humano, também esta: a da nossa procura por um idealismo espiritual e de valores, quando o que mais nos fascina são os defeitos, os nossos, ou dos outros, os das personagens nas histórias que não conseguimos esquecer, aquelas personagens tão imperfeitas que ignoraram as regras, abdicam da segurança, não ouvem bons conselhos e quase sempre sofreram as consequências.
Tolstoi deu-nos Ana Karenina; Gustavo Flaubert, Madame Bovary; Dostoevsky, Raskolnikov… Isabel Allende Esteban Trueba.
Porque como ela própria diz: pessoas simpáticas com bom senso não fazem personagens interessantes.
Se assim é, o que as torna desinteressantes?
Será que procuramos nos livros que lemos mais do que ideais? Ou antes, mais do que os simples ideais daquela espécie que a sociedade nos oferece de bandeja numa versão simplificada da fórmula para a felicidade?
Procuramos talvez identificação, a garantia de que não estamos sozinhos, em especial, nos nossos defeitos.
“Em quase todas as famílias há um idiota e um louco.” Lemos numa das páginas de A Casa dos Espíritos.
Criadora de personagens inesquecíveis, ela define como essencial: um coração cheio de paixão, porque, é sempre o coração que nos move e nos determina como pessoas.
“Eu quero tornar este mundo bom” diz Isabel Allende “não melhor, bom, porque não? Se é possível.”
Quem é quem? Os pseudónimos.
Os nomes são especiais, eles têm significados, uma história e poderes, especialmente sobre quem os utiliza.
Em tempos, os pseudónimos permitiram às mulheres o acesso à criação de uma arte que estava reservada aos homens, deram várias vidas a quem não conseguia ser apenas um, e novas identidades a quem precisava delas.
Pseudónimo, pen name, a nom de plume são denominações do nome que alguns escritores utilizam para assinar os seus livros em vez do seu nome legal.
Os motivos pelos quais escritores, e outros artistas, utilizam pseudónimos são muito variados e é sobre o mundo deles, dos seus nomes e identidades, que falo neste episódio.
Bem-vindo!
Alguma vez pensaste sobre o teu nome? Talvez até tenhas questionado os teus pais sobre o porque da escolha ou pesquisado no Google, e o que encontraste?
Mesmo que não tenha sido o teu próprio nome o foco da tua curiosidade, poderá ter sido o de um primeiro amor, talvez te tenhas surpreendido como eu, com a profundidade que algumas palavras adquirem ao longo do tempo quando descobrimos o significado e as histórias por detrás delas.
Não é por acaso que a escolha de um nome para um bebé é tão importante e até, se és um aficcionado da escrita como eu, os nomes das nossas queridas personagens.
Então é fácil extrapolar a importância de escolhermos o nosso próprio nome, sob o qual vamos criar e expressar a arte da escrita, um pseudónimo.
Pseudónimo, pen name, a nom de plume, estas são as denominação de um nome que os escritores escolhem e utilizam para assinar os seus livros em vez do seu nome legal.
As razões para o fazerem são quase tão infinitas quanto as variedades de escolha dos próprios nomes e vão desde o desejo de esconder a sua verdadeira identidade, passando por estratégias de vendas, ou escrever outros géneros literários e até diferentes personalidades.
Sim porque um pseudónimo é a simples troca de nomes, que tem como parente mais sofisticado o heterónimo o heterónimo vai mais além do nome, ele é uma aventura muito mais criativa neste mundo da troca de identidades.
Qualquer leitor que esteja familiarizado com literatura portuguesa sabe que Fernando Pessoa é o mestre dos heterónimos, e para quem estudou em Portugal com certeza sofreu para conseguir dominar as dezenas de heterónimos (cerca de setenta) entre os quais se destacam Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos.
Bernardo Soares (este último há quem lhe chame semi-heterónimo, porque tinha uma personalidade bastante parecido com o próprio Fernando Pessoa e não sei devem achar que seria batota)
Para todos eles, F. Pessoa inventou, não só nomes para assinar os seus textos e poemas, como também biografias é toda uma vida com detalhes como data de nascimento e morte, profissão, personalidade, fisionomia e até carta astral (porque Pessoa era um apreciador de astrologia).
Seja um pseudónimo ou heterónimo as razões pelas quais alguém recorre a eles são todas muito pessoais pois o que há de mais íntimo do que o nosso próprio nome?
E quando não só o nome, mas também o género muda?
“Durante grande parte da história, 'anónimo' era uma mulher.”
Esta é uma afirmação bem conhecida e durante muito tempo, assim foi; diversos autores “homens” no mercado, ou anónimos eram na realidade mulheres.
Na literatura universal, talvez as irmãs Bronte sejam o exemplo mais conhecido, Anne, Charlotte e Emily que escolheram os seus novos nomes que começava com a inicial dos verdadeiros nomes. Assim, Charlotte passou a ser Currer, Emily adotou o nome de Ellis e Anne Acton. Todas escolheram o sobrenome Bell.
Só após a morte da Anne e da Emily é que as suas verdadeiras identidades foram reveladas.
Charlotte Brontë disse: “não nos afirmamos como mulheres porque sem suspeitarmos na altura que a nossa forma de escrever e pensar não era o que se chama ‘feminino’ tínhamos uma vaga impressão que as autoras estavam sujeitas a ser vistas com preconceito.”
Do trabalho das três, o romance de Emily “O Monte dos Vendavais” é talvez o que atingiu maior notoriedade.
Em português, temos a Irene Lisboa que escreveu sob o nome João Falco entre outros, e que embora não tenha alcançado notoriedade entre o público sempre foi elogiada pelos seus pares.
Como exemplos contemporâneo, posso mencionar os mais conhecidos com a J.K. Rowling que adoptou o pseudonimo Robert Galbraith e a Nora Roberts J. D. Robb que escolheram nomes masculinos, para entrar num género literário, Crime e Mistério.
Na lista de razões para escolher um pseudónimo, Stephen King, o mestre do terror adicionou uma pouco convencional para qualquer autor ou autora. Era então um jovem e talentoso escritor cheio de histórias… tantas que, como editoras impunham um limite de publicação de um livro por autor por ano e se recusavam a publicar mais do isso, Stephen King resolveu o problema ao escrever sob o pseudónimo de Richard Bachman.
E há até quem se esconda atrás de um pseudónimo por vergonha.
Pascal Mercier autor do livro Comboio noturo para Lisboa, é o pseudónimo literário usado pelo filósofo Peter Bieri. (espero estar a pronunciar bem)
Nas palavras do próprio, diz:
"Enquanto professor receei colocar a minha reputação académica em causa quando comecei a escrever ficção. Precisava de me esconder atrás de um pseudónimo para ter a coragem de me libertar na escrita."
Os exemplos por cá, também são muitos Fernando Pessoa é apenas a árvore maior numa floresta bem portuguesa cheia de pseudónimos.
Almeida Garrett, era na verdade João Baptista da Silva Leitão.
Bocage, o nosso poeta mais libertino, usou o nome Elmano Sadino, que, dizem, não ter durado muito até ser descoberto quem era porque escreveu críticas ferozes contra os pares.
Júlio Dinis, autor d’As Pupilas do Senhor Reitor, era o médico Joaquim Guilherme Gomes Coelho.
Teixeira de Pascoaes era Joaquim Pereira Teixeira de Vasconcelos;
José Régio era José Maria dos Reis Pereira;
António Gedeão, um dos poetas mais queridos do meu coração, autor do belíssimo poema Pedra filosofal que nos escreveu:
“Eles não sabem que o sonho é uma constante da vida, tão concreta e definida como outra coisa qualquer” O seu verdadeiro nome era Rómulo Vasco da Gama de Carvalho.
E dois vencedores do Prémio Camões:
Miguel Torga, chamado Adolfo Correia da Rocha; e o grande Eugénio de Andrade que era José Fontinhas.
Para terminar com um exemplo mais contemporâneo, o nosso Valter Hugo Mãe, que na verdade não é Mãe, é Lemos.
Quanto à minha experiência pessoal neste universo de pseudónimos, como já referi em várias entrevistas, a necessidade de um novo nome surgiu com a mudança do meu estilo de escrita.
Os primeiros livros que publiquei eram de Fantasia Urbana e quando estava a escrever o Onde Cantam os Grilos senti que a minha voz literária mudara e que me estava a tornar numa outra escritora e por isso… não poderia continuar a usar o mesmo nome.
A escolha do meu pseudónimo foi fácil… não imagino como terá sido para todos estes autores que referi, e para os muitos mais que ficam em falta… mas para mim foi apenas uma mudança para nomes que já faziam parte da identidade da minha família. Maria Issac poderia ter sido o meu nome se alguém se tivesse lembrado disso.
Confesso que, tal como as mulheres autoras que mencionei no início do episódio, também ponderei um nome masculino, que seria possível usá-lo pelo anonimato que assumi durante os anos iniciais até recentemente com a publicação do O Que Dizer das Flores.
Era muito simples a minha escolha, mas os caminhos eram muito diferentes.
Estou muito feliz com a minha decisão, porque me permitiu ser autêntica com a minha identidade, estar aqui, a falar contigo e dar o meu pequeno contributo para continuarmos a trabalhar para uma mudança nos paradigmas.
Na definição do próprio Fernando Pessoa, publicada na revista Presença; ele diz:
"A obra pseudônima é do autor em sua pessoa, salvo no nome que assina; a heterônima é do autor fora da sua pessoa; é duma individualidade completa fabricada por ele, como seriam os dizeres de qualquer personagem de qualquer drama seu".
(Fernando Pessoa, revista Presença, nº 17. Coimbra: Dez. 1928).
O nome, a identidade, é algo poderoso. Permitem aos outros fazerem julgamentos e avaliarem-nos com base em preconceitos imediatos. Embora possa parecer injusto, não há outra forma, porque a nossa mente, para o melhor e para o pior, não funciona de outra forma.
Nomes e identidades são as primeiras impressões tal como a forma como nos vestimos, caminhamos, falamos, tudo, num primeiro olhar.
Quanto é decidido por nós e quanto temos o poder de decidir por nós próprios?
Tal como um livro, a sua capa e a história que guarda, assim somos nós, homens e mulheres, com os nossos nomes e as nossas histórias.
Um pseudónimo permite-nos escolher um nome, um heterónimo, toda uma identidade.
Não importam as razões ou circunstâncias para uma mudança, basta que seja desejada que nos faça sentir mais verdadeiros e autênticos, seja em privado, na escrita de um diário, nos diálogos secretos do dia a dia na segurança dos pensamentos; ou seja em público, sob holofotes e o olhar de desconhecidos.
Só tu sabes quem és, qual é o teu nome, ou quais são os teus nomes e assim tal como os grandes autores deves ter coragem e usá-los.
June 23, 2022
De onde vêm as histórias?
O que é um escritor, senão um contador de histórias?
Alguém que olha o mundo à sua volta, o interpreta, o imagina para depois o partilhar.
O que é a vida, senão uma história?
Uma história que vivemos, que vamos contando a nós próprios e nos define, a cada um de nós, aos nossos olhos, aos olhos dos outros.
Nascemos, e a história começa. Morremos e a história acaba… ou talvez não.
De onde vêm as histórias? De nós? Dos outros?
Seja de onde for, histórias há muitas, e por isso hoje falo-te da magia nelas.
Bem-vindo a mais um episódio!
Era uma vez...
Todos nós somos facilmente encantados por estas três palavras.
Em crianças, elas começaram por nos ajudar a criar laços com as vozes que as contavam, pais, irmão, avós, professores… e se parares agora mesmo, só por alguns segundos, e te lembrares de uma das tuas histórias favoritas, tenho a certeza de que ainda a ouves contada pela voz de quem a partilhou contigo.
Queres experimentar? Coloca-me em pausa por alguns segundos de silêncio.
Os contos infantis ajudaram-nos a fazer sentido da realidade, a ter um vislumbre de compreensão sobre temas e assuntos que em certa altura ainda eram demasiado complexos para a nossa compreensão, alguns deles continuam a sê-lo.
Crescemos e, ainda nesta vida de adultos, mantemos na memória essas histórias infantis, que tantas vezes servem de alicerce para construirmos a nossa própria história, a nossa narrativa de vida.
Quem sou eu entre tantos? Qual o meu papel?
Se dou uma esmola a quem me pede, sou generoso? E se nesse mesmo dia cometo um erro, um ato de egoísmo, continuo a sê-lo?
Seja qual for a interpretação que decidamos seguir, as histórias fazem parte do nosso imaginário e da vida de cada um de nós.
Se os contos infantis nos ajudam a construir alicerces, ao longo da vida, as histórias nos livros que lemos vão continuando a ter esse mesmo papel, o de expor a complexidade do que somos, através de personagens que amamos, ou amamos odiar, e nesse faz de conta, a vida vai fazendo um pouquinho mais de sentido.
Quem éramos antes, quem somos agora. Nós mudamos e as histórias mudam connosco.
E assim se torna tão fácil perceber porque lemos de forma diferente ao longo da vida. Porque motivo aos 15 anos adorava ler a coleção “Uma Aventura…” ou a “Arrepios”, porque me viciei na série “Crepúsculo” no final da adolescência e depois nos romances históricos da Philippa Gregory, mais tarde já nos meus vintes, devorei John Fante e Bukowski e Henry Miller, até a uma paixão por Paul Auster que começou aos meus 30 e com grandes autores de língua portuguesa como Mia Couto e Jorge Amado de quem já falei aqui e muitos outros cuja admiração talvez nunca terá fim.
Num episódio anterior aqui do podcast intitulado “Há um livro para isso!”, se te recordas, falei sobre a biblioterapia, um género de terapia que assenta na crença de que os livros podem confortar-nos, atenuar sofrimento e trazer-nos até alegria.
A prescrição de livros é feita por um terapeuta (biblioterapeuta) especialista na recomendação personalizada de livros e que ajuda o seu paciente ou leitor na interpretação de uma determinada história que possivelmente o ajudará a lidar com as dificuldades emocionais de um determinado momento da sua vida.
Para nós leitores a ideia não é totalmente inovadora.
É neste exercício de interpretação dos livros que praticamos a interpretação dos outros, das pessoas que nos são próximas, das que são distantes, e vemos tanto daquilo que, mesmo na nossa diferença, partilhamos.
Uma das lições dos clássicos: de que independentemente da passagem do tempo e da enorme mudança das sociedades e das culturas, nós continuamos essencialmente os mesmos: humanos que desejam sobreviver, que se preocupam com quem mais amam, que sofrem por esse amor, que perseguem sonhos e dias melhores.
Podemos começar por um dos livros mais antigos do mundo, o primeiro a ser impresso e que é o exemplo maior no que diz respeito a uma coletânea de histórias: a Bíblia.
Quem não conhece a história de Adão e Eva? Quem não sabe tudo o que quiseram ensinar-nos ao longo dos séculos com ela? Todo o poder e a influência que este livro, estas histórias vêm tendo.
Na literatura, no cinema, teatro, nas artes em geral, fazemos interpretações, da bíblia, de tantas outras histórias, de partes delas. Porque quando partilhada, a história transforma-se, nunca é a mesma.
Tal como disse Samuel Johnson, um dos homens mais distintos da literatura inglesa, numa frase sua com que me cruzei recentemente:
“Um escritor apenas inicia o livro. O leitor termina-o.”
Todos temos as nossas histórias preferidas, especialmente nós os leitores e se assim é, como e o quanto estas nos influenciam?
As que adoramos, fazem-nos sonhar, tornam-nos mais felizes e até arrojados para conquistarmos mais, sermos melhores.
As que odiamos, ou tememos, deixam-nos alerta, apertam-nos o coração, por vezes aprisionam-nos sem darmos por isso, porque nos condicionam.
Falo destas histórias, as dos nossos livros, e também aquelas que permanecem na nossa cabeça e mesmo sem nunca existirem em papel, são reais para nós.
O que é a vida, senão uma história?
Nascemos, e a história começa. Morremos e a história acaba, ou talvez não.
Literatura de terror: medo e a coragem para o enfrentar
“O medo é uma coisa maravilhosa, em pequenas doses.” disse Neil Gaiman.
No mês do horror e do assustador, falo-te deste género literário que tem sido uma incógnita para mim, porque como qualquer leitor, também sigo a tentação das minhas paixões literárias e sou negligente com tudo o resto.
No episódio de hoje, falo sobre o fascínio pelas histórias sombrias e sobre o muito do que elas nos oferecem para conseguirmos enfrentar os nossos medos.
Bem-vindo, a mais um episódio.
Porque razão contamos histórias assustadoras? Porque as escrevemos e as ouvimos? Qual a razão de ser deste prazer que surge em histórias que não têm outro propósito senão assustar-nos?
Eu não faço ideia… mas talvez a resposta faça parte do próprio mistério dos contos de terror. Eles são mais antigos do que os esqueletos e os fantasmas que os protagonizam, mais mágicos e diabólicos do que as suas bruxas, lobisomens ou mortos-vivos.
Neste época do ano, temos o ambiente perfeito para percorrer as nossas prateleiras e procurar por aquele livro de horror que compramos para ler “um dia”.
Eu não tenho muitos, aliás, a verdade é que só encontrei dois. O clássico, que talvez também tenhas, de contos de Edgar Allan Poe e um outro dos contos dos irmãos Grimm.
Como qualquer leitor, sigo as minhas paixões literárias, os géneros e escritores que me dão prazer a ler e vou deixando tudo o resto para depois.
A literatura de terror, ou horror, ou gótica ou noir, nas suas diversas variantes de nomenclaturas e sub-géneros, pertencem a uma categoria com a qual, até hoje, não me identifico enquanto leitora, mas que ainda assim me deixa curiosa.
Trouxe para casa estes livros com coletâneas de dois clássicos do horror justamente por curiosidade. Não importa se se gosta ou não do género, ou até de leitura, estes são nomes que fazem parte do imaginário do mundo ocidental quando se fala em terror.
Edgar Allan Poe, poeta norte-americano, que morreu de forma triste e assustadora como tudo aquilo que escreveu. Deixou uma obra diversa com poemas, contos, romances.
É considerado o fundador dos géneros de mistério e horror como estilos literários. O seu poema mais famoso é “O Corvo”, e tal como este, muitas das suas obras abordam a temática do sofrimento causado pela morte.
Li num artigo que Poe acreditava que não existia nada mais romântico do que um poema escrito sobre a morte de uma mulher bonita.
Quanto aos contos dos irmãos Grimm, ouvi dizer que as histórias são aterradoras, mas a maioria de nós - nós aqui sou eu - conhecemos apenas as versões adaptadas para crianças de histórias como a Cinderela, Branca de Neve, Rapunzel… todos eles (pelo que dizem os fãs) destruídos pela Disney.
Podemos começar nos clássicos, mas há uma vastidão de possibilidades, são casas assombradas, os seus fantasmas, assassinos, mortos-vivos, bruxas, a noite e os seus animais noturnos.
Pelo que parece, por cá, não temos muitos escritores portugueses clássicos que se tenham dedicado ao género terror, mas ainda assim encontrei quatro nomes para fazer uma lista de introdução à literatura gótica em português, e são eles: Alexandre Herculano, Teófilo Braga, José Régio e Mário de Sá-Carneiro. E parece que o nosso Eça de Queirós também tem alguns bons escritos.
Se já leste algum deles, dentro deste género, partilha a tua opinião comigo e diz-me por onde devo começar. Preciso de toda a ajuda possível.
Mesmo sem termos uma tradição forte de escrita de terror em Portugal, na atualidade estão a surgir nomes que se tornam incontornáveis no género. Refiro-me por exemplo a David Soares autor de “Batalha” e “Lisboa Triunfante”; ou Filipe Melo na banda desenhada, do qual conheço “As Incríveis Aventuras de Dog Mendonça e PizzaBoy”… mas que a grande maioria dos leitores conhecerá pelo seu mais recente sucesso “Balada para Sophie”.
Num ensaio escrito para a revista BANG, David Soares abordou o tema do horror literário em português identificando a censura levada a cabo pela Inquisição como uma das principais influências para este vazio de criação em Portugal no que respeita a literatura de horror e fantástico. É um artigo que vale a pena ler e por isso deixo-te o link no blogue.
Por tradição, estas histórias abordam o que está nas sombras, nas margens e nos contornos daquilo que nos rodeia no dia a dia. As insónias, não são uma coisa do acaso, é na escuridão que melhor vemos os nossos medos.
Como é possível serem tudo isto e darem-nos também prazer na leitura?
Talvez, por toda a nossa tradição de Era uma vez...? O gosto que a humanidade tem por uma boa história… e em especial neste período de halloween uma combinação perfeita de: histórias, guloseimas e uns bons sustos como shots de adrenalina.
Sim, consigo ver que há um centro encanto hipnótico nestes contos aterradores.
Eles lembram-nos de que apesar de existir o assustador, o vil, o maléfico, a possibilidade do pior poder acontecer, a qualquer um de nós… ainda assim continuamos a vencer, estamos vivos. E não é só “estamos vivos”, é também o quão maravilhoso é viver e o privilégio desta experiência.
Talvez todos estejamos assombrados, a todo o momento, por nós próprios. Pelos fantasmas que constituem as histórias das nossas vidas, que por vezes são boa companhia outras não, e pelos olhares dos outros, que nos dizem tanto e que tantas vezes, pelos nossos medos, no escuro, não conseguimos interpretar bem.
Como disse Stephen King, mestre mundial do terror:
“Os monstros são reais, os fantasmas também são reais. Eles vivem dentro de nós, e por vezes, vencem.”
É bom sentir o medo, e logo depois poder fechar o livro, e sentir que “está tudo bem”... nós continuamos em segurança, foi apenas um susto, um instante, uma boa história. Estamos de volta à nossa vida.
O que aprendi com… Jorge Amado
Uma das figuras maiores da cultura brasileira do século XX, Jorge Amado é incontornável quando falamos de literatura em língua portuguesa, de grandes romances, histórias e personagens inesquecíveis.
Pois quem pode esquecer Tieta do Agreste, D. Flor e seus dois maridos, Teresa Batista cansada de guerra ou Gabriela, cravo e canela?
Com uma história de vida igualmente marcante, Jorge Amado foi não só escritor, mas também político, homem religioso, das artes e marido muito apaixonado.
Com ele aprendi que:
É possível escrever a mesma história durante mais de 50 anos Que as pessoas reais que nos rodeiam são as melhores das personagens Que as palavras que alguns tencionam como insulto, a nós, podem até orgulhar-nosBem-vindo a mais um episódio!
Nascido no sul do estado da Baía, numa fazenda de cacau, Jorge Amado transportou as suas origens para a escrita, fazendo da terra da sua infância o cenário de histórias belas e tornando as suas gentes em personagens inesquecíveis que espelham o povo brasileiro.
Quando decidi dedicar um episódio aqui no podcast a Jorge Amado, procurei naturalmente saber um pouco mais sobre a vida daquele que é um dos meus escritores favoritos de sempre e fiquei a saber que: foi um político muito ativo, eleito deputado federal pelo estado de S. Paulo, um conhecido militante comunista, e que esteve exilado durante vários anos devido à ditadura…
E, incrível, foi autor da lei que assegura a liberdade religiosa no Brasil, e que vigora até hoje.
Existe um biografia recente, escrita por Joselia Aguiar (caso sofras da mesma paixão que eu e queiras saber mais detalhes sobre a vida deste escritor incrível)
A obra de Jorge Amado pode de certa forma ser dividida em duas fases:
Uma primeira na década de 30 e 40, em que se nota uma denúncia política e a luta de classes, instigada pelo seu comunismo fervoroso, que ele foi de alguma forma retemperado ao longo dos anos e afastando-se a pouco e pouco.
Foi nesta época que publicou Jubiabá, Mar Morto e o comovente Capitães da Areia, o mais popular de todos os seus livros. Onde diz:
“Porque a revolução é uma pátria e uma família.”
A segunda fase da obra de Jorge Amado inicia-se com a publicação de Gabriela, Cravo e Canela. Com uma escrita mais livre e romanceada. Ora oiçam:
“ O amor não se prova, nem se mede. É como Gabriela. Existe, isso basta.”
Num estilo doce e sensual, que a grande maioria de nós conhece, com tantas adaptações a telenovelas, séries, filmes, peças de teatro… esta segunda fase da sua obra inclui títulos como D. Flor e os seus dois maridos, Teresa Batista Cansada de Guerra, Tieta do Agreste, Tocaia Grande… são tantos, tantos!
Qual o meu favorito? Como escolher?
Sei que Mar Morto e Capitães da Areia têm um lugar especial no meu coração, mas é impossível deixar de lado tantos outros…. com tantas destas histórias escritas num tom encantador, quase hipnótico, cheias de humor, sensualidade, drama… a retratar tão bem todo um povo, em toda a sua diversidade cultural, religiosa e racial.
Dizer que é o escritor brasileiro mais vendido do mundo, traduzido em cerca de 50 idiomas, mostra o enorme sucesso que a sua obra alcançou, mas, mais do que um sucesso comercial, Jorge Amado espalhou a cultura brasileira pelo mundo. Há até quem diga que ele “criou” o imaginário da Baía, que para Jorge Amado a Baía era o Brasil.
No mundo literário, no de então (o Brasil de Jorge Amado), assim como no nosso (Portugal na atualidade), há um mito, uma espécie de crença generalizada de que livros populares, que têm muitos leitores e que são lidos, não têm qualidade.
Ora, Jorge Amado, autor brasileiro mais mais popular do mundo, com a frontalidade que lhe era característica disse que esta ideia é “uma mentira descarada”. Se um livro é lido por muitos, tem de ser um bom livro.
Justamente pelo seu sucesso junto do grande público, ele foi alvo de enormes críticas, não muito simpáticas por parte da elite literária, devido a esta mesma popularidade.
Um crítico chegou a dizer:
“Jorge Amado não passa de um escritor de putas e vagabundos”
A resposta, nas palavras do próprio Jorge Amado, foi: “Nunca ninguém me fez um elogio maior. Sou um romancista de putas e vagabundos. Com muita honra.”
Na época da publicação dos seus maiores êxitos, o erotismo era muito apontado como motivo para ler... ou não-ler... os seus livros. Se uma jovem adolescente fosse vista a ler Jorge Amado com certeza seria chamada à atenção.
Jorge Amado ama as mulheres, é tido como um homem sedutor, mas é Zélia Gattai o grande amor da sua vida, quem o ajuda nos seus livros, com quem partilhou mais de 50 anos de vida em comum, e a quem ele incentiva a escrever a sua própria criação literária, num orgulho enorme por vê-la criar obra.
Como membro da academia brasileira de letras, ele fez parte de um grupo restrito que lutou pelo acesso das mulheres a esta instituição, que nos primeiros 80 anos de existência as impossibilitava de ser aceites como membros pelo simples facto de serem mulheres.
Zélia Gattai, a sua esposa, a quem tantas vezes perguntavam se tinha ciúmes das mulheres icónicas como Gabriela, Tieta, D. Flor, Teresa Batista… entre muitas outras criadas pelo marido nas suas histórias, ela responde: “E não era para ter?” continuando depois, dizendo “em todas as mulheres de Jorge Amado encontro sempre um pouquinho de mim”Religião e raça é outro dos pontos muito esmiuçados na sua obra.
Mas como esquecer que ele incluiu a liberdade religiosa na constituição brasileira?
E, quando provocado sobre a sua abordagem ao racismo, costumava dizer com humor: Branco puro na Baia, quem? Preto puro na Baía, onde? Somos todos mulatos com a graça de Deus.”
Autor de histórias encantadoras, de uma escrita poética e musical.
Jorge Amado confessa em entrevista :
“Não sei se é um privilégio, mas escrevo o mesmo romance há mais de 50 anos, romance da gente baiana, do campo, da região do cacau, do sertão, e sobretudo da cidade da Baía… os ambientes e os temas fundamentais são os mesmos… não sei se é um privilégio ou uma limitação”
Nos anos mais produtivos da sua escrita, levantava-se cedo, muito cedo, perto das 5 da manhã, período do dia em que escrevia, e à tarde, editava.
Parte do seu hábito era também ler em voz alta para pessoas que acompanhavam a sua escrita.
Começava a escrever um novo livro e qualquer sítio era um bom lugar para escrever, até que, a história crescia e a certo ponto recolhia-se para uma solidão poderia ser num pequeno escritório no jardim, numa outra cidade, país ou continente mas fosse onde fosse o refúgio, sempre, com a sua Zélia.
Roubava sem pudor, características daqueles que o rodeavam para compor as suas personagens.
Disse: “As pessoas encontram-se muito facilmente nos meus livros… Gabriela, Teresa Batista, Tieta, D. Flor, porque nenhum destes personagens foi inventado por mim, é gente que eu conheci.”
Auta Rosa, uma amiga, num programa da TV Brasil cita um outro amigo que dizia:
“Quando o Jorge contrai uma amizade é como se fosse uma gripe, ele passa imediatamente para todo o mundo.”
E todo o mundo, eu, agradeço o privilégio de poder viver os universos de Jorge Amado, a sua Baía, conhecer as suas mulheres fortes e sensuais, os homens honrados, os malandros, os coronéis, as crianças… viver as suas gargalhadas e sofrimentos, senti-los como meus porque ler livros maravilhosos é tudo isto e ainda muito mais.