Quem eram os deuses nórdicos – os poderosos Æsyr, liderados por Óðinn, e os misteriosos Vanir? Em Os Mitos Nórdicos, conhecemos esse panteão apaixonado e briguento e aprendemos sobre o cosmos mitológico que habitam. Passagens traduzidas do nórdico antigo dão vida a este mundo lendário, dos mitos da criação ao ragnarök, o fim do mundo profetizado nas mãos do exército de monstros e gigantes de Loki, e tudo o que vem entre a relação problemática entre deuses e gigantes, em que a inimizade e a trapaça são pontuadas por casamentos e seduções.
Esse é um dos volumes que integram a coleção “Mitos”, publicada no Brasil pela editora Vozes, e originalmente publicada em inglês pela Thames & Hudson. A tradução de “Os mitos nórdicos”, de Carolyne Larrington, é assinada por Caesar Souza (não consegui encontrar muitas informações sobre o tradutor, mas ele também verteu ao português outros títulos da mesma coleção). Segundo a Thames & Hudson, o objetivo dessa coleção é oferecer uma síntese embasada (e de fato os autores são grandes pesquisadores de seus campos, como a própria Larrington, que recentemente traduziu a Edda Poética pra Oxford Classics, ou a Camilla Townsend, autora do volume sobre os mitos astecas) e ainda assim acessível sobre o repertório mitológico de várias culturas.
O texto de Larrington é fluido e informativo. Logo no início do livro, quando a autora oferece algumas considerações mais gerais sobre a miscelânea mítica nórdica e suas fontes textuais que sobreviveram, Larrington aponta pelo menos duas coisas fundamentais (e às vezes ignoradas até por acadêmicos):
Primeiro, segundo ela, “quando lemos os trabalhos de Snorri, necessitamos ter em mente sempre que ele escreve como um cristão medieval e, assim, molda parte de seu material como tal” (p. 14). Essa consideração é indispensável ao lidar com textos como a Edda em Prosa ou a Ynglinga saga (assumindo que Snorri seja o autor do Heimskringla ou não), ou mesmo quando lidamos com representação do “paganismo” nórdico nas sagas islandesas.
Outra consideração importantíssima é a seguinte: “Mas nunca há, nunca houve, uma versão ‘original’ de um mito; é impossível estabelecer quem contou a história primeiro. Cada versão individual recontada contribui para nossa compreensão geral da estrutura e do significado do mito. Cada nova versão oferece uma compreensão do pensamento mítico e dos contextos que tornam esse mito relevante para as culturas que fazem uso dele, seja em um poema inteiro, ou num kenning, ou numa alusão, ou em descrições visuais em entalhes em pedra ou madeira, ou em pinturas, têxteis ou cerâmicas” (p. 19). Há quem ainda pense ser possível “depurar” os mitos de suas próprias contradições, de “distorções” ou interpolações posteriores, etc. Mas isso, em termos científicos, é mera fantasia. O mito é tão mutável e devemos assumir sua mutabilidade, aceitando-a, bem como suas contradições, e sempre dar o benefício da dúvida ao lidar com documentos complexos como os da poesia éddica. Há muitas questões sem resposta, muitas hipóteses inverificáveis e muitas suposições. É louvável que a autora tenha ressaltado essa problemática num manual mais acessível ao público não especializado.
Apesar disso, em dado momento, Larrington se refere à descrição do chamado “Templo de Uppsala” feita por Adam de Bremen (um cônego do século XI) sem quaisquer ressalvas quanto à "fidedignidade" do relato de Adam. O autor medieval não foi testemunha ocular do templo, e, mesmo que tivesse sido, sua obra está fabricando uma visão própria do paganismo nórdico, imersa na própria tradição intelectual cristã de sua época (vide a associação que Adam faz de Þórr com Júpiter, por exemplo, entre tantas outras). Mesmo as evidências arqueológicas de locais de culto ou sacrifício nas proximidades de onde estaria o tal templo aludido por Adam não "factualizam" as descrições do cônego bremense automaticamente.
Mas o maior problema do livro (problema aliás ausente no título, que prefere o termo “nórdicos”) é de ordem terminológica: em dado momento, Larrington emprega o termo anglicizado “viking”, ou seu plural também anglicizado “vikings” com sentido étnico-linguístico. Isso produz algumas coisas bem ruins de se ler, como: “os mitos nórdicos eram a propriedade cultural de todo povo descendente dos vikings”.
Há quem defenda o uso do termo “viking” como sinônimo de “nórdico” por razões “didáticas”, ou seja, por já ser um termo popularizado no mundo anglófono e também em países falantes de português ou francês, ou por todo mundo, na cultura pop, nas séries, filmes, etc, se referir aos escandinavos medievais como “vikings”. Considero essa postura problemática e preguiçosa. Como disse Jacques Le Goff em seu clássico História e Memória, o historiador deve também esclarecer a memória e ajudar a retificar seus erros. Não custa nada explicar por que o termo é incorreto: víkingr (plural víkingar) significa, em nórdico antigo, pirata, salteador, bandido. Designa um ofício, inclusive aplicado aos mais diversos povos nas fontes, como povos do leste europeu ou povos do Mediterrâneo. O termo nunca tem qualquer conotação étnica ou linguística no idioma original; é simplesmente um equívoco associá-lo a um povo ou a uma cultura. “Viking” como sinônimo de “nórdico” ou “escandinavo" é uma invenção nacionalista do Romantismo e deveria ser superada.
Ao longo do livro, Larrington preza pela grafia original para nomes de criaturas mitológicas (deuses, gigantes, monstros) e de lugares; temos Óðinn em vez de Odin, por exemplo. Mas, inserida na tradição anglófona, ela continua anglicizando termos como kenning (metáforas poéticas), cujo plural em nórdico é kenningar, mas autores do mundo anglófono grafam como “kennings”. Isso faz algum sentido em inglês, já que termos como “viking” ou “kenning” foram anglicizado e fazem plural sob as regras gramaticais do próprio inglês. Mas na tradução ao português isso não faz muito sentido (e já que não temos por aqui uma tradição sólida de estudos em nórdico antigo, e nem uma tradição em torno de “aportuguesar” termos do idioma, seria preferível que mantivéssemos as mudanças de número do original para termos-chave como Íslendingasaga/Íslendingasögur, víkingr/víkingar, berserkr/bersekir, etc). Na tradução publicada pela Vozes, “kennings” sem itálico do original (porque anglicizado) vira “kennings” com itálico, e dá pra entender que se trata do plural, mas gramaticalmente está errado. O mesmo ocorre com alguns nomes, como Miðgarðsormr (Serpente de Miðgarðr), que traduziram como "serpente Miðgarðs", mantendo o "S" que marca genitivo em "Miðgarðr" no original, e que não faz sentido algum em português e dá a entender que o nome da serpente é "Miðgarðs". No original, a autora escreve "Miðgarðs-serpent", mantendo o genitivo, embora eu prefira "Miðgarðr's Serpent" em inglês, mantendo o nominativo Miðgarðr em nórdico, e o possessivo com apóstrofe e S, da gramática inglesa moderna.
Depois do segundo capítulo, optei por terminar a leitura numa versão em inglês pro Kindle. Mas quis ressaltar os problemas da edição brasileira pensando em eventuais futuros leitores. O livro de Larrington é um manual competente. Às vezes a autora não indica a fonte diretamente de alguma história ou variação de história, preferindo dizer algo como “em outro lugar se lê assim…”. Isso pode incomodar um pouco. Mas a recontação das histórias é bem boa. Larrington faz poucos comentários ou interpretações próprias sobre os mitos, mas quando o faz é sempre de maneira breve, interessante e sem sandices interpretativas, respeitando o que as fontes dizem e o que os historiadores não podem saber além de conjecturas. É uma pena que a edição brasileira seja algo desleixada: faltou um revisor técnico que soubesse nórdico antigo para corrigir problemas como os que eu mencionei acima, e faltou um preparador de tradução ou revisor profissional, porque a tradução do inglês é mediana, e há vários trechos que soam truncados ou mal escritos. Esse é um problema em outros livros da mesma editora, inclusive sobre o mesmo tema, como com o excelente “Mitos do Norte Pagão”, do Christopher Abram, que também tem sérios problemas de (falta de) revisão.
Larrington também aborda mitos sobre heróis das Fornaldarsögur (sagas dos tempos antigos), como Sigurðr, Ragnarr Loðbrók e Hervör; estes podem ser apreciados em suas sagas originais na excelente tradução de Théo de Borba Moosburger: Sagas Lendárias Islandesas (Ex Machina, 2025). Embora curto e sintético, e apesar dos problemas da edição brasileira, "Os mitos nórdicos" ainda é uma útil introdução ao tema, especialmente no Brasil, onde tanto a Edda Poética quanto a Edda de Snorri Sturluson carecem de boas traduções.