Isaque
São mais as vezes que me lembro do sr. Manuel Isaque do que aquelas que encomendo botijas ao Luís. Mas ainda hoje o Luís veio cá a casa, entregar mais duas, e voltei a lembrar-me dele.
O sr. Manuel Isaque era o senhor do gás. Também era o pai do Luís e da Ana Cristina, com quem estudei anos. Mas, ao longo da minha infância, andava o dia inteiro aí fora, abaixo e acima, no seu triciclo. Entrava-nos em casa num nozinho, vergado ao peso daquelas grandes garrafas amarelas. Fazia parte, por direito próprio, do nosso dia-a-dia – do dia-a-dia de todas as famílias da freguesia.
Tinha uma ética de trabalho, e eu nunca respeitei nada como a isso. Mas, até me mudar de volta, continuava a ser sobretudo o senhor do gás, de cujo o nome só não me esquecera porque tudo o que faço é lembrar.
Há dois anos e meio, quando regressei, fui à Câmara lançar um livro, com aquela coisa dos autógrafos no fim. A certa altura, apareceu a Ana Cristina. Fiquei feliz. Trazia dois exemplares e imaginei que um deles fosse para oferecer. Mas não: tinha sido encomendado pelo sr. Manuel Isaque, que gostava de ler.
O sr. Manuel Isaque já só voltou cá a casa mais meia dúzia vezes, a trazer botijas. Tinha um cancro. Mas, até ao fim, parou sempre um instante a conversar. No seu jeito tímido, contou-me dos tempos do meu avô, da desactualização do seu próprio negócio e também dos seus padecimentos, de que a doença nem era o maior.
Numa das últimas vezes, disse-me que lera o livro em dois dias. Perguntei-lhe o que achara. Fez um olhar malandro: «Um bocadinho picante...», e riu-se.
Morreu na última Primavera. Eu estava fora e não pude assistir ao seu enterro. Sentir-me-ei sempre em falta. Devo-lhe uma lição fundamental: nenhum homem é apenas o homem do gás.
* Diário de Notícias, Janeiro 2015


