Ethel & Ernest

Filme de Roger Mainwood – Inglaterra – 2016.

Raymond Briggs é um dos artistas gráficos mais reconhecidos na Inglaterra. Ilustrador e quadrinista de histórias para crianças e adultos. Em 1998, aos 64 anos de idade, publicou a novela gráfica Ethel & Ernest, uma homenagem aos seus pais, falecidos em 1971. “Não é uma história extraordinária, mas é a história dos meus pais”, diz ele na abertura do filme licenciado recentemente pela Netflix. Essa é a grande qualidade do longa de animação: mostrar como o banal pode ser especial.

O escritor Dyonélio Machado comentou que o século XX revolucionou o olhar (principalmente por influência de Marx, Freud e Darwin), direcionando os holofotes para o homem comum. É interessante que Ethel & Ernest narra, pelo cotidiano de um casal britânico pra lá de comum – um leiteiro e uma dona de casa –, parte da história deste século XX, de 1928 a 1971. Briggs conta uma história pessoal e singela, inserida naqueles anos de grandes abalos e transformações. Consegue envolver, estender a sua carga emocional íntima a cada um dos leitores. Isso se chama arte.

Os Briggs e a eterna gata Susie – o banal tornado especial

O filme, muito fiel ao livro na estética e no conteúdo, mantém a magia de universalizar o privado. Mas diferente do livro, o filme é um trabalho coletivo, um processo fragmentado entre mais de uma centena de animadores, ilustradores, atores, técnicos em efeitos especiais, roteiristas, músicos, atores e artistas de foley. Isso torna a façanha de narrar uma história íntima e autoral ainda mais desafiadora. O diretor e roteirista Roger Mainwood optou por combinar técnicas tradicionais e modernas nos processos de trabalho. No filme há 61200 desenhos, todos feitos à mão, mantendo o traço artesanal do autor, porém em uma tela digital, o que facilitou a coordenação entre os vários desenhistas e entre som e imagem, principalmente no desenho do sincronismo labial nas falas dos personagens. Muitos cenários e fundos foram pintados em papel (aquarela) e depois escaneados, para manter a textura e os tons retrô da novela gráfica. A computação e o 3D foram usados principalmente na animação de veículos (aviões, carroças, trens, ônibus e carros) e para dar profundidade aos planos com efeitos de luz, neblina e fumaça. O tipo de movimento, a animação, encontra um caminho de ouro entre a fluidez cinematográfica e a composição mais estática de histórias em quadrinhos. A direção de arte é absurdamente meticulosa na recriação de cenários e figurinos nas distintas épocas e se encarrega, com a luz, de desenhar o ápice dramático dos eventos nos anos da Segunda Guerra Mundial. É interessante que o pico dramático da história pessoal (e do filme) dá-se em outro momento e é retratado em outro tom. Um tom absolutamente britânico, como os protagonistas.

Os tons da guerra em Ethel & Ernest.

Embora a obra seja sobre seus pais, há um personagem que, a meu ver, merecia um pouco mais de exposição. Jane, a mulher de Raymond, aparece no filme como uma figura intrigante, mas quase sem voz. Jane sofria de esquizofrenia e foi casada com Raymond de 1963-73. Faleceu de leucemia dois anos após a morte dos sogros.

Raymond, que inicialmente tinha dúvidas se liberava o livro para adaptação, assina o filme como produtor executivo. Conta que, ao ouvir a dublagem pela primeira vez, chorou por dois dias seguidos. Lá estavam seus pais, falando com ele novamente. Briggs abre o filme em um breve e único momento live action, que introduz o elemento da autenticidade, da história pessoal. E, de quebra, revela parte da magia: o esboço do desenho inicial ganhando vida e alma.

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Published on February 25, 2021 07:03
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