Nuno Camarneiro's Blog, page 8
April 16, 2012
Lugar
A cidade tem culpas por dentro da gente.Andamos por cima da cidade, polimos-lhe as esquinas e até dormimos nela. Temos medo, e confiamos em membranas que nos protejam: a sola dos sapatos, as roupas que trazemos, janelas ou pálpebras fechadas.Mas a cidade tem dedos finos que entram pelos olhos e pelas narinas e pelo meio de tudo. Dedos que agarram por dentro e não largam mais. É negro o chão da cidade e nem sabemos porquê. Talvez o queiramos assim, talvez o não saibamos evitar. Como seriam as vidas se assentassem noutras cores?A cidade é uma insónia de todas as horas, frémito nosso nela, nós nisso, nós o que bule, o que intoxica e mata. A cidade mata todos os dias.Aqui morrem duas vírgula oito pessoas por dia. Duas pessoas e oito décimas de pessoa a morrer todos os dias.Somos células especializadas da cidade. Limpamos, construímos, carregamos partes de um lugar para outro, transformamos energia em movimento e pensamos por ela. Células que morrem e nascem todos os dias, partes que adoecem e multiplicam.Somos partes pequenas e fundamentais, vivemos enquanto servimos, até que se esqueçam de nós ou nos falte o amor.Foi a cidade que inventou o amor.Não podemos amar sem geometria. Ruas que cruzam ruas, esquinas que dobram vidas, jardins onde os corpos passeiam e se escondem, um tecto onde o amor cresce e se alimenta de noite.São de toda a importância as árvores da cidade, como os candeeiros, a cor dos contentores, a inclinação das ruas e os desenhos na calçada.Pode muito bem amar-se só por estarmos aqui.
(Texto concebido para o concurso Performance Architecture de Guimarães 2012)
(Texto concebido para o concurso Performance Architecture de Guimarães 2012)
Published on April 16, 2012 14:31
April 14, 2012
Desiderata
Sim, meu amor, às vezes, muitas vezes, embriago-me de mim.Sou disso e pior ainda, como sonhar com sonhos, ou morrer acordado.Não tenho nada para dar, mas prometo roubar o que puder, assim, amor.Não garanto nada que possas lembrar, mas sou fácil de esquecer.Declino-me em tudo o que é fraco e pobre, e desilusões também sou.Ranjo os dentes a dormir e grito os nomes de outras mulheres. Engano-me mais do que a ti, mas vou enganar-te a ti.Tirando isso, prometo-te tudo, por quem me tomas, amor?
Published on April 14, 2012 15:30
April 9, 2012
How Soon Was Then
Eu conhecia as letras todasporque havia de ser precisocantar amor a qualquer horaDe manhã à porta da escola,nos bilhetes de mão em mão,e à noite virado para o tectoO amor dizia-se em inglêsporque não cabia na línguapobre de todos os meus diasVeio depois a vida inteirae desse amor só um poucoque ainda pude lembrarAgora canto os lalalasde palavras muito iguais e sempre mais estrangeiras
Published on April 09, 2012 15:31
April 1, 2012
queda de um grave
a sonhar tu saltaste e eu caíparti um braço e perdi-te para o aragora quando sonho eu caio e tu voastrago o braço direito parado no peitoe digo-te adeus com tudo o que é esquerdo
Published on April 01, 2012 13:38
March 29, 2012
Até em Deus eu acredito
Nas dores de quem é velhoNa meteorologiaNa morteNas promessas de um bêbedoNos teus olhos clarosNa mão de quem pedeNo fim do mundoNo fim de mimNa Senhora da SaúdeNas coisas que eu cá seiNos dias que hão-de virNos deputados da naçãoNos amanhãs que cantamNas pessoas todasNa sorteNo destinoNa volta do que já foiNo menino JesusNo que eu já fuiNo amor agoraNa manhã agora
Published on March 29, 2012 13:48
March 19, 2012
Beijar o Mar
Um pai atravessa o oceano e morre longe da gente. Um pai a menos.
"Arredem-me o mar que quero voltar para casa". Foram as palavras que lhe ouviram, depois morreu.Nunca chegámos a saber o que o fez partir. Uma carta deixada na mesinha de cabeceira, uma mãe em lágrimas e nós meninos pendurados da saia em perguntas de jantar.Tínhamos poucos anos e aprendemos a calar. Minha mãe fez-se homem e trabalhou mais e deu-nos de comer e nunca mais cantou.Não chegaram outras cartas, só aquela tão tardia. O pai que eu não tinha estava morto num lugar.Escolhi um verão e fui atrás dele. Disseram-me onde jazia, terra chã de cruz em cima, aquilo um pai. Era uma pequena cidade costeira, a casa abandonada junto à praia, miserável, sem tratos de mulher. Garrafas vazias, roupas esburacadas, um colchão imundo e os bichos a tomar conta. Abri as gavetas e espreitei o armário, alguns documentos, cartas do banco, uma fotografia de família (de quando ainda sabíamos sorrir) e um maço de bilhetes. A letra desenhada em muitos redondos, excessiva, corações infantis a servir de assinatura. Encontros marcados, outros adiados, "hoje, no lugar que é nosso", "beijinhos para o meu benzinho", enjoos desses, coisas de menina ou puta de qualquer idade.Saí dali e andei às voltas, imaginando-me trinta anos mais velho, tolo de palmeiras e de uma mulher vulgar. Que pai parvo deixaria a minha mãe por uma galdéria de corações?Dirigi-me ao centro da cidade, bebi algumas cervejas e perguntei. O falecido português, que vida a dele? Foram-me dizendo pouco, que andava por ali, à pesca e aos copos, um resto de homem que nem se entendia.Passei pelo hotel a buscar lençóis e fui para a praia deitar-me na cama do velho, alguma coisa haveria de entender. O sono veio embrulhado de ondas, um vaivém de ideias e corpo, a cama feita barco, ou náufrago, ou homem bêbedo. De manhã cedo a luz pelo telhado falido e o calor a empurrar-me para fora.Molhei os pés e lavei a cara de sal, quieto num espanto de dia, à beira de qualquer coisa que me escapava. Pensei em peixes arrimados ao cimo de ondas, olhando a terra e pensando na vida.Aproximou-se um homem sujo a rir com poucos dentes. "Menino, você é a cara do português!" E ria, e veio para mim. Perguntei-lhe se o conhecia, se me podia ajudar a compreender, a mulher, quem era essa mulher?E o homem riu muito mais, e deu passos de dança até cair na areia e eu sentar-me a seu lado."Seu pai era homem sem mulher, rapaz, era doido sozinho mesmo. Bilhete? Que bilhete? Isso era coisa da mão dele. Todo o dia o português vinha para a praia, assim que nem você, e se adentrava no mar como fosse coisa feminina. Depois, quando a água chegava na boca dele, ele fechava os olhos e beijava o mar, doido daquilo, parecia até sexual!".Fiz-lhe mais algumas perguntas, mas o homem não disse mais nada. Imitava os beijos do meu pai e ria e cantava até se levantar e desaparecer longe na areia.Demorei-me ali a imaginar a loucura que haveria de herdar. Uma doença de águas e um amor tão desproporcionado. O meu pai era louco, mas talvez não fosse parvo. O mar tão perto, o vento quente, o contrário de nós. Não era coisa de ser normal, mas podia um homem perder-se daquilo. Levei o resto das coisas para a casa da praia e fiquei à procura de uma história para contar. Algumas semanas, alguns meses, até me esquecer de procurar.
Afinal aquilo não era coisa de contar.
(Texto publicado na revista "Rua Larga", da Universidade de Coimbra)
Published on March 19, 2012 23:07
March 18, 2012
Nominal
Que nome dar a isto, a ser assim?A saber que tudo foi já perdidomas viver como se houvesse sole gente para amar e até meninosE a música tocasse e se pudessedançar com sonhos por ideiase beijos dados por não darE houvesse em algum lugarum deus que assobia e rezapor todas as almas inúteisde todas as nossas flores
Um nome único para quem sabeda chuva mais do que o cairdos dias mais do que passar
Um nome único para quem sabeda chuva mais do que o cairdos dias mais do que passar
Published on March 18, 2012 01:39
March 15, 2012
Boas Notícias
Nuno Camarneiro escolhido para festival francês de primeiros romances.
http://www.leya.com/noticias/detalhes...
http://www.leya.com/noticias/detalhes...
Published on March 15, 2012 07:14
March 6, 2012
andando
não tenho versos que te sirvamnem beijos que cheguem para tiando curto de todas as palavrase só risos e passeios lentos a pépelas ruas de sol da tua cidadeencolho ainda o amor na línguaporque me dói isso, o verbo –teque eu esmurrei em particípioleva-me certo nas mãos certase olha para a frente de nóscomo se eu não fosse atraso ou sombra, ou um homem sómas te andasse nos mesmos pése te amasse, e andando te amasse
Published on March 06, 2012 23:06
January 30, 2012
retrato de agora sem ti
afogo-me muito nestas tardes ao céuum sol que não chega, não alegra nem corum cigarro nos dedos a queimar are o tempo lento de agora menos um quartoanda por aí amor às sombras de tudobeijos que mordem olhos que olhame um frio de ossos a suster-me a pelese hoje o mar me tocar desapareçocomo um poema de água nas mãos
Published on January 30, 2012 21:59


