Vital Moreira's Blog, page 50
September 11, 2023
Ai, a dívida (21): A ilusão da "folga orçamental"
1. Pode parecer estranho regressar aqui aos alertas para o problema da dívida pública, quando o seu peso no PIB está a diminuir substancialmente e tudo indica que este ano haverá um excedente orçamental, e quando toda a gente, Governo e oposição, incluindo o PR, entende que há margem para reduzir os impostos. Penso, porém, que a "folga orçamental" é, em grande parte, ilusória e não tem fundamentos duradouros.
Por um lado, ela é produto de um excecional acréscimo das receitas públicas, mercê do processo inflacionista e da maciça transferência de fundos da UE no âmbito do PRR, que cobrem grande parte da despesa de investimento público e que estimulam o crescimento da economia. Por outro lado, o bom comportamento da economia e do emprego reduz a despesa social e aumenta a receita fiscal.
O que surpreende, nestas condições especialmente favoráveis, não é que haja "contas certas", mas sim que elas não sejam robustamente excedentárias, levando à redução do próprio stock da dívida pública.
2. Ora, estes ventos favoráveis não vão durar sempre.
Por um lado, a diminuição em curso da inflação vai acabar com o empolamento artificial da receita tributária; a economia dá mostras de arrefecer, tanto mais que a economia da União está em vias de estagnação, arrastada pela Alemanha, já em recessão; e os fundos do PRR vão acabar em 2026. Por outro lado, a despesa pública permanente não cessa de aumentar: SNS, remunerações da setor público, pensões, novas prestações sociais (creches gratuitas, passes sociais gratuitos, etc.), subvenções habitacionais, sem falar nos custos da dívida pública, em consequência do aumento da taxa de juros pelo BCE.
Conjugando as duas coisas, fácil é verificar que num prazo não muito afastado pode verificar-se o regresso em força do défice orçamental e do aumento da dívida pública.
3. Neste contexto, avançar para uma redução substancial dos impostos, nomeadamente do IRS, como propõe o PSD e é aceite em parte pelo PS, pode não ser uma solução muito prudente, sobretudo por parte do segundo, quer porque o consequente aumento do poder de compra iria travar o necessário combate à inflação, quer porque seria muito penoso politicamente para o PS ter de vir depois a cortar no Estado social por razões financeiras.
Justifica-se sem dúvida a redução do peso da tributação dos rendimentos do trabalho, bastante mais elevada do que a dos rendimentos do capital, mas a dimensão de tal redução deve ser devidamente ponderada e se possível compensada com outras fontes tributárias, por exemplo recuperando a proposta do imposto sobre as sucessões e doações de elevado montante (que o PS apresentou em 2015, mas que depois deixou na gaveta), aumento dos impostos e taxas sobre os automóveis (IUC, portagens, generalização do estacionamento pago) e dos impostos e taxas ambientais.
Em suma, a redução do IRS deve ser enquadrada num exercício de reforço da equidade fiscal.
http://rpc.twingly.com/September 10, 2023
Puerta del Sol (8): "Macrogeringonça" em Madrid?
1. A "geringonça" à espanhola que Sánchez, o líder do PSOE, está negociar em Espanha, em consequência dos inconclusivos resultados das recentes eleições parlamentares - ganhas pelo PP, mas sem maioria para governar -, promete ser ainda mais heterogénea e mais problemática do que a que sustentou o Governo cessante, por causa da necessária inclusão do partido dos independentistas catalães que desencandearam e estão incriminados pelo frustrado referendo de 2017.
Na verdade, o Junts exige um elevado preço pelo opoio a esse projeto governativo, designadamente, entre outras condições, uma amnistia sobre o caso do referendo - incluindo do seu presidente honorário, que é eurodeputado e se encontra exilado na Bélgica -, e o reconhecimento do direito à autodeterrminação da Catalunha.
Ora, se a amnistia poderia ser equacionada justamente a troco do abandono da proposta independentista, já a aceitação da ideia de autodeterminação por Madrid se afigura inaceitável, não somente por não ter cabimento constitucional, mas também por ela ir reforçar o centralismo "espanholista" no País, que a direita tão bem sabe explorar.
2. Tal como os socialistas espanhois, também defendo (como AQUI e AQUI) que a solução da questão plurinacional da Espanha passa por uma fórmula federal, que aliás deveria ter sido adotada logo na "transição democrática" e na Constituição de 1978, o que poderia ter evitado o desenvolvimento e cristalização de uma alternativa independentista.
A rejeição da solução federal pela direita, que só aceitou a solução de autonomias regionais ("comunidades autónomas"), acabou por desencadear uma crescente radicalização do separatismo em algumas dessas comunidades, sobretudo na Catalunha, culminando no referido referendo ilegal.
Mas a verdade é que, estando a autodeterminação excluída pela Constituição - e assim seria, mesmo que a Espanha tivesse adotado a solução federal -, não se vê como é que vai ser possível conciliar credivelmente o radicalismo separatista com uma coligação de Governo a nivel nacional.
http://rpc.twingly.com/September 9, 2023
Campos Elíseos (14): Laicismo radical
1. Discordo, mais uma vez, deste novo passo francês no sentido de um laicismo radical, desta feita com a proibição da abaya islâmica aos alunos da escola pública, o que, a meu ver, constitui uma violação da liberdade religiosa, a qual inclui o direito a seguir os costumes da respetiva religião, salvo se ofenderem a vida, a saúde ou a dignidade humana, o que não é manifestamente o caso.
Uma coisa é impor eventualmente a neutralidade religiosa aos agentes do Estado, o que abrange os professores, outra coisa é estendê-la aos utentes dos serviços públicos ou, pior ainda, aos cidadãos em geral. Ora, o regime de separação entre o Estado e a religião (laicidade do Estado) constitui uma garantia adicional da liberdade religiosa e do pluralismo religioso, não podendo transformar-se, contraditoriamente, num instrumento da sua restrição injustificada.
2. Penso que a França demora a conformar-se com o facto de que é definitivamente uma sociedade multiétnica e multirreligiosa, que tem de admitir as respetivas consequências ao nível das diferentes expressões da religião em público.
Felizmente, essa tentação ainda não teve réplica política em Portugal, onde, de resto, não vejo como é que medidas dessas poderiam passar no teste de conformidade constitucional do TC. Numa democracia liberal, não pode haver lugar para um laicismo autoritário.
AdendaHá muito que defendo este posicionamento sobre a matéria, por exemplo, AQUI e AQUI.http://rpc.twingly.com/Campos Eliseos (14): Laicismo radical
1. Discordo, mais uma vez, deste novo passo francês no sentido de um laicismo radical, desta feita com a proibição da abaya islâmica aos alunos da escola pública, o que, a meu ver, constitui uma violação da liberdade religiosa, a qual inclui o direito a seguir os costumes da respetiva religião, salvo se ofenderem a vida, a saúde ou a dignidade humana, o que não é manifestamente o caso.
Uma coisa é impor eventualmente a neutralidade religiosa aos agentes do Estado, o que abrange os professores, outra coisa é estendê-la aos utentes dos serviços públicos ou, pior ainda, aos cidadãos em geral. Ora, o regime de separação entre o Estado e a religião (laicidade do Estado) constitui uma garantia adicional da liberdade religiosa e do pluralismo religioso, não podendo transformar-se, contraditoriamente, num instrumento da sua restrição injustificada.
2. Penso que a França demora a conformar-se com o facto de que é definitivamente uma sociedade multiétnica e multirreligiosa, que tem de admitir as respetivas consequências ao nível das diferentes expressões da religião em público.
Felizmente, essa tentação ainda não teve réplica política em Portugal, onde, de resto, não vejo como é que medidas dessas poderiam passar no teste de conformidade constitucional do TC. Numa democracia liberal, não pode haver lugar para um laicismo autoritário.
AdendaHá muito que defendo este posicionamento sobre a matéria, por exemplo, AQUI e AQUI.http://rpc.twingly.com/September 5, 2023
O que o Presidente não deve fazer (37): O "mister"
1. Segundo a Constituição, o Conselho de Estado é o órgão de consulta do PR, naturalmente quanto ao exercício dos seus poderes próprios. Por isso, deve ser a instância em que o Presidente ouve os conselheiros sobre os temas que lhe propõe.
Todavia, segundo esta notícia, o Presidente já tem escrito o discurso que vai fazer na reunião de hoje do Conselho, mesmo antes de ouvir os seus membros, incluindo o Primeiro-Ministro, que teve de se ausentar da reunião anterior. Pelos vistos, em vez de discreto local de consulta presidencial, coligindo as opiniões nele expendidas, o Conselho de Estado está a ser transformado numa câmara de eco das opiniões presidenciais, logo depois indevidamente vazadas para os media.
2. O que a ordem de trabalhos definida para a esta reunião do Conselho de Estado revela, em conclusão da anterior, é a compulsivo propósito do PR de assumir como supremo definidor da agenda política interna e externa do País, condicionando a orientação e as políticas do Governo, de acordo com o seu programa, claramente à margem da Constituição, segundo a qual é ao executivo, e só a ele, sob orientação exclusiva do Primeiro-ministro, que compete a condução da política geral (interna e externa) do País, pela qual responde perante o parlamento, de que depende politicamente, apenas com a obrigação de manter o Presidente devidamente informado (a que a doutrina acrescenta um dever de consulta qualificado em matéria de política de defesa e de política externa). Manifestamente, o PR não tem um poder de superintendência política sobre o Governo.
Lamentavelmente, estamos assistir a uma deliberada tentativa presidencial de modificação do sistema de governo e de repartição de responsabilidades políticas constitucionalmente estabelecido. Importa denunciá-lo, para que não passe despercebido.
http://rpc.twingly.com/Não concordo (44): Efeito contraproducente
Discordei da redução temporária do IVA num conjunto de bens alimentares como meio de travagem da inflação, por várias razões (beneficiar toda a gente, mesmo quem não precisa, e ser orçamentalmente muito onerosa), tendo preferido o apoio seletivo ao rendimento as famílias mais carenciadas, socialmente justo e menos dispendioso.
Por maioria de razão, discordo da sua prorrogação, que o Governo se para adotar. Se a medida poderia fazer sentido para limitar o crescimento da inflação, já o não faz quando o processo da sua diminuição está em curso. De resto, como alerta o FMI, esse aumento geral do poder de compra, induzido pela baixa do IVA, pode ter efeitos contraproducentes, alimentando a procura e travando o ritmo de redução da inflação, assim retardando a meta dos 2%.
http://rpc.twingly.com/September 2, 2023
Não concordo (43): Às avessas
Que um partido como o BE defenda, mais uma vez, a derrogação da fórmula legalmente vigente de atualização das rendas no próximo ano, compreende-se - é coerente com as suas opções doutrinárias anticapitalistas e com o habitual simplismo sectário das suas propostas políticas. Que, porém, o Governo do PS possa sufragar tal solução, já seria de todo imprudente e injustificado.
Por um lado, trata-se de uma medida de efeitos perversos. Em primeiro lugar, o Governo não pode descartar uma fórmula legalmente estabelecida, já de si limitativa, só porque num certo ano ela pode levar a um aumento mais acentuado das rendas - os senhorios também têm direito à previsibilidade dos seus contratos. Em segundo lugar, a limitação das rendas traduz-se num subsídio geral a todos os arrendatários, mesmo os que menos necessitam, à custa de todos os senhorios, mesmo os de menor poder económico - o que é um contrassenso. Por último, a restrição artificial das rendas tem por efeito necessário a redução do investimento imobiliário para arrendamento, diminuindo a oferta de casas e encarecendo as rendas - justamente o contrário do que se deve procurar.
Por outo lado, a solução para o impacto social adverso de um aumento maior das rendas consiste no subsídio público seletivo aos inquilinos mais afetados, e não na contenção geral das rendas à custa dos senhorios. No Estado social, a proteção social, e em especial a garantia do direito à habitação, incumbe ao Estado, e não aos particulares.
http://rpc.twingly.com/September 1, 2023
O que o Presidente não deve fazer (36): Deslocado
1. Quem não entrou de férias foi o inesgotável ativismo político do atual inquilino de Belém, forçando as margens do seu estatuto constitucional, como sucedeu por estes dias, com a sua participação num evento político do PSD, seu partido de origem, num deslocado sinal de cumplicidade política.
Julgo não incorrer em erro, ao pensar que nenhum Presidente anterior se permitiu intervir num evento partidário, num entendimento, a meu ver constitucionalmente apropriado, de separação entre a presidência da República e os partidos políticos. Infelizmente, o atual Presidente decidiu afastar-se dessa prudente e consolidada prática, desde a origem do atual sistema político-constitucional.
2. Ao contrário do que sucede nos sistemas presidencialistas e em alguns dos chamados sistemas semipresidencialistas, entre nós o PR não é candidato eleitoral de partidos nem tem partido, uma vez eleito, o que está de acordo com o seu papel de "poder moderador", que supõe a sua imparcialidade partidária.
Mas parece evidente que, ao abandonar o princípio da separação, contra a lógica constitucional, o Presidente também perde em autoridade quanto ao seu papel primacial de garante do "regular funcionamento das instituições", que supõe obviamente a ausência de qualquer enviesamento partidário.
http://rpc.twingly.com/Regresso
Depois de umas prolongadas férias de verão, este blogue regressa à atividade.
Desejo agradecer aos vários leitores que ultimamente manifestaram a sua preocupação com uma eventual cessação do Causa Nossa. Sendo uma empresa individual, ele há de terminar um dia, mas não estamos na véspera disso, desde logo porque em novembro do corrente ano se completam os seus vinte anos de vida. E cá estaremos para o celebrar devidamente.
Na foto: cena de rua em S. Pedro de Atitlán, Guatemala, um destino de férias do autor, este ano.
http://rpc.twingly.com/July 13, 2023
Laicidade (11): Despautério
Parece que com a Jornada Mundial da Juventude entre nós o princípio constitucional da separação entre o Estado e as igrejas foi mandado de férias, perante a complacência geral.
Mas quem julgava que o pico da violação da laicidade constitucional tinha sido atingido com a decisão da CM de Lisboa de mandar edificar o palco-altar, com cruz e tudo, para a principal cerimónia religiosa - caso que aqui denunciei -, eis que o Presidente da CM de Cascais, possuído de zelo confessional, resolveu levar a melhor, com o anúncio entusiasmado de que o município vai gastar meio milhão de euros para comprar paramentos para os sacerdotes e outras alfaias religiosas!
E ninguém se escandaliza com este inconcebível despautério? Os partidos laicos vão deixar prevalecer cinicamente o silêncio cúmplice? O Ministério Público não vai impugnar o abusivo gasto de dinheiro público, em manifesto desvio de poder? O Tribunal de Contas vai depois aprovar as contas do município?
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