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Não se podia contar com o bom senso das pessoas, e ter um kentuki circulando por aí era a mesma coisa que dar as chaves da sua casa a um desconhecido.
Posso estar louca, mas pelo menos estou atualizada, pensou. Tinha duas vidas, e isso era muito melhor que ter apenas meia vida e coxear aos solavancos.
Quando estas coisas novas entram no mercado, tinha dito, é preciso aproveitar a brecha legal antes que se regule.
“Regular” não era organizar, e sim acomodar as regras a favor de poucos.
Por que o preço dos códigos continuava a subir? Seria uma compensação do próprio mercado? Realmente havia mais gente interessada em olhar que em ser olhada? Grigor não precisava de sofisticados
ou você se moderniza ou a vida te atropela.
Embora ter um kentuki implicasse para ele continuar enclausurado em sua casa, ao passo que ele era um kentuki libertado. Com os acessórios de Jesper, ele poderia sair para qualquer lugar que tivesse vontade, fazer longas excursões por um mundo em que se podia viver sem descer uma única vez para jantar, de fato poderia viver sem comer nada, tocando a neve o dia inteiro, quando por fim a encontrasse.
Ao voltar do supermercado, Enzo ligou na rai. A toupeira se afastou para seu canto, atenta às notícias enquanto ele guardava as compras. Os âncoras se despediam com uma matéria de comportamento: enquanto o resumo das notícias corria a toda velocidade no pé da tela, um repórter fazia um tour na linha B da estação Termini de Roma e os punha a par das novidades kentukianas. Umas trinta pessoas na fila esperavam para consultar o “gufetto”, a coruja kentuki de um mendigo que, como dizia o repórter para a câmera, “respondia todas as perguntas, menos a de como um mendigo conseguiu uma coruja
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ter um kentuki era abrir as portas de casa a um completo desconhecido, e pela primeira vez Emilia compreendeu o perigo real que isso implicava.
Agora existiam aqueles aparelhos por todos os lados, tantos que até seu pai parecia começar a entender do que se tratava. Estavam frequentemente no noticiário, retratados em reportagens de comportamento ou em histórias de fraudes, roubos e extorsões. Os usuários compartilhavam vídeos em todas as redes sociais, com suas invenções caseiras de kentukis presos a drones, montados em patinetes ou passando o aspirador pela casa. Tutoriais decorativos, conselhos pessoais, milagres de sobrevivência diante de acidentes insólitos. Um kentuki panda assustando um gato e fazendo-o saltar pelo ar. Um kentuki
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O que era aquela estúpida ideia dos kentukis? O que fazia toda aquela gente circulando por pisos de casas alheias, olhando como a outra metade da humanidade escovava os dentes? Por que aquela história não era sobre outra coisa? Por que ninguém confabulava com os kentukis tramas realmente brutais? Por que ninguém punha um kentuki cheio de explosivos em uma estação central lotada e não fazia voar tudo pelos ares?
Por que as histórias eram tão pequenas, tão minuciosamente íntimas, mesquinhas e previsíveis? Tão desesperadamente humanas. Nem sequer o boicote do Dia dos Mortos funcionaria. Nem Sven trocaria seus monotipos por ela. Nem ela trocaria por ninguém seus estados de fragmentação existencial. Tudo se diluía.
Além disso, era um lugar humilde, quase no limite do aceitável, mas a paisagem era agradável e a família, pitoresca, e sempre haveria europeus de classe alta dispostos a circular seus instintos filantrópicos por países muito incômodos para serem visitados no estilo tradicional.
indignava-a que até mesmo ela, de outra geração e com uma vida inteira distante das tecnologias, fosse tão mais consciente da exposição e do risco que implicava a relação com aqueles bichinhos.
Os limites eram na verdade os fundamentos das relações. No fim das contas, fora dessa forma que ela tinha agido com seu filho, e tinha dado tudo certo.

