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E para se chegar, onde quer que seja, aprendi que não é preciso dominar a força, mas a razão. É preciso, antes de mais nada, querer.
Se estava com medo? Mais que a espuma das ondas, estava branco, completamente branco de medo. Mas, ao me encontrar afinal só, só e independente, senti uma súbita calma.
Era preciso vencer o medo; e o grande medo, meu maior medo na viagem, eu venci ali, naquele mesmo instante, em meio à desordem dos elementos e à bagunça daquela situação. Era o medo de nunca partir. Sem dúvida, este foi o maior risco que corri: não partir.
Uma nova gaivota me fazia companhia. Muito engraçada, chegou a me pregar alguns sustos com seus grunhidos que pareciam vozes humanas a distância. Pousada na água, esperava que eu passasse junto dela e, quando me afastava, levantava voo e pousava mais à frente, exatamente por onde eu voltaria a passar.
Aos poucos percebi que entrava em equilíbrio com o mundo à minha volta. Um cenário eterno e dinâmico a um só tempo, exatamente o mesmo que viram os navegadores do passado. Talvez com igual intensidade de emoção, medo ou alegria. E a noção de tempo tão exata a ponto de conhecer os décimos de segundo de cada hora, ou tão vaga no espaço que séculos nada significariam em transformações.
Os dourados não eram apenas companheiros de viagem mas importantes amigos que, com sua ausência, anunciavam a proximidade de predadores maiores. Eu lhes seria eternamente grato muitas vezes ainda, quando, em sua companhia, passaria horas seguidas na água sem a menor preocupação. A cada dia novos dourados se juntavam aos velhos, alguns dos quais conseguia reconhecer. O Alcebíades fazia novas amizades. Menos assustados e mais experientes, os já conhecidos mantinham-se sempre próximos mas a uma atenta distância do barco, enquanto os recém-chegados se aproximavam bastante quando, por exemplo, eu
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Passados dois meses de tantas histórias, comecei a pensar no sentido da solidão. Um estado interior que não depende da distância nem do isolamento, um vazio que invade as pessoas e que a simples companhia ou presença humana não podem preencher, solidão foi a única coisa que eu não senti, depois de partir. Nunca. Em momento algum. Estava, sim, atacado de uma voraz saudade. De tudo e de todos, de coisas e pessoas que há muito tempo não via. Mas a saudade às vezes faz bem ao coração. Valoriza os sentimentos, acende as esperanças e apaga as distâncias. Quem tem um amigo, mesmo que um só, não
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E, isolado, também não estava. Ao redor, tudo era sinal de vida. Gaivotas e aves marinhas de todo tipo, as ondas com quem discutia, pilotos e fiéis dourados aumentando dia a dia. As imensas e amáveis baleias e mesmo os desagradáveis tubarões me faziam companhia. E, acima de tudo, havia o rádio e a formidável corrente de solidariedade que os colegas radioamadores mantinham acesa na ponta de suas antenas. Tudo, menos solidão!
A imensidão do mar tornava minúsculos os meus maiores problemas e gigantes as menores alegrias. Ensinou-me a dar valor à vida que eu levava e a pequenas coisas que às vezes passavam despercebidas. Nada no mundo era mais gostoso do que terminar o jantar e pular para a cama. Nada fazia mais falta do que um travesseiro comum. Nada era mais útil do que uma tempestade favorável ou mais tranquilizador do que o fim de uma calmaria. E então pude constatar como tão poucas coisas eram suficientes para viver em paz e bem.
Com o tempo, eu acumularia todos os progressos e os centímetros se transformariam em quilômetros. Senti que estava cumprindo uma obra de paciência e disciplina. E percebi como é simples conseguir isso. Nada de sacrifícios extremos ou esforços impossíveis. Nada de grandes sofrimentos. Ao contrário, bastava apenas o simples, minúsculo e indolor esforço de decidir. E ir em frente. Então tudo se tornava mais fácil.
Pensando bem, que mais poderia alguém no mundo desejar do que olhar nos olhos das baleias, conversar com as gaivotas sobre os azimutes da vida, procurando durante cem dias e cem noites um único objetivo e, subitamente, tê-lo diante dos olhos, ao alcance dos pés, numa tranquila tarde de terça-feira?
Na quietude daquela noite, a última, ancorado no infinito sossego da Praia da Espera, sonhando com os olhos abertos e ouvindo outros barcos que também dormiam, descobri que a maior felicidade que existe é a silenciosa certeza de que vale a pena viver.

