Joel Neto's Blog, page 60
July 14, 2013
Terra Chã, 14 de Julho de 2013
Acocorei-me, gatinhei, rastejei e saltei como um pardal até, enfim, conseguir cortar netos, bisnetos, folhas e ramos e reduzir os tomateiros (incluindo os tomateiros-cereja) a um terço do volume. Em suma, dei-lhes uma tal tareia que não tenho a certeza de que não os tenha matado. Aparentemente, estava a pecar por defeito, pelo que decidi pecar por excesso. Problema de principiante, claro: recebe-se um conselho a dizer que é melhor tomar uma aspirina e engole-se logo a caixa inteira de uma vez. O problema é que eu já devia ter aprendido essa lição com o golfe. Será que a aprendizagem da terra também não me vai servir para nada?
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Não sei bem o que hei-de pensar quando ouço o senhor da rádio dizer, logo a seguir à Eucaristia Dominical, que Ponta Delgada é "a capital" de uma região "em franco progresso". A Antena 1 Açores já passou para a tutela do Governo Regional, foi? E vai ser assim mesmo à descarada?
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Torno a olhar para o caso da cozinheira caída em desgraça e a ceder à mesma perplexidade. Só há duas denúncias, hoje em dia, verdadeiramente capazes de destruir uma reputação. A primeira é a de pedofilia. A segunda é a de plágio. Isto em pleno auge da era da paráfrase, note-se. Ah, a hipocrisia. E a autolegitimação pela exclusão do outro – nada melhor, como retrato deste tempo, do que a autolegitimação pela exclusão do outro.
July 12, 2013
Terra Chã, 13 de Julho de 2013
Planto este fim-de-semana ao fundo da horta, no minúsculo espaço a que talvez tenhamos de começar a chamar pomar, uma groselheira e dois pés de framboesa. Para além das nove amoreiras e dos quatro pés de maracujá e maracujá-banana que distribuímos ao redor dos talhões, já temos plantados um limoeiro, uma tangerineira, uma romanzeira, uma anoneira, uma macadâmia, dois cafezeiros, três feijoas, um goji, duas pitangueiras, uma araçaleiro e, já agora, uma cana de açúcar (não sei se me terá escapado alguma coisa). Nem tudo é hortícola neste pedacinho de terra. Mas, sobretudo, não paguei por uma só planta dessas: foram-me todas oferecidas pelo Jorge, pelo Francisco, pelo Rodrigo. Há nesta malta da agricultura biológica uma camada a seguir à da fé e à da liberdade: a da generosidade. Eles acreditam na pureza da sua actividade. Eles procuram que ele seja o mais barata possível. Mas eles querem que ela chegue ao outro e que o outro seja um pouco mais do que um simples soldado da cruzada. Querem que os seus esforços lhe saiam o mais baratos possível também – querem que ele seja igualmente livre. Vou sair desta experiência um homem diferente. Já o estou, de algum modo.
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Disse-me esta semana o Paulo Lobão, referindo-se aos centro-europeus que há uns anos se instalaram na ilha das Flores, vivendo a vida simples e cozendo o seu próprio pão, e sobre os quais acabara de ver um documentário: “Eles já não querem ser aquilo que nós ainda não somos.” Eles já não querem ser aquilo que nós ainda não somos. É a formulação perfeita, de facto. Inclusive para a vida que aqui temos, eu e a Catarina. Nós já não queremos ser aquilo que quase fomos. Mas não queremos mesmo.
Terra Chã, 12 de Julho de 2013
Ainda não me decidi. Mas parece-me que, ao desafiar os principais partidos políticos a unirem-se pela salvação do país, Cavaco Silva foi esta semana, e por uma vez, o presidente que eu quis eleger em 2006 e não o que eu recusei reeleger em 2011.
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De resto, esta gente merece o ódio? Estes tipos e os outros? Estes políticos? Provavelmente. Mas não este ódio. Não todo este ódio. Há aqui ódio que não é deles. Que não é propriamente para eles (ou não devia ser). Que é para uma conjuntura que os transcende. Que é para a estrutura deste tempo e desta civilização que se esgotou. Que é para a circunstância de simplesmente termos de acordar vivos de manhã e, talvez em não tão poucos casos assim, isso ser uma chatice.
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Ou: há pessoas furiosas há vinte anos. Há trinta anos. Há cinquenta. Estiveram furiosas em ditadura e estão furiosas em democracia. Estiveram furiosas sem Europa e estão furiosas com Europa. Estiveram furiosas em abundância e estão furiosas em crise. Estão furiosas porque estão vivas. E continuarão furiosas enquanto o estiverem.
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Depois perguntam-me se não me indigno e tenho de explicar por outras palavras. É claro que me indigno, Pedro. Só tento ser um pouco racional no meio do delírio. Compreender a natureza humana. Não me esquecer de que vivemos em democracia representativa, de que fomos nós que elegemos estes tipos e de que, ao contrário deles, nós voltámos as costas à coisa pública. No fim disso, sim, viro a indignação para eles. E odeio-os, de facto. Mas não na mesma medida.
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Tudo isto deveria ser desnecessário dizer. Estar adquirido entre seres pensantes. Sim, também nisso este tempo é um desastre: obriga-nos a dizer um monte de coisas totalmente desnecessárias, e que ao serem ditas quase perdem o seu valor.
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E, sim, Pedro, eu sou capaz de apaixonar-me. Escolheste bem a palavra, aliás. Sou apaixonado pela minha terra, pela literatura, pela mulher em particular e em geral. Sou apaixonado pelo cinema, pela comida, pelo golfe e pelo futebol (e um pouco pelo Sporting, embora menos do que gostaria de ser). Sou apaixonado pelos amigos. Sou apaixonado por pessoas, por objectos, por rotinas, por lugares, por cheiros e por memórias – perdidamente apaixonado por memórias. Já no que diz respeito à coisa pública, ao bem comum, à sobrevivência dos portugueses e à minha própria, não sou apaixonado de todo. Já não estou em idade de sê-lo. Ou tento sê-lo o menos possível. É a minha fraqueza.
July 11, 2013
Terra Chã, 11 de Julho de 2013
Os órgãos de Estado voltaram ontem a tremer, e eu acordei esta manhã acometido de uma certa estupefacção. Afinal, permanecia vivo. A Catarina também. E as pessoas com que nos cruzamos ao longo das caminhadas matinais, sempre nos mesmos lugares e às mesmas horas, igualmente. Até as raparigas do supermercado e do café e da florista permaneciam vivas. Aparentemente, o mundo vai continuar. Talvez até continue depois da crise toda, a política e a económica. E o melhor, se calhar, é nós insistirmos em respirar, como, com maior ou menor dificuldade, temos vindo a fazer. A ver se, já agora, continuávamos com ele.
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Amigos de todos os quadrantes, confrontados com a minha opinião sobre o prémio a George Lucas, vestem a pose diletante do "Ah, claro, os pseudo-intelectuais, uns chatos, só gostam de filmes do César Monteiro..." Tudo bem. Eles sabem, ou deviam saber, que entre George Lucas e César Monteiro (e mesmo para além deste) há milhares de categorias de intensidade, dificuldade e qualidade. O meu problema é esse: essas categorias são cada vez menos contempladas. A diversidade é cada vez menor. O afunilamento por razões puramente comerciais é cada vez mais óbvio, intenso e inescapável. George Lucas, no fundo, é só um instrumento para esta conversa. Eles sabem-no, e se não sabem deviam saber. Têm todo o direito, naturalmente, de exercer a dita pose. Como dizia Bart Simpson (cá vai uma referência pop, meus amigos!), a preguiça, sendo a mãe de todos os vícios, deve ser respeitada como se respeitam as mães. E, aliás, exercida com gosto. Mas não deixa de ser preguiça, meus amigos. Não deixa de ser preguiça. E desconfiar que essa suspeita começa a roer-vos por dentro já é recompensa suficiente para mim.
July 10, 2013
Terra Chã, 10 de Julho de 2013
Dizia Torcato Sepúlveda: "Ninguém gosta de escrever. Aquilo de que gostamos é de ter escrito." Acomodo-me ao computador, diante de um capítulo a meio, e lembro-me invariavelmente dele, sentado à minha frente no segundo andar da Rodrigues Sampaio, emparceirando connosco, miúdos e parvos, como se nunca tivesse emparceirado com tantos outros melhores do que nós. De todos os grandes talentos com que trabalhei, a mais nenhum, que me lembre, sobrou sempre espaço na página. Só a ele. Uma lição de humildade, de cultura e de faro, o Torcato. E, depois, essas palavras: "Ninguém gosta de escrever." Porque teria eu a presunção de contestá-las?
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Barack Obama vai entregar a George Lucas a Medalha das Artes da federação americana. O realizador, diz a Casa Branca, tem "uma imaginação sem limites". Como se tudo na arte, ou sequer na cultura, se resumisse à imaginação. Pois eu olho para a cultura popular contemporânea e já acho que a imaginação – ou isso que hoje em dia se entende por ela – só lhe tem feito mal. Se calhar, é tempo de gritar: “Chega de imaginação!” Já não se pode com tanta imaginação, que diabo.
July 9, 2013
Terra Chã, 9 de Julho de 2013
Dois jovens empregados da geladaria atropelam-se para explicar os procedimentos à nova colega, uma moreninha sorridente, de olhos vivos e ar rabino. Ao canto, um terceiro empregado serve cafés e galões em silêncio. A miúda está visivelmente satisfeita com as atenções, e a sua crueldade fica bem patente no modo como gera esperanças naqueles dois pobres diabos. Só o silencioso do canto, na verdade, tem alguma hipótese. E, se até ao final desse primeiro dia conseguir que ela lhe chame arrogante, cochichando com um dos outros num esgar de nojo e olhar torcido, é trigo limpo: a garota não chega donzela ao fim-de-semana. Ah, quem tivesse sabido isto aos 18 anos...
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O texto do dr. Soares no DN de hoje, e em concreto no ponto que se refere ao facto de D. Manuel Clemente ter deixado (sic) que membros do Governo fossem aplaudidos, é um contributo de monta para a historiografia deste tempo. Por mim, já o guardei para memória futura. Para a dos meus compatriotas, porque eu não me esqueço.
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Dou por mim a pedir que chova – logo eu, que a cada chuvisco, ao longo da vida, tive um ataque histérico. Não cai uma pinga, que me lembre, desde a noite de São João. Como se aguentará a agricultura, a minha horta e as outras todas?
July 8, 2013
Terra Chã, 8 de Julho de 2013
Na sexta fomos jantar lírio e enxaréu à esplanada do Beira Mar. No sábado vogámos pela ilha a ouvir os Notting Hillbillies, parámos para um piquenique num cerrado maravilhoso no interior dos Biscoitos, voltámos para casa para rever a Jane Campion, entregámo-nos com paixão ao revuelto de chouriço com vodka que – dieta oblige – planeámos a semana toda e adormecemos com um livro no colo. No domingo andámos o dia quase todo pela horta, trabalhámos duas horas nos projectos pessoais (eu no outline do romance, a Catarina nas leituras para a Presença) e saímos para comer pipocas e ver um filme tonto. Um ano depois, não restam dúvidas a nenhum de nós. É aqui que queremos viver. E, se um dia tivermos de reinventar o modo de nos sustentarmos, pois assim será.
Terra Chã, 1 de Julho de 2013
Aos três são disléxicos, aos seis hiperactivos, aos doze sobredotados, aos dezoito bipolares, aos trinta esquizofrénicos e aos cinquenta depressivos. A culpa nunca chegou a ser deles ou dos paizinhos deles. Às vezes, com o passar dos anos, vem a verificar-se ser dos filhos.
Terra Chã, 7 de Julho de 2013
Fitas reflectoras penduradas nas árvores, compact discs distribuídos pelos carreiros, espanta-espíritos comprados na loja do chinês, bebedouros coloridos por cima do muro, extracto de alho pulverizado foliarmente e até uma sotil de madeira e arame, que pretendo operar a partir da cozinha, com um barbante. Depois de um Inverno inteiro a perder a guerra contra os coelhos, estou determinado a esmagar os melros logo nos primeiros instantes da contenda. Andam descaradíssimos: debicam tudo, sobrevoam-nos placidamente, quase podem apanhar-se à mão. Na minha infância eram assustadiços, imagino que porque se sentiam ameaçados. Pois eu faço questão de que se sintam ameaçados de novo. Segue a artilharia toda de uma vez. E, se for preciso, ainda ponho na horta uma foto de codornizes fritinhas em azeite e alho, para eles verem que o tamanho, neste caso, não importa mesmo.
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Podemos, provavelmente, reclamar-nos auto-suficientes. Por esta altura, e tirando a semana em que cá estiveram as lisboetas, não compramos legumes há um mês.
Terra Chã, 6 de Julho de 2013
Os meus tomateiros crescem a olhos vistos. Vai honrar-se, portanto, uma velha tradição familiar: a produção, pelo clã Neto, dos mais belos e saborosos tomates dos Dois Caminhos. Isto com um acordeãozinho fazia-se aqui uma cantiga dos diabos.


