O Que a Água me Deu
“Time it took usTo where the water wasThat’s what the water gave me”
Florence Leontine Mary Welch
«Quem és tu?», perguntaste-me naquele dia em que fomos passear à beira do Arion, depois de me teres tirado o fôlego com o teu charme, os teus olhos cravados em mim, como se me estivesses a ver, a ver mesmo e não a olhar através de mim, como todos os outros, como se eu fosse invisível, como se eu fosse um fantasma… «Uma bibliotecária virgem, um cliché em vias de extinção, já ninguém lê, já ninguém se guarda». Não respondi nada disso, apenas corei e desviei o olhar. «E tu?», quis saber. «Franz». Apenas Franz? Apenas e só. Como o Praguense. Sim. Mais tarde percebi que não eras apenas o Franz, eras o Franz MacLaren, o mais próximo de um princípe que Saint Paul tinha. Eras casado, tinhas filhos, dinheiro, prestígio, ambições políticas… E eu que era tão poucochinha… Deves ter agarrado o primeiro livro que te apareceu à frente. To The Lighthouse. Disseste que era a tua escritora favorita. A sério? Sou sua homónima. «Chamas-te Virginia?» Não… Então? Se ela fosse a tua escritora favorita, saberias que o seu primeiro nome era Adeline… Fiz-te corar, mas conseguiste manter a compostura. Confessaste de imediato que estavas interessado em mim e não no livro. E logo em mim! Em Adeline, filha de Katherine, neta de Adeline, bisneta de Katherine, por aí afora até à data da fundação da nossa bela cidade, uma mera funcionária pública, uma prisioneira… Querias levar-me a passear quando eu saísse do trabalho, querias saber tudo acerca de mim. E eu disse que sim, sem dizer nada, sem saber o que dizer, tremendo de medo e de excitação… A minha mãe sempre me ensinou que os homens eram criaturas a temer. Só queriam uma coisa das mulheres, tal como o meu pai, tal como o meu avô e o meu bisavô. Descendo de uma longa linha de mães solteiras. Não podia sair à noite, não podia namorar, não podia ir à rua sem a mãezinha pelo braço, a mesma que agora vive acamada e que se queixa às enfermeiras que eu não consigo arranjar marido. Está demente e decrépita, e há-de viver mais do que eu, que pouco vivi… O pouco que vivi, vivi-o intensamente, graças a ti, Franz, meu querido monstro, o meu primeiro, único e último homem, anjo ou demónio… A escuridão e o frio rodeiam-me, mas tu brilhas, e eu não consigo desviar os olhos do teu brilho prateado enquanto o ar foge dos meus pulmões como da primeira vez em que falaste comigo. Ia ter contigo às traseiras da biblioteca e tu levavas-me para aquele motel que havia a meio caminho entre Saint Paul e Saint Andrew, e eu não via nada de errado ou sórdido nisso, era a nossa hora mágica. Até te ver na televisão, rodeado pela tua família, a anunciar a tua candidatura a um importante cargo público, e perceber que não tínhamos um futuro juntos. Seríamos só nós as duas, a Katherine e eu, pois estava convencida de que o fruto do nosso amor que me fazia inchar o ventre seria uma menina que levaria o nome da minha mãe. Dei-te a novidade pelo telefone. «Tens a certeza de que é meu?» Odiei-te com a mesma força com que te amava, tu que eras o único homem que alguma vez me tinha tocado, o homem que me revelou aquela doce agonia de que falava Santa Teresa de Ávila. Seria complicado criar uma criança sozinha com o ordenado de uma bibliotecária. Havia uma alternativa. Era complicado, mas não era impossível, as mulheres da minha família faziam-no há séculos… «Porquê, Franz, porquê?» é a pergunta que me oprime o peito e a qual não podes escutar… Tudo isto porque me recusei a matar o nosso amor feito carne? Quiseste encontrar-te comigo à beira do Arion, como naquele primeiro dia em que me convidaste para passear, e eu senti uma pequena réstia de esperança de que ainda pudesses provar à minha mãe que ela estava enganada, que não havia nenhuma maldição sobre as mulheres do nosso clã e que, a haver mesmo uma maldição, ela seria quebrada por ti, o príncipe de Saint Paul e do meu coração… Ela irá morrer na sua cama, decrépita e demente, sem saber que no mundo há homens bem piores do que o meu pai e o meu avô e o meu bisavô, que apenas desapareceram sem deixar rasto, e eu irei morrer neste leito, sem pedras nos bolsos a puxarem-me para baixo, mas com mãos de pedra, animadas por um coração negro, a empurrarem o meu peito em direcção ao fundo, enquanto os meus cabelos e o meu vestido esvoaçam, como algas, ao sabor das correntes.
Published on November 24, 2016 06:28
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