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Só Deus sabe por que a gente gosta tanto disso, por que vê isso dessa maneira, cria tudo isso, constrói isso ao nosso redor, desfazendo e refazendo tudo a cada instante; porém, mesmo as mulheres mais enxovalhadas, as indigentes mais miseráveis, sentadas nos degraus de entrada (arruinadas pela bebida), também faziam o mesmo; não era algo que se podia resolver, disso tinha certeza,
Arlington Street e Piccadilly pareciam agitar o próprio ar do parque e erguer as folhas de modo cálido e radiante, em ondas de uma vitalidade divina que Clarissa amava.
certos dias, certas paisagens o traziam de volta, calmamente, sem a antiga amargura; o que talvez fosse a recompensa por ter amado as pessoas; e elas retornavam em uma bela manhã no St. James’s Park − bem que retornavam.
Ela se sentia muito jovem; ao mesmo tempo, inconcebivelmente velha. Passava por tudo como uma faca afiada; ao mesmo tempo, ficava de fora, contemplando. Tinha uma sensação permanente, olhando os táxis, de estar longe, longe, bem longe no mar e sozinha; sempre era invadida por essa sensação de que era muito, muito perigoso viver, ainda que por um dia.
Fazia alguma diferença então, perguntou-se, caminhando em direção a Bond Street, fazia diferença se ela inevitavelmente iria deixar de existir por completo; mesmo com sua ausência, tudo isto vai continuar; era algo para se lamentar, ou havia consolo em ver na morte o fim de tudo? De algum modo, porém, nas ruas de Londres, em meio ao fluxo e refluxo das coisas, aqui, ali, ela sobreviveria,
Ultimamente, a experiência do mundo havia feito brotar em todos, homens e mulheres, uma fonte de lágrimas. Lágrimas e sofrimentos; coragem e resistência; uma postura perfeitamente aprumada e estoica.
Como ansiava por isso − que as pessoas se alegrassem ao vê-la −, pensou Clarissa,
Ó, se pudesse recomeçar a vida!, pensou, dando um passo na rua, podia até mesmo ter outra aparência!
Clarissa, sabia por experiência própria era que o arrebatamento religioso endurecia as pessoas (assim como defender uma causa); embotava os sentimentos,
Era irritante, porém, esse monstro brutal remexendo-se em seu interior! Ouvir os galhos estalando e sentir os cascos plantados no fundo da alma, dessa floresta de ramagem emaranhada; jamais poder ficar plenamente contente, ou segura, pois a qualquer instante o bruto começaria a se mexer, esse ódio, que, sobretudo desde que ficara doente, fazia com que sentisse a espinha esfolada, machucada; que lhe provocava uma dor física, e conseguia que todo o prazer na beleza, na amizade, na sensação de bem-estar, de ser amada e de tornar agradável seu lar, balançasse, tremesse e se curvasse, como se de
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O mundo erguera seu açoite; sobre quem iria cair?
Não havia ninguém. Suas palavras se dissiparam. Como fogo de artifício. As fagulhas, depois de abrirem caminho pela noite, capitulam diante dela, a escuridão cai, despejando-se sobre a silhueta das casas e das torres; encostas desoladas se esbatem e desaparecem. Porém, ainda que tenham sumido, a noite continua repleta delas; despojadas de cor, sem janelas, persistem de modo mais intenso, indicando o que a débil luz do dia deixa de transmitir − a aflição e a expectativa das coisas aglomeradas na obscuridade; desprovidas do alívio que traz o amanhecer quando, lavando de branco e cinza os muros,
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o Senhor que viera para renovar a sociedade, que se estirava como uma manta, um manto de neve tocado apenas pelo sol, para sempre imaculado, para sempre a sofrer, o bode expiatório, o eterno sofredor, mas não era isso que ele queria, gemeu, afastando de si com um gesto sinuoso da mão esse sofrimento eterno, essa solidão eterna.
Rosas, pensou com sarcasmo. Quanta bobagem, minha cara. Pois na verdade, entre comer, beber e se acasalar, os dias ruins e os bons, a vida não se resumira apenas a rosas,
além disso, a catedral oferece companhia, pensou, convidando-o a se tornar membro de uma sociedade; da qual fazem parte grandes homens; pela qual mártires sacrificaram a vida;
Ela ouviu o taque-taque da máquina de escrever. Essa era sua vida, e, debruçando-se sobre a mesa do vestíbulo, submetendo-se a tal influxo, sentiu-se abençoada e purificada, dizendo a si mesma, enquanto tomava o bloco onde fora anotada uma mensagem telefônica, que momentos assim são brotos na árvore da vida, são flores das trevas, pensou (como se uma rosa adorável tivesse desabrochado apenas para seus olhos); não acreditava absolutamente em Deus; contudo, por isso mesmo, ocorreu-lhe, tomando o bloco de recados, era ainda mais necessário no dia a dia recompensar os criados, sem dúvida, os cães
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“Não temas mais”, murmurou Clarissa. Não temas mais o sol ardente, pois o choque de Lady Bruton ter chamado Richard para o almoço sem convidá-la também fez estremecer o momento que acabara de viver, como uma planta no leito do rio acusa o choque de um remo passageiro e estremece: assim ela foi sacudida, assim estremeceu.
O que ela temia, porém, era o próprio tempo, e lia no rosto de Lady Bruton, como em um relógio de sol talhado em pedra impassível, que a vida ia se reduzindo; como, ano após ano, sua porção se reduzia; o quão pouco lhe restava daquela margem capaz de se estender, de absorver, como na época da juventude, as cores, os sais, os tons de existência, permitindo-lhe preencher os aposentos em que entrava, e muitas vezes sentir, ao hesitar no limiar de sua sala, uma ligeira expectativa, igual à que poderia tomar conta de um mergulhador antes de saltar, enquanto lá embaixo o mar escurece e clareia, e as
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pensou ela de repente sentindo-se encarquilhada, envelhecida, de peito vazio, o dia que lá fora se afainava, enfunava, florescia, para além da janela, além de seu corpo e cérebro que já desfaleciam,
com as gralhas exibindo-se para cima e para baixo na luz rosada do crepúsculo, e sentindo, ao atravessar o vestíbulo, que “morrer agora seria a suprema felicidade”. Era isto o que sentia − o mesmo que Otelo, e era o que sentia, estava certa, com tanta intensidade quanto Shakespeare queria que Otelo sentisse, e tudo porque estava de branco, descendo para jantar com Sally Seton!
Todavia, quando se está apaixonado (e o que era aquilo senão amor?), nada é mais estranho do que a completa indiferença dos outros.
Assim era ela − aguçada; como uma seta; definida. Assim era quando um esforço, uma convocação para ser ela mesma, juntava suas partes, só ela sabia o quão diversas, o quão incompatíveis, e as arranjava para o mundo em torno de um único centro, um diamante, uma mulher que se sentava em sua sala e fazia desta um local de encontro, certamente uma radiância para algumas existências opacas, um refúgio onde podiam se abrigar os solitários, talvez; ela havia incentivado jovens, e eles se mostraram agradecidos; havia procurado ser sempre a mesma, nunca revelando nada de tantos outros aspectos de si
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se
A tranquilidade tomou conta dela, a paz, o contentamento, enquanto a agulha, puxando devagar a seda até a suave pausa, juntava as dobras verdes e as prendia, delicadamente, à cintura. Tal como em um dia de verão, as ondas se formam, se desequilibram e arrebentam; se formam e arrebentam; e o mundo todo parece estar dizendo “isso é tudo”, de modo cada vez mais grave, até que mesmo o coração pulsando no corpo estendido na praia sob o sol também diz, isso é tudo. Não temas mais, diz o coração. Não temas mais, diz o coração, lançando seu fardo em algum mar, que suspira coletivamente por todas as
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Claro que queria, pensou Peter; e isso quase me dilacerou o coração também, pensou; e sentiu-se invadido por seu próprio pesar, que se ergueu como a lua sobre um terraço, espantosamente bela à luz agonizante do dia. Nunca mais fui tão infeliz, pensou ele. E como se estivesse de fato sentado naquele terraço, aproximou-se mais de Clarissa; estendeu a mão; ergueu-a; deixou que caísse. Sobre ambos pairava aquela lua. Também ela parecia estar sentada ao lado dele no terraço, sob o luar.
Então, exatamente como acontece em um terraço ao luar, quando alguém fica constrangido por estar entediado, mas, como o outro continua sentado em silêncio, muito quieto, contemplando com tristeza a lua, sem querer conversar, e a pessoa mexe o pé, limpa a garganta, examina um adorno na perna de ferro de uma mesa, afasta uma folha, mas não diz nada − assim fez Peter Walsh. Afinal, por que voltar dessa maneira ao passado?, pensou. Por que fazê-lo retomar tudo isso? Por que fazê-lo sofrer, quando ela já o atormentara de modo tão infernal? Por quê?
“Lembra do lago?”, disse ela, com voz cortada, sob o impacto de uma emoção que lhe tomou conta do coração, enrijeceu os músculos da garganta e contraiu os lábios em um espasmo ao pronunciar “lago”. Pois ela era uma criança ainda, atirando migalhas de pão aos patos, ao lado dos pais, e ao mesmo tempo já adulta, dirigindo-se até os pais na beira do lago, levando-lhes sua vida nos braços, enquanto se aproximava, até esta se tornar uma vida plena, uma vida completa, que então colocava aos pés deles, dizendo: “Isto é o que fiz dela! É isto!”. E o que fizera dela? O quê, na verdade? sentada ali
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Ela fitou Peter Walsh; o olhar dela, atravessando todo esse tempo e essa emoção, o alcançou de maneira vacilante; pousou nele lacrimosamente; alçou voo e foi embora, como uma ave que toca um galho, alça voo e...
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e então, para sua imensa surpresa, de repente, impelido por aquelas forças incontroláveis soltas no ar, ele rompeu em lágrimas; chorou; chorou sem nenhum constrangimento, sentado no sofá, com as lágrimas escorrendo pelo rosto.
Leve-me com você, pensou Clarissa impulsivamente, como se ele estivesse prestes a partir em uma longa viagem; e então, no momento seguinte, era como se os cinco atos de uma peça, tão excitantes e emocionantes, tivessem chegado ao fim, e neles ela vivera toda uma vida e havia fugido, vivido com Peter, e agora tudo se acabara.
E foi terrivelmente estranho, pensou ele, ver como ela ainda era capaz, ao se aproximar tilintante, roçagante, ainda era capaz, ao cruzar a sala, de fazer com que a lua, que ele detestava, se erguesse no terraço de Bourton no céu de verão.
Igual a uma nuvem que encobre o sol, o silêncio desce sobre Londres; e desce sobre o espírito. Cessa o esforço. O tempo ondula no mastro. Ali paramos; ali ficamos de pé. Rígido, somente o esqueleto do hábito sustenta a armação humana. E dentro desta não há nada, disse Peter Walsh a si mesmo; sentindo-se oco, completamente esvaziado.
É a própria Clarissa, pensou ele, com uma emoção intensa e uma lembrança dela extraordinariamente nítida e desconcertante, como se esse sino tivesse soado anos atrás na sala, onde estavam sentados em um momento de grande intimidade, e repercutido de um para o outro, antes de partir, tal como uma abelha com mel, prenhe do momento.
E seu espírito se aplanou como um charco, e foi sacudido por três fortes emoções: compreensão; um imenso amor pela humanidade; e, por fim, em consequência, uma alegria sutil e irreprimível; como se, no fundo de seu cérebro, outra mão manipulasse os fios, movesse as portinholas, enquanto ele, nada tendo a ver com isso, ainda permanecia diante de avenidas intermináveis, pelas quais, se quisesse, poderia perambular.
como se o bulício aleatório do tráfego tivesse sussurrado através das mãos em concha o seu nome, não Peter, mas o nome secreto com que chamava a si mesmo em pensamento.
E acabou reduzida a pó − a diversão dele, pois em parte inventada, como bem sabia; uma invenção, essa escapada com a jovem; inventada, como se inventa a maior parte da vida, pensou − inventando a si mesmo; inventando a jovem; criando uma diversão requintada, e algo mais. Mas havia sido estranho, e bem genuíno; tudo isso era algo impossível de partilhar − reduzido a pó.
Suas botinas ressoaram na calçada ao ritmo de “tanto faz”; pois era cedo, ainda era cedo demais.
Tais são as visões que emergem sem cessar à superfície das coisas reais, que as acompanham e as encobrem; com frequência assoberbando o viajante solitário e arrebatando-lhe o sentimento da terra, a vontade de regresso, dando-lhe em troca uma paz absoluta, como se (assim lhe ocorre ao seguir pela trilha na floresta) toda essa febre de viver fosse a própria simplicidade; e as miríades de coisas nada mais fossem do que uma única coisa; e essa figura, composta assim de céu e ramagem, tivesse se erguido do mar encapelado (ele já é maduro, tendo passado dos cinquenta), tal como uma forma poderia ser
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Assim, enquanto o viajante solitário adentra a rua do vilarejo onde as mulheres tricotam e os homens cavoucam no jardim, o crepúsculo parece ameaçador; as figuras imóveis; como se uma sina portentosa, conhecida deles, aguardada sem temor, estivesse prestes a arrastá-los para a completa aniquilação.
Assim Peter Walsh ressonava. E despertou de repente, dizendo a si mesmo, “a morte da alma”.
Ela possuía o estranho poder de tocar nos nervos da gente, sem dúvida, de fazer deles o que quisesse.
Jamais, em toda a sua vida, ele se sentira tão feliz! Sem dizer uma palavra, fizeram as pazes. Caminharam juntos até o lago. Ele desfrutou de vinte minutos de perfeita felicidade. A voz dela, seu riso, seu vestido (esvoaçante, branco, carmim), sua espirituosidade, seu arrojo;
“Diga a verdade”, repetiu. Ele sentia como se estivesse se debatendo contra algo fisicamente duro; ela permaneceu inabalável. Era como se fosse de ferro, de sílex, rígida até a espinha. E quando ela disse, “Não vale a pena. Não vale a pena. Acabou” − depois de ele ter falado durante horas, pelo menos assim lhe pareceu, com as lágrimas escorrendo pelo rosto −, foi como se tivesse sido golpeado no rosto. Ela se virou e o deixou e foi embora. “Clarissa!”, gritou ainda. “Clarissa!” Mas ela nunca mais voltou. Havia acabado. Ele partiu naquela mesma noite. E nunca mais a reviu.
Ligeiramente ondulantes por causa das lágrimas, a alameda, a babá, o homem de cinza, o carrinho de bebê subiam e desciam diante de seus olhos.
Ela estava vulnerável; rodeada de árvores enormes, das nuvens imensas de um mundo indiferente, vulnerável; atormentada; e por que deveria sofrer? Por quê?
Então, quando chegaram, ele mal conseguia ficar de pé. Deitou-se no sofá e, gritando, pediu que lhe segurasse a mão a fim de impedi-lo de cair, cair no meio das chamas!
assim ele sentiu que se aproximava da vida, o sol cada vez mais forte, os gritos soando mais altos, algo extraordinário prestes a acontecer. Tinha apenas de abrir os olhos; mas sobre eles havia um peso; um temor.
Sem dúvida, essa suscetibilidade às impressões fora sua desgraça. Mesmo com essa idade, ele ainda sofria, como um menino ou mesmo uma menina, com essas oscilações de humor; dias bons, dias ruins, absolutamente sem nenhum motivo,
Quantas vezes não a vira chegar a um aposento e parar na porta junto com outras pessoas. No fim, porém, era só ela que ficava em nossa lembrança. Não que fosse impressionante; certamente não por ser bela; não havia nada de pitoresco nela; jamais dizia algo especialmente inteligente; contudo, tinha uma presença; ali estava ela. Não, não e não! Não continuava apaixonado! Apenas se dava conta, após revê-la naquela manhã, com suas tesouras e linhas, preparando-se para a festa, que não conseguia tirá-la da cabeça; ela continuava a tombar repetidamente sobre ele, como alguém adormecido a seu lado
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Com o dobro da inteligência do marido, era obrigada a ver as coisas pelos olhos de Dalloway − uma das tragédias da vida matrimonial. Mesmo

