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Lá, da sacada do palácio de Sissi, com uma voz terrivelmente estranha, lírica, inquietante, terminando seu discurso com um grito rouco e desagradável, Hitler. Ele vocifera em um alemão muito próximo da língua inventada mais tarde por Chaplin, feita de imprecações, e da qual distinguimos apenas algumas palavras esparsas, “guerra”, “judeus”, “mundo”.
E já que o Reich recrutou mais cineastas, montadores, cameramen, técnicos de som, contrarregras do que qualquer outro protagonista desse drama, podemos dizer que, até a entrada dos russos e dos americanos na guerra, as imagens que temos da guerra são, para a eternidade, uma montagem de Joseph Goebbels.
Ainda assim, logo antes da Anschluss, houve mais de mil e setecentos suicídios em uma só semana. Em breve, anunciar um suicídio na imprensa se tornará um ato de resistência. Alguns jornalistas ousarão ainda escrever “morte súbita”; as represálias farão que eles se calem rapidamente.
Essa pequena nota banal é vergonhosa. Porque, em 13 de março, ninguém pode ignorar as razões deles. Ninguém. Não se deve, aliás, falar de razões, mas de uma única causa.
E pouco importa que nessa manhã Helene tenha visto ou não, entre a multidão vociferante, os judeus abaixados, de quatro, forçados a limpar as calçadas sob o olhar divertido dos passantes. Pouco importa que ela tenha ou não assistido às cenas ignóbeis nas quais os fizeram comer grama. Sua morte traduz somente o que ela sofreu, a grande infelicidade, a realidade repugnante, seu desgosto por um mundo que ela viu se desenvolver em sua nudez assassina.
E até nos risos, nesse fervor desencadeado, Helene Kuhner deve ter sentido ódio e prazer.
Em uma carta a Margarete Steffin, com uma ironia febril à qual o tempo e as revelações do pós-guerra dão algo de indefensável, Walter Benjamin conta que de repente cortaram o gás dos judeus de Viena; seu consumo gerava perdas para a companhia. É que os consumidores que mais gastavam eram justamente aqueles que não pagavam as faturas, acrescenta. Nesse instante, a carta que Benjamin endereça a Margarete toma uma direção estranha. Não temos certeza se entendemos bem. Hesitamos. Seu significado paira entre os ramos, sob o céu pálido, e quando fica claro, subitamente formando uma pequena nesga de
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realidade, o que importa; quando o humor se inclina a tanta escuridão, ele diz a verdade.
E seu suicídio é o crime de outra pessoa.
Não devemos acreditar que tudo isso pertence a um passado distante. Não são monstros antediluvianos, criaturas piedosamente desaparecidas nos anos 1950, sob a miséria pintada por Rossellini, levadas às ruínas de
Berlim.
E a biografia termina com uma anedota tocante: durante muitos anos, Bertha, cheia de devoção, cuidou de seu marido inválido em uma pequena construção ao lado de sua residência de Blühnbach. Não menciona as usinas concentracionárias nem os trabalhadores forçados, nem nada.
E a História está lá, deusa razoável, estátua colocada no meio da place des Fêtes, recebendo como tributo, uma vez por ano, buquês secos de peônias e, à guisa de esmola, todos os dias, pão para os passarinhos.

