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215 pages, Hardcover
First published May 8, 2019
Chegámos com as barrigas cheias. Doridas. Os ventres negros, carregados de água escura e fria e de raios e trovões. Vínhamos do mar e de outras montanhas, e vá-se lá saber de que lugares mais, e vá-se lá saber o que tínhamos visto. (…) Tapámos tudo como um cobertor. (…) Depois da chegada, e da quietude, e da pressão, e de comprimir o ar suave contra o chão, disparámos o primeiro raio. Bang! (…)E então derramámos a água em gotas imensas (…)E nós rimo-nos, ih, ih, ih, ih, enquanto lhe molhávamos a cabeça, e a nossa água se metia por dentro do colarinho da camisa, e percorria os ombros e as costas, e as nossas gotinhas frias despertavam o seu mau humor.
O chapéu de uma é o chapéu de todas. A carne de uma é a carne de todas. A memória de uma é a memória de todas. A escuridão. Sim, a escuridão. Como um abraço. Deliciosa. Protectora. Acolhedora. Como uma queda. Incipiente. A terra. Como uma manta, como uma mãe. Preta. Húmida. Aqui somos todas mães. Somos todas irmãs. Tias. Primas.(…)
Porque não há princípio nem fim. Porque o pé de uma é o pé de todas. O chapéu de uma é o chapéu de todas. Os esporos de uma são os esporos de todas. A história de uma é a história de todas. Porque a floresta é das que não podem morrer. Que não querem morrer. Que não morrerão porque sabem tudo. Porque transmitem tudo. Tudo o que é preciso saber. Tudo o que é preciso transmitir. Tudo o que é. Semente partilhada. A eternidade, coisa leve. Coisa diária, coisa pequena.
Lá dentro estava muito quentinho, muito apertadinho, e muito escuro. O meu irmão e as suas patas compridas, eu e as minhas patas compridas, enroscadinhos como as minhocas sob as pedras. (…)E então a mãe separou-nos, a mim e ao meu irmão. (…) Porque os corços só precisam de mãe quando nascem, e são pequenos e têm de aprender. E só têm irmãos quando estão dentro da mesma barriga e bebem o mesmo leite. Mas eu já não bebo leite. (…)muitas madrugadas e muitos anoiteceres depois (…)Levantei a cabeça e estiquei as costas, eriçadas, prontas.(…) E então ouvi-o. O barulho. Pum. O estouro mais terrível que ouvi na minha vida. (…)Eu morreria porque o som me tinha escolhido. Adeus, floresta. Adeus, madrugadas. Adeus, pássaros. Adeus, Sol. Adeus, corço que eu sou. Adeus, corços que são os outros.
Mas não morri e as pernas continuaram a correr, e a correr e a correr e a correr e a correr e a correr e a correr e a correr.
Aquilo de que mais gosto é quando assobia. Com os dedos na boca. Porque, então, eu corro. Corro com toda a minha força, e salto, e voo, (…) Quando assobia, corro sobre a erva e a cerca e as rochas. Em direcção ao assobio. (…) E correria e saltaria sobre o carro, se fosse necessário, e sobre a casa, se fosse necessário, e sobre todos os perigos. Passando por cima e por dentro e pelo meio de todos os obstáculos. A toda velocidade, porque se tivesse de salvá-la, salvá-la-ia de tudo o que é mau. (…)E às vezes, quando vou ter com ela ofegante, toca-me suavemente na testa, e no lombo, e diz-me que fiz tudo muito bem, e diz-me coisas bonitas que não entendo, mas que entendo. E nessa forma de me tocar está todo o seu amor, e na minha forma de correr para salvá-la está todo o meu amor.
As senhoras que sabem fazer nascer bebés são sempre quatro. E têm todas o cabelo branco. Há uma que manda, (…) Há a que se ri, (…) E depois há a (…), que chora sempre. E a (…), que nos conta histórias. Conta-nos umas histórias de que gostamos porque nunca têm a voz nem os olhos dos homens que escrevem as histórias más. As senhoras que sabem fazer nascer bebés vivem na floresta
Nada durará muito tempo. Coisa nenhuma. Nem a quietude. Nem a calamidade. Nem o mar. Nem os vossos filhinhos tão feios. Nem a terra que segura as vossas patas enfezadas. (…) Terá começado o movimento de novo. O desastre. O princípio seguinte. O enésimo final. E vocês morrerão. Porque não há nada que dure muito. E ninguém se lembra do nome dos vossos filhos.