Nuno Camarneiro's Blog, page 7

August 20, 2012

Agosto


Ouço os emigrantes que falam entre eles com línguas novas, rostos tão Sul de sons tão Norte.Ouço os emigrantes que falam em línguas e sinto-me assim, voltado de um lugar que não fica onde. Digo palavras que são só minhas e que nem eu entendo, são palavras-ponte que já ninguém atravessa. Só os sotaques e as minis lhes seguram o passado, como a mim o medo e algumas canções antigas. 
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Published on August 20, 2012 13:17

July 18, 2012

Concomitância


Tinha vinte anos em Paris. Estava a meio de uma escala demorada, a caminho de casa, de um país pequeno e de uma vida triste. Mas isso vem mais tarde, a vida e o futuro mais tarde.Andou perdido e deslumbrou-se com os edifícios, os jardins, os museus e a gente. Cidade desenhada para o espanto, Paris derrota os olhares. Ao final do dia entrou num café e pediu uma cerveja. Abriu a mochila de onde tirou um caderno e uma esferográfica, mas não soube escrever nada.  Recompunha-se ali, pensava um pouco e perguntava os rostos dos outros clientes quando cruzou um par de olhos que também andavam desencontrados. Fixaram-se durante algum tempo, fugindo para os copos e voltando logo a seguir. Os sorrisos mais fortes que o embaraço e em poucosegundos estavam já à distância de uma mesade café. O rumor do sítio e alguns copos de uma cerveja vermelha criaram entreeles uma intimidade precoce. Falaram ao ouvido, ela riu-se do mau francês, e ele de estar ali com ela, loira e estrangeira, um corpo tão pronto.Saíram para a rua e descobriram a noite inteira. Caminharam, ouviram música, beijaram-se, dançaram e viram espantados como o Verão se apaga nas águas lentas do Sena. O resto foi silêncio e sonho, até à despedida nebulenta na estação de comboios. Um último abraço e uma promessa tonta. As lágrimas entre ambos sentidas de um amor curto, certeiras de muito doer.No percurso da sua vida não voltou a ter horas assim. Foi-se deixando pintar lentamente num quadro sem cores, fazendo o que toda a gentefaz. Trabalhar, acumularcapital, arranjar mulher, filhos, aparelhosdomésticos e de transporte, promoções, outras máquinas, algumas amantes maisou menosremuneradas, ginásio e fins-de-semana à beira-mar. E assim até rebentar, como também se costuma fazer.Trinta anos passaram. Muitos dias a fingir querença e a adiar vontades, somando cuidadosamente pequenas parcelas de nada. Só os sonhos lhe fugiam por outros caminhos, escalando altos de loucura, caindo em águas fundas. Assim até não poder ser mais.Os filhos emancipados, uma menopausa precoce com direito a cursosde pintura, e ei-lo que inventa uma viagemde negócios. A Paris, à sua ideia de Paris.Desceu na estação que o vira partire acreditou sentir no arum cheiroíntimo. Passeou o mesmo deslumbre pelacidade condescendente e procurou as pegadas invisíveisde alguém quejá tinhasido. Um trânsitoem espiral até ao centro delongado no caféainda aberto. A mesma mesa, a mesma horado dia, trinta anos passaram.Com gestos encadeados pediu a cervejavermelha, pousou o copo e dirigiu os olhospara uma esperançaremota. E foi assimmesmo, comtodas as probabilidades em seu desfavor, que viu as suas expectativas reflectidas no espelho da parede longínqua. Era eleque se olhava a sique se olhava. Duas, três, quatrocervejas, e ela nãoapareceu. Não se interrompeu o caminho óptico de um desejo triste que observava o passado.Paris morrera, e nada mais aconteceu.
Conto publicado na revista "A Sul de Nenhum Norte" que pode ser descarregada aqui: http://www.mediafire.com/?5xc6kcfznolwilc
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Published on July 18, 2012 15:23

July 17, 2012

Acordar um Dia XLV

Acordar um dia com os anos todos em cima. Ter feito muitas coisas e nenhuma razão forte para nada. Os dias fizeram-se assim, como na canção.
O mês passado morreu uma rapariga que escrevia e que agora já não escreve. Continuo a lê-la à espera que acorde, há-de acordar, como um carro se empurra para que pegue.
Acorda, estou a ouvir-te ainda, acorda por favor.
http://herois-a-dias.blogspot.pt/


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Published on July 17, 2012 14:48

July 13, 2012

Credo


As palavras têm donoSão sempre de alguémOu da falta de alguémE os versos também sãoSaem de dentro da genteVindos de fora da genteE têm nome e um rostoE lêem-se como um álbumDe fotos que custa abrirMas não sabemos fecharE são o caminho toscoDo que pensávamos serPara o que agora somosOu acreditamos serOu já não acreditamos
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Published on July 13, 2012 18:19

July 8, 2012

Rodoviária


como estrada nacional passando por tium voto ao tempo, coisa muito de vagarmil curvas de entender-te caminhoe o andar lento de quem só quer pararsomo absurdos nos olhos espantados:armazéns, néones, louças e moradias  és tanto que eu não entendo, cachopamas nunca é longe eu estar aqui
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Published on July 08, 2012 15:18

May 10, 2012

queria as palavras certas de um contrárioo teu nome muita...


queria as palavras certas de um contrárioo teu nome muitas mil vezes, ou beijos, oudomingo de todas as minhas certas horastão perdido ando de agora ter caminhopara o centro exacto de nós, para dentrode um desejo que não chega, que anda aquiao nosso lado viajam as cores vermelhasuma música coral de dias já esquecidose olhos que bebem mãos e pele e risosafinal esperei por tanto o que corriafinal cheguei ao muito fundo de ti
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Published on May 10, 2012 14:49

April 29, 2012

Um Velho


O velho acordava com o sol, levantava-se, e ia até à janela somar pássaros; depois lavava-se, vestia-se, comia uma laranja e descia à rua com um número na cabeça.O velho caminhava lento até à praça dos autocarros e procurava o número que trazia. Entrava no autocarro correspondente e escolhia um lugar ao fundo, de onde pudesse olhar e passar despercebido.As pessoas entravam, liam o jornal ou conversavam e depois tocavam a campainha e saíam num lugar. Tantos lugares, pensava o velho, e imaginava o que fariam ali, torcendo as mãos nos gestos de escrever, martelar ou apertar parafusos.A meio da manhã o autocarro chegava vazio à paragem terminal. Ele descia e ficava alguns instantes a olhar em volta. Por vezes chegava a subúrbios de prédios altos e cinzentos, outras a pequenas aldeias que resistiam a ser cidade.O velho começava então a andar até encontrar um jardim, ou uma taberna, ou um centro de saúde onde estivessem outros velhos como ele. Mas diferentes dele.Sentava-se a seu lado e dava os bons dias. Trocavam nomes, um aperto de mão, e em pouco tempo começavam a contar histórias da vida. Ele contava a sua e depois ouvia-os com atenção, anotando na cabeça os pormenores todos: as datas, os nomes dos filhos, dos netos e das ex-mulheres. Todos os velhos tinham histórias cheias de gente e de pormenores.À tarde voltava para a casa vazia. Uma vida de tantos anos e as paredes sem fotos, e a memória branca, e nem cartas ou prendas.Então o velho sentava-se à secretária e escrevia num caderno as histórias que escutara. Tudo muito devagar, decorando com cuidado as palavras exactas para o dia seguinte. 
(Texto concebido para o concurso Performance Architecture de Guimarães 2012)
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Published on April 29, 2012 13:30

April 25, 2012

Soma


A minha, o meu, e eu sem nenhum.Sou apenas eu, e tão pouco às vezes.O meu já anda, o meu aprendeu a falar.O eu já dói e geme um pouco ao baixar.Uma vida limpa, sem restos nem filhos,ou amores a sério, ou obra que se veja.Não estraguei nada e deixo o que achei:um pedaço de ser quase por estrear.Talvez um dia morra como quem desnasce,as dores e os prazeres somados em nadaaté à última casa decimal de porra nenhuma.Terei aprendido às minhas grandes custasA arte perfeita de apenas fazer horas.
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Published on April 25, 2012 16:19

April 23, 2012

Um Amor


O meu relógio parou em ti. A mesma música a tocar no rádio do carro e a mão que procura uma perna e se fecha contrariada.Abro a janela para que fujas de vez. Escolho outros caminhos, evito bairros inteiros e cafés, bares e supermercados. Comeste metade da cidade e às vezes perco-me a contornar rotundas sem saber para onde ir. Encurralaste-me fora de ti. Foi culpa nossa, de amarmos por todo o lado como se aquilo não coubesse, como se uma vontade parva de tomar espaço e multiplicar por metros os centímetros de paixão.Ali dormimos os dois. As conversas que viravam esquinas e iam de tua casa para todo o lado. Não tenho por onde andar que não te ouça. Os teus dedos quentes por entre os meus aqui, aquela casa, lembras-te? Lembro-me eu. Foi um amor grande para uma cidade tão pequena. Não temos espaço para a indiferença, ou te amo ainda ou devo odiar-te e lutar por cada esplanada, por cada amigo, rua a rua, numa guerrilha de coração preso.Foi culpa nossa, de não amarmos sempre no mesmo lugar como quem corta o cabelo ou compra o pão de cada dia. Agora é tarde, agora dou voltas infinitas às rotundas.Vou emigrar de ti, levo a tua foto e um livro de poemas para olhar e lembrar o mapa do meu país. 
(Texto concebido para o concurso Performance Architecture de Guimarães 2012)

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Published on April 23, 2012 13:11

April 21, 2012

Um Prédio


No segundo esquerdo um homem morreu de desejo.No terceiro direito viveu um padre que bateu com a cabeça em Deus e caiu em cima de uma mulher.Debaixo das escadas da entrada um menino guarda pedras e vidros coloridos para um dia ser artista.É um prédio frágil e sentimental, de tangos e boleros que tocam por dentro das paredes e se ouvem à noite só por sonhos. Quem lá mora enlouquece lentamente até fazer parte dele. É um prédio feito de muitas loucuras.Há uma menina a dançar sozinha no rés-do-chão.Há um cão que olha para a rua e ladra aos homens de bigode.Há um velho doente que fuma sentado e se apaixona por todas as raparigas.O prédio tosse e suspira e arrepia-se às vezes. No terceiro esquerdo já não mora ninguém. As estantes da sala guardam restos de felicidade: fotografias, livros oferecidos, filmes que foram vistos a dois e que agora doem ao lembrar. As janelas do prédio dão todas para dentro.No segundo direito uma senhora antiga, um vestido negro e um desvario de mãos a bordar flores.No primeiro esquerdo está um homem deitado ao lado de uma mulher que respira e dorme com o corpo todo. Faz frio no prédio, sempre frio, mesmo no Verão. Quando alguém entra tem de vestir um casaco, ou sentir tristeza ou acender o que puder arder.No primeiro direito uma rapariga de olhos fechados grita sozinha com medo do que lhe pode acontecer.
(Texto concebido para o concurso Performance Architecture de Guimarães 2012)
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Published on April 21, 2012 06:02