Denise Bottmann's Blog, page 117
December 13, 2010
lendo walden, VI
.Uma das frases mais bonitas em Walden:
I long ago lost a hound, a bay horse, and a turtle dove, and am still on their trail. [Muito tempo atrás perdi um cão de caça, um cavalo baio e uma rola, e ainda continuo a procurá-los. p. 29.]
Essa é difícil, e não sei explicar. Meu consolo é que não sou só eu.
Dizem do cão de caça: seria o gentle boy Edmund Sewall, a autoria de um livro, a emanação de uma essência, o instinto ou sensibilidade para descobrir o rastro das coisas, uma decepção emocional expressa em termos míticos, uma referência aos antigos poetas persas, o símbolo da natureza, a Verdade, a constelação Cão Maior, uma perda material cifrada segundo os Quatro Livros Chineses, imagem tomada a alguma antiga balada (como "The Twa Corbies"), imagem tomada ao velho folclore irlandês ("The Story of Conn-eda"), referência ao poema de Ermerson "Forerunners", encarnação do sentimento de perda em si, referência a Zadig de Voltaire, mentirinha como pretexto para entrar em propriedades alheias...
Dizem do cavalo baio: seria seu irmão John Thoreau, ter uma propriedade rural, emanação de outra essência, a sagacidade e a força para empreender a busca das coisas, outra decepção emocional expressa em termos miticos, outra referência aos antigos poetas persas, o símbolo do estímulo intelectual, a Bondade, a constelação de Pégaso, outra perda material cifrada segundo os Quatro Livros Chineses, outra imagem tomada a alguma antiga balada (como "The Twa Corbies"), outra imagem tomada ao velho folclore irlandês ("The Story of Conn-eda"), mais uma referência ao poema de Ermerson "Forerunners", encarnação do sentimento de perda em si, outra referência a Zadig de Voltaire, mais uma mentirinha como pretexto para entrar em propriedades alheias...
Dizem da rola: seria sua amada Ellen Sewall, ter a esposa de seus sonhos, emanação de outra essência, a inocência que assegura a proteção divina, outra decepção emocional expressa em termos miticos, outra referência aos antigos poetas persas, o símbolo da purificação espiritual, a Beleza, a constelação das Plêiades, outra perda material cifrada segundo os Quatro Livros Chineses, outra imagem tomada a alguma antiga balada (como "The Twa Corbies"), outra imagem tomada ao velho folclore irlandês ("The Story of Conn-eda"), mais uma referência ao poema de Ermerson "Forerunners", encarnação do sentimento de perda em si, mais uma referência a Zadig de Voltaire, outra mentirinha como pretexto para entrar em propriedades alheias...
Perguntaram várias vezes a Thoreau o que aquela frase queria dizer. Numa das vezes, ele respondeu que nossas experiências são únicas e exclusivas, mas que usamos uma linguagem para expressá-las que é comum a todos. E continuou: assim como os outros tinham perdas pessoais, ele também tinha as suas - e que o cão de caça e o cavalo "deles" talvez até pudessem ser símbolos de algumas das perdas dele, Thoreau.
Aqui talvez seja bom lembrarmos, nós dos centros urbanos do século XXI, que cento e setenta anos atrás, em pequenos povoados rurais (Concord tinha cinco mil habitantes), não era raro que as pessoas perdessem seus cães e cavalos, que volta e meia se extraviavam ou fugiam. Assim, dizer que tinha perdido um cavalo não era nada do outro mundo: fazia parte da vida, e podia ser usado como imagem a partir do common mint da linguagem, para expressar experiências diversas.
Prossegue Thoreau: mas tinha perdido ou estava em vias de perder um bem muito mais etéreo e precioso que nenhuma perda "deles" seria capaz de simbolizar.
Claro, ninguém criava rolinhas, que viviam soltas na natureza; não eram "bens", ninguém perdia uma rola como se podia perder um cavalo ou um cão de caça - daí também a estranheza da frase para seus conterrâneos: perder um cavalo, ok, deve ser símbolo de alguma coisa que a gente até consiga entender; mas perder uma rola?!
Assim Thoreau se dá à pachorra de explicar que escolhera a imagem da rola como símbolo de um tesouro muito mais etéreo, porque essa perda que ele queria expressar não encontraria uma imagem correspondente na experiência e na consciência de seus conterrâneos. Não era um cavalo nem um cão, que, estes sim, eram imagens que (talvez) podiam encontrar correspondentes na experiência e consciência deles.*
Eis aqui o trecho de sua carta a Wiley, em 1857, a mais longa resposta quando lhe perguntavam sobre o significado da passagem:
Há outra resposta de Thoreau, e que é minha preferida: cáustica, curta e que, em sua rudeza, não deixa de ser divertida. Respondendo a mais um curioso, disse ele: "Bem, meu senhor, suponho que todos nós temos nossas perdas". (Claro que seu interlocutor não gostou e retrucou: "Que bela maneira de responder aos outros".)
Disse Harding, o comentador de Walden que já citei outras vezes: a variedade de interpretações é tão grande, e a falta de unanimidade é tão completa que cada leitor fique à vontade para entender essa passagem como desejar.
* Diga-se de passagem: esse conceito de Thoreau sobre si mesmo como uma espécie de detentor ou profeta da verdade, e todo ou quase todo o resto da humanidade tomado de um filistinismo irrecuperável, é o próprio estofo de Walden - como ele deixa claro desde a epígrafe da obra, ao se apresentar, aliás bastante simpaticamente, como o pomposo chantecler matutino em sua missão de despertar o próximo.
acompanhe lendo walden aqui.
imagem: google images
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I long ago lost a hound, a bay horse, and a turtle dove, and am still on their trail. [Muito tempo atrás perdi um cão de caça, um cavalo baio e uma rola, e ainda continuo a procurá-los. p. 29.]
Essa é difícil, e não sei explicar. Meu consolo é que não sou só eu.
Dizem do cão de caça: seria o gentle boy Edmund Sewall, a autoria de um livro, a emanação de uma essência, o instinto ou sensibilidade para descobrir o rastro das coisas, uma decepção emocional expressa em termos míticos, uma referência aos antigos poetas persas, o símbolo da natureza, a Verdade, a constelação Cão Maior, uma perda material cifrada segundo os Quatro Livros Chineses, imagem tomada a alguma antiga balada (como "The Twa Corbies"), imagem tomada ao velho folclore irlandês ("The Story of Conn-eda"), referência ao poema de Ermerson "Forerunners", encarnação do sentimento de perda em si, referência a Zadig de Voltaire, mentirinha como pretexto para entrar em propriedades alheias...
Dizem do cavalo baio: seria seu irmão John Thoreau, ter uma propriedade rural, emanação de outra essência, a sagacidade e a força para empreender a busca das coisas, outra decepção emocional expressa em termos miticos, outra referência aos antigos poetas persas, o símbolo do estímulo intelectual, a Bondade, a constelação de Pégaso, outra perda material cifrada segundo os Quatro Livros Chineses, outra imagem tomada a alguma antiga balada (como "The Twa Corbies"), outra imagem tomada ao velho folclore irlandês ("The Story of Conn-eda"), mais uma referência ao poema de Ermerson "Forerunners", encarnação do sentimento de perda em si, outra referência a Zadig de Voltaire, mais uma mentirinha como pretexto para entrar em propriedades alheias...
Dizem da rola: seria sua amada Ellen Sewall, ter a esposa de seus sonhos, emanação de outra essência, a inocência que assegura a proteção divina, outra decepção emocional expressa em termos miticos, outra referência aos antigos poetas persas, o símbolo da purificação espiritual, a Beleza, a constelação das Plêiades, outra perda material cifrada segundo os Quatro Livros Chineses, outra imagem tomada a alguma antiga balada (como "The Twa Corbies"), outra imagem tomada ao velho folclore irlandês ("The Story of Conn-eda"), mais uma referência ao poema de Ermerson "Forerunners", encarnação do sentimento de perda em si, mais uma referência a Zadig de Voltaire, outra mentirinha como pretexto para entrar em propriedades alheias...
Perguntaram várias vezes a Thoreau o que aquela frase queria dizer. Numa das vezes, ele respondeu que nossas experiências são únicas e exclusivas, mas que usamos uma linguagem para expressá-las que é comum a todos. E continuou: assim como os outros tinham perdas pessoais, ele também tinha as suas - e que o cão de caça e o cavalo "deles" talvez até pudessem ser símbolos de algumas das perdas dele, Thoreau.
Aqui talvez seja bom lembrarmos, nós dos centros urbanos do século XXI, que cento e setenta anos atrás, em pequenos povoados rurais (Concord tinha cinco mil habitantes), não era raro que as pessoas perdessem seus cães e cavalos, que volta e meia se extraviavam ou fugiam. Assim, dizer que tinha perdido um cavalo não era nada do outro mundo: fazia parte da vida, e podia ser usado como imagem a partir do common mint da linguagem, para expressar experiências diversas.
Prossegue Thoreau: mas tinha perdido ou estava em vias de perder um bem muito mais etéreo e precioso que nenhuma perda "deles" seria capaz de simbolizar.
Claro, ninguém criava rolinhas, que viviam soltas na natureza; não eram "bens", ninguém perdia uma rola como se podia perder um cavalo ou um cão de caça - daí também a estranheza da frase para seus conterrâneos: perder um cavalo, ok, deve ser símbolo de alguma coisa que a gente até consiga entender; mas perder uma rola?!
Assim Thoreau se dá à pachorra de explicar que escolhera a imagem da rola como símbolo de um tesouro muito mais etéreo, porque essa perda que ele queria expressar não encontraria uma imagem correspondente na experiência e na consciência de seus conterrâneos. Não era um cavalo nem um cão, que, estes sim, eram imagens que (talvez) podiam encontrar correspondentes na experiência e consciência deles.*
Eis aqui o trecho de sua carta a Wiley, em 1857, a mais longa resposta quando lhe perguntavam sobre o significado da passagem:
How shall we account for our pursuits, if they are original? We get the language with which to describe our various lives out of a common mint. If others have their losses which they are busy repairing, so I have mine, and their hound and horse may perhaps be the symbols of some of them. But also I have lost, or am in danger of losing, a far finer and more ethereal treasure which commonly no loss, of which they are conscious, will simbolize.Seja como for, acho interessante essa clivagem entre o cão e o cavalo, de um lado, e a rola de outro lado - e não só pelo sentido mais evidente de que os dois andam na terra e a avezinha voa nos céus. É uma pista que, porém, acarretaria algumas ressalvas às interpretações que situam esses símbolos no mesmo patamar, p.ex., respectivamente: Verdade, Bondade e Beleza; ou sensibilidade, força e inocência; ou livro, terras e esposa; ou natureza, intelecto e espírito...
Há outra resposta de Thoreau, e que é minha preferida: cáustica, curta e que, em sua rudeza, não deixa de ser divertida. Respondendo a mais um curioso, disse ele: "Bem, meu senhor, suponho que todos nós temos nossas perdas". (Claro que seu interlocutor não gostou e retrucou: "Que bela maneira de responder aos outros".)
Disse Harding, o comentador de Walden que já citei outras vezes: a variedade de interpretações é tão grande, e a falta de unanimidade é tão completa que cada leitor fique à vontade para entender essa passagem como desejar.
* Diga-se de passagem: esse conceito de Thoreau sobre si mesmo como uma espécie de detentor ou profeta da verdade, e todo ou quase todo o resto da humanidade tomado de um filistinismo irrecuperável, é o próprio estofo de Walden - como ele deixa claro desde a epígrafe da obra, ao se apresentar, aliás bastante simpaticamente, como o pomposo chantecler matutino em sua missão de despertar o próximo.
acompanhe lendo walden aqui.
imagem: google images
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Published on December 13, 2010 17:37
lendo walden, V
.Quando saiu a primeira edição de Walden, em 1854, a obra tazia o subtítulo or, Life in the Woods.
Para esse subtítulo, segundo Harding, Thoreau pode ter se inspirado num ensaio de seu amigo Charles Lane, "Life in The Woods", publicado em 1844 em The Dial , a revista do grupo transcendentalista, ou no texto de John S. Williams, "Our Cabin; or, Life in the Woods", publicado em 1843 na American Pioneer.
Seja como for, mais tarde Thoreau mudou de ideia e preferiu retirá-lo. Uma das hipóteses é que ele achou que os leitores estavam tomando muito ao pé da letra a menção a uma vida na mata, sem dar tanta atenção aos aspectos mais importantes da obra, isto é, suas reflexões filosóficas. Então escreveu a seus editores Ticknor and Fields, pedindo que eliminassem o subtítulo nas edições seguintes, no que foi acatado.
E é por isso que a edição da L&PM se chama apenas Walden.
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Para esse subtítulo, segundo Harding, Thoreau pode ter se inspirado num ensaio de seu amigo Charles Lane, "Life in The Woods", publicado em 1844 em The Dial , a revista do grupo transcendentalista, ou no texto de John S. Williams, "Our Cabin; or, Life in the Woods", publicado em 1843 na American Pioneer.
Seja como for, mais tarde Thoreau mudou de ideia e preferiu retirá-lo. Uma das hipóteses é que ele achou que os leitores estavam tomando muito ao pé da letra a menção a uma vida na mata, sem dar tanta atenção aos aspectos mais importantes da obra, isto é, suas reflexões filosóficas. Então escreveu a seus editores Ticknor and Fields, pedindo que eliminassem o subtítulo nas edições seguintes, no que foi acatado.
E é por isso que a edição da L&PM se chama apenas Walden.
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Published on December 13, 2010 08:53
December 12, 2010
lendo walden, IV
.Um aspecto fundamental, no pano de fundo de Walden, é a doutrina vegetariana do grupo transcendentalista com que se relacionava Thoreau. Embora não fosse um transcendentalista estrito, nem um vegetariano "linha dura", Thoreau evitava alimentos de origem animal e preferia uma dieta simples.
Há inúmeras passagens em Walden sobre o tema, em especial no capítulo "Leis superiores". Uma das frases que bem sintetizam sua posição, a meu ver, é a seguinte:
Thoreau mantinha um regime de disciplina física quase espartano: caminhava diariamente dezenas de quilômetros, subindo montes, escalando escarpas, percorrendo florestas com pernas notoriamente atléticas; evitava gorduras, carne, leite, manteiga, pratos elaborados, estimulantes como chá e café, era abstêmio e não fumava. Essa disciplina na busca da realização individual encontra curiosas semelhanças em Nietzsche, outro infatigável e atlético caminhante, vegetariano frugal e avesso ao álcool.
Nietzsche foi grande, dizem alguns até fervoroso e entusiástico, leitor de Emerson, e há quem aponte as raízes do übermensch nietzscheano no plus man emersoniano. Para além da abordagem doutrinária, conceitual ou filosófica dos dois pensadores, talvez pudesse ser interessante comparar alguns aspectos dos programas físico-dietéticos adotados por Thoreau e Nietzsche.
Uma triste ironia desse ideário de espiritualização por meio da disciplina física, no caso de Thoreau - além da morte precoce antes de completar 45 anos de idade -, foi que, desde os 32 anos, não lhe restava um único dente na boca.
imagem: flor de cenoura
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Há inúmeras passagens em Walden sobre o tema, em especial no capítulo "Leis superiores". Uma das frases que bem sintetizam sua posição, a meu ver, é a seguinte:
Acredito que todo homem que algum dia se empenhou seriamente em preservar ao máximo suas faculdades poéticas ou mais elevadas teve uma especial propensão em se abster de alimentos de origem animal. (p. 207)A questão era programática, para a elevação do espírito. Mas não só; não se tratava de alguma espécie de mortificação da carne. Era antes uma forma de se colocar em harmonia com o universo, obedecendo ao que a própria natureza ensinava (aqui também se fazem visíveis as influências do romantismo inglês e ressonâncias goetheanas):
Por que o homem se enraíza com tanta firmeza na terra, a não ser para poder se elevar em igual proporção aos céus? – pois as plantas mais nobres são valorizadas pelo fruto que trazem ao ar e à luz, longe do solo, e não são tratadas como os alimentos mais rústicos que, mesmo que tenham um ciclo completo de dois anos, só são cultivados até a raiz adquirir sua plena forma, e muitas vezes são podados na parte de cima para a raiz se desenvolver melhor, de modo que muita gente nem conhece sua florada. (p. 28)A título de curiosidade: esse alimento rústico com ciclo de dois anos, cultivado apenas até que a raiz se desenvolva, é a cenoura. De fato, quantas pessoas conhecem a flor da cenoura?
Thoreau mantinha um regime de disciplina física quase espartano: caminhava diariamente dezenas de quilômetros, subindo montes, escalando escarpas, percorrendo florestas com pernas notoriamente atléticas; evitava gorduras, carne, leite, manteiga, pratos elaborados, estimulantes como chá e café, era abstêmio e não fumava. Essa disciplina na busca da realização individual encontra curiosas semelhanças em Nietzsche, outro infatigável e atlético caminhante, vegetariano frugal e avesso ao álcool.
Nietzsche foi grande, dizem alguns até fervoroso e entusiástico, leitor de Emerson, e há quem aponte as raízes do übermensch nietzscheano no plus man emersoniano. Para além da abordagem doutrinária, conceitual ou filosófica dos dois pensadores, talvez pudesse ser interessante comparar alguns aspectos dos programas físico-dietéticos adotados por Thoreau e Nietzsche.
Uma triste ironia desse ideário de espiritualização por meio da disciplina física, no caso de Thoreau - além da morte precoce antes de completar 45 anos de idade -, foi que, desde os 32 anos, não lhe restava um único dente na boca.
imagem: flor de cenoura
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Published on December 12, 2010 18:01
lendo thoreau, IV
.Um aspecto fundamental, no pano de fundo de Walden, é a doutrina vegetariana do grupo transcendentalista com que se relacionava Thoreau. Embora não fosse um transcendentalista estrito, nem um vegetariano "linha dura", Thoreau evitava alimentos de origem animal e preferia uma dieta simples.
Há inúmeras passagens em Walden sobre o tema, em especial no capítulo "Leis superiores". Uma das frases que bem sintetizam sua posição, a meu ver, é a seguinte:
Thoreau mantinha um regime de disciplina física quase espartano: caminhava diariamente dezenas de quilômetros, subindo montes, escalando escarpas, percorrendo florestas com pernas notoriamente atléticas; evitava gorduras, carne, leite, manteiga, pratos elaborados, estimulantes como chá e café, era abstêmio e não fumava. Essa disciplina na busca da realização individual encontra curiosas semelhanças em Nietzsche, outro infatigável e atlético caminhante, vegetariano frugal e avesso ao álcool.
Nietzsche foi grande, dizem alguns até fervoroso e entusiástico, leitor de Emerson, e há quem aponte as raízes do übermensch nietzscheano no plus man emersoniano. Para além da abordagem doutrinária, conceitual ou filosófica dos dois pensadores, talvez pudesse ser interessante comparar alguns aspectos dos programas físico-dietéticos adotados por Thoreau e Nietzsche.
Uma triste ironia desse ideário de espiritualização por meio da disciplina física, no caso de Thoreau - além da morte precoce antes de completar 45 anos de idade -, foi que, desde os 32 anos, não lhe restava um único dente na boca.
imagem: flor de cenoura
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Há inúmeras passagens em Walden sobre o tema, em especial no capítulo "Leis superiores". Uma das frases que bem sintetizam sua posição, a meu ver, é a seguinte:
Acredito que todo homem que algum dia se empenhou seriamente em preservar ao máximo suas faculdades poéticas ou mais elevadas teve uma especial propensão em se abster de alimentos de origem animal. (p. 207)A questão era programática, com vistas à elevação do espírito. Mas não só; não se tratava de alguma espécie de mortificação da carne. Era antes uma forma de harmonização cósmico-universal, obedecendo ao que a própria natureza ensinava (aqui também se fazem visíveis as influências do romantismo inglês e ressonâncias goetheanas):
Por que o homem se enraíza com tanta firmeza na terra, a não ser para poder se elevar em igual proporção aos céus? – pois as plantas mais nobres são valorizadas pelo fruto que trazem ao ar e à luz, longe do solo, e não são tratadas como os alimentos mais rústicos que, mesmo que tenham um ciclo completo de dois anos, só são cultivados até a raiz adquirir sua plena forma, e muitas vezes são podados na parte de cima para a raiz se desenvolver melhor, de modo que muita gente nem conhece sua florada. (p. 28)A título de curiosidade: esse alimento rústico com ciclo de dois anos, cultivado apenas até que a raiz se desenvolva, é a cenoura. De fato, quantas pessoas conhecem a flor da cenoura?
Thoreau mantinha um regime de disciplina física quase espartano: caminhava diariamente dezenas de quilômetros, subindo montes, escalando escarpas, percorrendo florestas com pernas notoriamente atléticas; evitava gorduras, carne, leite, manteiga, pratos elaborados, estimulantes como chá e café, era abstêmio e não fumava. Essa disciplina na busca da realização individual encontra curiosas semelhanças em Nietzsche, outro infatigável e atlético caminhante, vegetariano frugal e avesso ao álcool.
Nietzsche foi grande, dizem alguns até fervoroso e entusiástico, leitor de Emerson, e há quem aponte as raízes do übermensch nietzscheano no plus man emersoniano. Para além da abordagem doutrinária, conceitual ou filosófica dos dois pensadores, talvez pudesse ser interessante comparar alguns aspectos dos programas físico-dietéticos adotados por Thoreau e Nietzsche.
Uma triste ironia desse ideário de espiritualização por meio da disciplina física, no caso de Thoreau - além da morte precoce antes de completar 45 anos de idade -, foi que, desde os 32 anos, não lhe restava um único dente na boca.
imagem: flor de cenoura
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Published on December 12, 2010 18:01
December 11, 2010
lendo walden III
Da cidade desesperada você vai para o campo desesperado, e tem de se consolar com a coragem das martas e dos ratos almiscarados.Primeiro o dever, depois o prazer; antes a obrigação, então a diversão; que satisfação haveria nesses "jogos e entretenimentos da sociedade"? There is no play in them, for this comes after work. Rotina e distração compõem os dois lados da mesma vida do homem moderno: passar a semana na cidade, ir para o campo no final de semana... Nesse contato com a natureza, vislumbres da liberdade que ele já não possui: "tem de se consolar com a coragem das martas e dos ratos almiscarados".
É um bonito exemplo da prosa de Thoreau. Não uma metáfora; antes uma sinédoque: ao contrário da maioria dos homens que levam "uma vida de calado desespero", os seres na natureza não se desesperam, não se resignam. Não renunciam à liberdade.
E por que a marta e o rato almiscarado? Porque esses animaizinhos, quando presos na armadilha do caçador, roem a própria pata para se libertar. Ver essa coragem deles, tal é o consolo que resta ao homem desesperado.
trapped mink tries gnawing off leg to get free of leg-hold trap
Parece-me cabível reiterar aqui: as imagens em Walden são concretas, as referências são muito materiais, às vezes brutais. Bravery: não se trata do esplendor ou "magnificência dos visons", nem de um vago "ânimo dos minks", como nos dão algumas traduções em espanhol e português. Trata-se da encarniçada, valente, corajosa luta pela liberdade.
Thoreau retomará extensamente a imagem da "armadilha", e não apenas como imagem. Para isso se servirá da polissemia do termo: trap, armadilha; traps, bens, pertences. Os bens de um homem: armadilha que o aprisiona. E em sua vida resignada, ao contrário da raposa, da marta, do rato almiscarado, o homem já não tem a coragem de se desprender deles, de se soltar da armadilha e recuperar sua liberdade.
Thoreau, Walden, trad.Denise Bottmann. Porto Alegre: L&PM, 2010, pp. 21-22.
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Published on December 11, 2010 07:03
December 10, 2010
lendo walden II
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Outra característica marcante e deliberada de Walden é o uso do pronome eu.
Devido à questão da declinação verbal, o inglês sempre (ou quase sempre) usa o pronome pessoal acompanhando o verbo. Isso é fácil de entender, pois num presente, p.ex., há apenas duas flexões (com exceção do verbo to be): a que segue a forma do infinitivo e a que recebe o s no final, para a terceira pessoa do singular. Então, sem o pronome, não dá para saber quem está falando: eu, tu, nós, vós ou ele(a)s, pois é tudo igual. Nos outros tempos nem se fala, pois aí todas as formas são iguais, mesmo na terceira do singular.
Como em português declinamos os verbos de acordo com a pessoa, não precisamos pôr "eu" ou "nós" na frente de, p. ex., "quero" ou "queremos". Pela terminação do verbo já sabemos qual é a pessoa (isso em termos gerais). Isso significa que, na tradução, é possível e até desejável eliminar alguns dos pronomes pessoais tão indispensáveis no inglês, mas para nós muitas vezes redundantes. Ninguém aguentaria um texto com cinco "eus" seguidos numa mesma frase...
No inglês, ocorre também uma alta incidência da ordem passiva: em vez de, sei lá, "Entregaram o pacote a ele", usa-se mais o passivo "O pacote foi entregue a ele". Isso, por sua vez, também é um pepino na tradução, pois o decalque dessa estrutura do inglês para o português resulta numa construção meio pesada, e muitas vezes a gente, na hora de traduzir, prefere reconstruir a frase em ordem direta, na voz ativa.
Pois muito que bem. Nosso individualista radical Thoreau, como sempre muito firme e decidido, resolveu que em Walden, até por uma questão de coerência com as próprias ideias, ia narrar suas experiências e apresentar suas reflexões diretamente na primeira pessoa. Isso significa -- o leitor já pode adivinhar o quê: uma enxurrada de I e respectiva parentela.
É o que Thoreau anuncia já de saída, no segundo parágrafo do livro (p. 17):
Resultado: os pronomes da primeira pessoa aparecem quase três mil (3.000!!!) vezes em Walden. Um estudioso (Neufeldt) contou: I, 1.816 vezes; my, 723 vezes; me, 306 vezes; myself, 65 vezes. Detalhe simpático: Thoreau usou tanto o I que às vezes faltava tipos para o gráfico montar a chapa de impressão.
Na tradução, carreguei um pouco mais no uso do "eu" e correlatos do que faria normalmente. Mas devo dizer que não usei os 1.816 eus do original.
[Compare-se: Na tradução, eu carreguei um pouco mais no uso do "eu" e correlatos do que eu faria normalmente. Mas eu devo dizer que eu não usei os 1.816 eus do original.]
Seria um pouco longo justificar a opção, mas, resumindo, foi porque a questão de fundo do I no inglês é a que expus acima: eles precisam do pronome para indicar quem está falando; nós nem tanto. Assim, entendi que a fiel reprodução do número de "eus" não seria necessariamente o principal elemento definidor da construção em português. Neste sentido, creio e espero, a grande diferença que Thoreau quis marcar em relação à prosa mais usual no inglês foi preservada: o discurso direto na primeira pessoa.
Mas, por outro lado, é o tipo de construção que, em nossa língua, chega a ser uma característica estrutural. Mesmo assim, e para ser sincera, não vi razão ou maneira de subvertê-la, para tentar reproduzir às avessas um efeito de diferenciação. Neste aspecto, talvez, o texto de Thoreau em português não vai nos parecer tão frontalmente, tão desafiadoramente personalista como pretendeu e conseguiu ser em inglês.
[veja também lendo walden I , sobre seu "cesto de tessitura delicada" e a week on the concord and marrimack rivers, além de fontes de consulta, links e referência bibliográfica.]
imagem: i-me-mine
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Outra característica marcante e deliberada de Walden é o uso do pronome eu.
Devido à questão da declinação verbal, o inglês sempre (ou quase sempre) usa o pronome pessoal acompanhando o verbo. Isso é fácil de entender, pois num presente, p.ex., há apenas duas flexões (com exceção do verbo to be): a que segue a forma do infinitivo e a que recebe o s no final, para a terceira pessoa do singular. Então, sem o pronome, não dá para saber quem está falando: eu, tu, nós, vós ou ele(a)s, pois é tudo igual. Nos outros tempos nem se fala, pois aí todas as formas são iguais, mesmo na terceira do singular.
Como em português declinamos os verbos de acordo com a pessoa, não precisamos pôr "eu" ou "nós" na frente de, p. ex., "quero" ou "queremos". Pela terminação do verbo já sabemos qual é a pessoa (isso em termos gerais). Isso significa que, na tradução, é possível e até desejável eliminar alguns dos pronomes pessoais tão indispensáveis no inglês, mas para nós muitas vezes redundantes. Ninguém aguentaria um texto com cinco "eus" seguidos numa mesma frase...
No inglês, ocorre também uma alta incidência da ordem passiva: em vez de, sei lá, "Entregaram o pacote a ele", usa-se mais o passivo "O pacote foi entregue a ele". Isso, por sua vez, também é um pepino na tradução, pois o decalque dessa estrutura do inglês para o português resulta numa construção meio pesada, e muitas vezes a gente, na hora de traduzir, prefere reconstruir a frase em ordem direta, na voz ativa.
Pois muito que bem. Nosso individualista radical Thoreau, como sempre muito firme e decidido, resolveu que em Walden, até por uma questão de coerência com as próprias ideias, ia narrar suas experiências e apresentar suas reflexões diretamente na primeira pessoa. Isso significa -- o leitor já pode adivinhar o quê: uma enxurrada de I e respectiva parentela.
É o que Thoreau anuncia já de saída, no segundo parágrafo do livro (p. 17):
Resultado: os pronomes da primeira pessoa aparecem quase três mil (3.000!!!) vezes em Walden. Um estudioso (Neufeldt) contou: I, 1.816 vezes; my, 723 vezes; me, 306 vezes; myself, 65 vezes. Detalhe simpático: Thoreau usou tanto o I que às vezes faltava tipos para o gráfico montar a chapa de impressão.
Na tradução, carreguei um pouco mais no uso do "eu" e correlatos do que faria normalmente. Mas devo dizer que não usei os 1.816 eus do original.
[Compare-se: Na tradução, eu carreguei um pouco mais no uso do "eu" e correlatos do que eu faria normalmente. Mas eu devo dizer que eu não usei os 1.816 eus do original.]
Seria um pouco longo justificar a opção, mas, resumindo, foi porque a questão de fundo do I no inglês é a que expus acima: eles precisam do pronome para indicar quem está falando; nós nem tanto. Assim, entendi que a fiel reprodução do número de "eus" não seria necessariamente o principal elemento definidor da construção em português. Neste sentido, creio e espero, a grande diferença que Thoreau quis marcar em relação à prosa mais usual no inglês foi preservada: o discurso direto na primeira pessoa.
Mas, por outro lado, é o tipo de construção que, em nossa língua, chega a ser uma característica estrutural. Mesmo assim, e para ser sincera, não vi razão ou maneira de subvertê-la, para tentar reproduzir às avessas um efeito de diferenciação. Neste aspecto, talvez, o texto de Thoreau em português não vai nos parecer tão frontalmente, tão desafiadoramente personalista como pretendeu e conseguiu ser em inglês.
[veja também lendo walden I , sobre seu "cesto de tessitura delicada" e a week on the concord and marrimack rivers, além de fontes de consulta, links e referência bibliográfica.]
imagem: i-me-mine
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A maioria dos livros omite o eu ou a primeira pessoa; aqui ele será mantido; em relação ao egocentrismo, esta é a principal diferença. Geralmente não lembramos que, afinal, é sempre a primeira pessoa que está falando. Eu não falaria tanto sobre mim mesmo se existisse alguma outra pessoa que eu conhecesse tão bem.
Published on December 10, 2010 04:00
December 9, 2010
lendo walden I
.Dizem que Thoreau fez três coisas quando morava em Walden: escreveu Uma semana nos rios Concord e Merrimack, foi preso por não ter pagado o imposto do município e escreveu muitas notas que vieram a fazer parte de sua obra mais famosa, Walden.
Já comentei que a leitura de Walden às vezes pode ser opaca, embora todas as pistas estejam lá. É o caso de uma passagem belíssima, onde se mesclam ironias, coloquialismos, metáforas, repetições, jogos de palavras e outras figuras de estilo, misturam-se planos temporais, fazem-se digressões de caráter geral e apenas insinua-se o sentido:
A que "negócios privados" Thoreau queria dar andamento ao se mudar para Walden? E que "cesto de tessitura delicada" seria aquele para o qual não conseguiu compradores?
Por muitos anos Thoreau alimentou a vontade de ir morar sozinho na mata, e vários elementos se compuseram para que decidisse ir para Walden. A oportunidade propícia surgiu quando Emerson comprou uma propriedade no local. O poeta Ellery Channing, conhecendo os anseios do amigo Thoreau, sugeriu que se instalasse lá. Thoreau combinou com Emerson, e assim foi.
Mas uma das ideias que por anos vinham ocupando seu espírito era fazer uma homenagem à memória ao irmão, falecido em idade prematura em 1842, e escrever um livro narrando a excursão que ambos tinham feito em 1839, percorrendo os rios Concord e Merrimack. Morando em Concord, não tinha o vagar e a liberdade mental de que precisava para escrever a obra. Estes eram os "negócios privados" (ou assuntos particulares) a que queria dar andamento "com o mínimo de obstáculos".
Tendo efetivamente escrito A Week on the Concord and Merrimack Rivers durante sua permanência em Walden, o livro foi publicado em 1849. Nos anos em que refletiu sobre a experiência em Walden e reelaborou essas reflexões ao longo de cinco a sete versões diferentes de Walden (que viria a ser publicado em 1854), Thoreau pôde conhecer a fortuna do tributo que fizera ao irmão: um fracasso de vendas - duzentos exemplares vendidos em quatro anos... Diga-se de passagem que apenas em décadas recentes tem-se reconhecido a finíssima lavra de A Week: até então, era tida como obra canhestra e desconjuntada.
Assim se entende qual era o cesto de delicada tessitura que ninguém se interessara em comprar... Notem-se os movimentos temporais: o parágrafo inicial é uma reflexão posterior ao relato apresentado no parágrafo seguinte; dentro do inicial, há também uma sutil circunvolução: o episódio do índio funciona como uma espécie de justificativa a posteriori de sua decisão em adotar uma forma de vida que lhe permitisse tecer seus textos/cestos em paz, sem a premência de vendê-los. Vivendo em Walden, pôde construir uma narrativa com trama de singular e complexo lirismo, que demandaria mais de cem anos para vir a ser devidamente reavaliada.
De passagem, entende-se também o sentido, de outra forma obscuro, do adjetivo triste: "mais do que triste, seria tolo" adiar seus planos de construir o memorial ao irmão, se fosse apenas por questões de fundo pragmático.
Outra característica de Walden, também ilustrada nos trechos acima: as referências, em sua imensa maioria, são concretas. O episódio do índio é autêntico, e Thoreau chegou a registrar em seu diário o nome do advogado (Samuel Hoar, figura muito conhecida na cidade).
(Uma boa fonte de consulta é a bela edição anotada de Walden com introdução e notas de Walter Harding, Houghton Mifflin, 1995. Ilustração: verso de página da primeira edição de A Week, em exemplar pessoal de Thoreau. Citação dos trechos: Walden, tradução minha, LPM, 2010, pp. 31-32. Para o original, ver aqui.)
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Já comentei que a leitura de Walden às vezes pode ser opaca, embora todas as pistas estejam lá. É o caso de uma passagem belíssima, onde se mesclam ironias, coloquialismos, metáforas, repetições, jogos de palavras e outras figuras de estilo, misturam-se planos temporais, fazem-se digressões de caráter geral e apenas insinua-se o sentido:
Não faz muito tempo, um índio andarilho foi vender cestos na casa de um famoso advogado de minha vizinhança. "Querem comprar cestos?", perguntou ele. "Não, não queremos", foi a resposta. "O quê!", exclamou o índio ao sair pelo portão, "querem nos matar de fome?" Tendo visto seus industriosos vizinhos brancos tão bem de vida – que bastava o advogado tecer argumentos e, por algum passe de mágica, logo se seguiam a riqueza e a posição –, ele falou consigo mesmo: vou montar um negócio; vou tecer cestos; é uma coisa que sei fazer. Pensando que, feitos os cestos, estava feita sua parte, agora caberia ao homem branco comprá-los. Ele não tinha descoberto que precisava fazer com que valesse a pena, para o outro, comprá-los, ou pelo menos fazê-lo pensar que valia, ou fazer alguma outra coisa que, para ele, valesse a pena comprar. Eu também tinha tecido uma espécie de cesto de tessitura delicada, mas não tinha feito com que valesse a pena, para ninguém, comprá-los. Mas nem por isso, em meu caso, deixei de pensar que valia a pena tecê-los e, em vez de estudar como fazer com que valesse a pena para os outros comprar meus cestos, preferi estudar como evitar a necessidade de vendê-los. A vida que os homens louvam e consideram bem-sucedida é apenas um tipo de vida. Por que havemos de exagerar só um tipo de vida em detrimento dos demais?
Vendo que meus concidadãos não pareciam dispostos a me oferecer nenhuma sala no tribunal de justiça ou nenhum curato ou sinecura em qualquer outro lugar, mas que eu teria de me arranjar sozinho, passei a me dedicar em caráter mais exclusivo do que nunca às matas, onde eu era mais conhecido. Decidi montar logo meu negócio, em vez de esperar até conseguir o capital habitual, usando os magros recursos que eu já tinha. Meu objetivo ao ir para o lago Walden não era viver barato nem viver caro, e sim dar andamento a alguns negócios privados com o mínimo possível de obstáculos; mais do que triste, parecia-me tolo ter de adiá-los somente por falta de um pouco de siso, um pouco de tino empresarial e comercial.
A que "negócios privados" Thoreau queria dar andamento ao se mudar para Walden? E que "cesto de tessitura delicada" seria aquele para o qual não conseguiu compradores?
Por muitos anos Thoreau alimentou a vontade de ir morar sozinho na mata, e vários elementos se compuseram para que decidisse ir para Walden. A oportunidade propícia surgiu quando Emerson comprou uma propriedade no local. O poeta Ellery Channing, conhecendo os anseios do amigo Thoreau, sugeriu que se instalasse lá. Thoreau combinou com Emerson, e assim foi.
Mas uma das ideias que por anos vinham ocupando seu espírito era fazer uma homenagem à memória ao irmão, falecido em idade prematura em 1842, e escrever um livro narrando a excursão que ambos tinham feito em 1839, percorrendo os rios Concord e Merrimack. Morando em Concord, não tinha o vagar e a liberdade mental de que precisava para escrever a obra. Estes eram os "negócios privados" (ou assuntos particulares) a que queria dar andamento "com o mínimo de obstáculos".
Tendo efetivamente escrito A Week on the Concord and Merrimack Rivers durante sua permanência em Walden, o livro foi publicado em 1849. Nos anos em que refletiu sobre a experiência em Walden e reelaborou essas reflexões ao longo de cinco a sete versões diferentes de Walden (que viria a ser publicado em 1854), Thoreau pôde conhecer a fortuna do tributo que fizera ao irmão: um fracasso de vendas - duzentos exemplares vendidos em quatro anos... Diga-se de passagem que apenas em décadas recentes tem-se reconhecido a finíssima lavra de A Week: até então, era tida como obra canhestra e desconjuntada.
Assim se entende qual era o cesto de delicada tessitura que ninguém se interessara em comprar... Notem-se os movimentos temporais: o parágrafo inicial é uma reflexão posterior ao relato apresentado no parágrafo seguinte; dentro do inicial, há também uma sutil circunvolução: o episódio do índio funciona como uma espécie de justificativa a posteriori de sua decisão em adotar uma forma de vida que lhe permitisse tecer seus textos/cestos em paz, sem a premência de vendê-los. Vivendo em Walden, pôde construir uma narrativa com trama de singular e complexo lirismo, que demandaria mais de cem anos para vir a ser devidamente reavaliada.
De passagem, entende-se também o sentido, de outra forma obscuro, do adjetivo triste: "mais do que triste, seria tolo" adiar seus planos de construir o memorial ao irmão, se fosse apenas por questões de fundo pragmático.
Outra característica de Walden, também ilustrada nos trechos acima: as referências, em sua imensa maioria, são concretas. O episódio do índio é autêntico, e Thoreau chegou a registrar em seu diário o nome do advogado (Samuel Hoar, figura muito conhecida na cidade).
(Uma boa fonte de consulta é a bela edição anotada de Walden com introdução e notas de Walter Harding, Houghton Mifflin, 1995. Ilustração: verso de página da primeira edição de A Week, em exemplar pessoal de Thoreau. Citação dos trechos: Walden, tradução minha, LPM, 2010, pp. 31-32. Para o original, ver aqui.)
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Published on December 09, 2010 17:53
baltasar gracián, a arte da prudência
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o jesuíta baltasar gracián, grande nome do siglo d'oro, eminência do barroco espanhol, conheceu bizarra fortuna nas décadas finais do século XX, quando se transformou num dos líderes da autoajuda e da gestão de negócios. os trezentos aforismos que compõem seu oráculo manual y arte de prudencia (1647) acabaram conhecendo imenso sucesso no brasil, em várias traduções e inúmeras edições.
o texto original se encontra disponível na rede em vários sites, p.ex. aqui: http://fgae.net/portal/images/stories/pdf/GBOmp.pdf
em 1982, a ediouro lança um volume com o título oráculo manual e arte de prudência, em tradução de morus. aparentemente, "morus" seria um pseudônimo de "um guru para executivos em busca de 'qualidade total' ou de técnicas de 'R.H.'", segundo alcir pécora, e sua tradução não seria propriamente satisfatória.
não encontrei a imagem correspondente
em 1992, a editora best-seller (então pertencente ao grupo CLC, de richard civita, que abriga também a editora nova cultural) publica a obra com o título de a arte da sabedoria mundana: um oráculo de bolso, em tradução de ieda moriya.*
em 1996, a editora martins fontes lança a obra com o título a arte da prudência, em tradução de ivone c. benedetti, tida pelo mesmo crítico como a única tradução adequada do texto de gracián.
em 1998, a editora martin claret publica sua primeira edição d'a arte da prudência com tradução em nome do profícuo pietro nassetti, a grande glória do ofício tradutório nacional, sempre disposto a surpreender seus leitores. essa sua pretensa tradução teve inúmeras reedições pela martin claret: 2001, 2002, 2003, 2004, 2005, 2006, 2007, 2008, 2009.
apresentarei num próximo post a análise dessa tradução em nome de pietro nassetti.
por ora, fica aqui meu agradecimento a @ericacsi.
* em 2003, a editora best-seller é adquirida pelo grupo editorial record. a partir de 2004, já no grupo record, a tradução de ieda moriya volta a ser editada, com título mais enxuto: a arte da sabedoria.
em data mais recente, foi publicada também a tradução de davina m. de araújo pela editora sextante, com o título a arte da prudência (2003; 2006).
imagens: wikimedia [original de 1647] e google images [capas das edições brasileiras].
o jesuíta baltasar gracián, grande nome do siglo d'oro, eminência do barroco espanhol, conheceu bizarra fortuna nas décadas finais do século XX, quando se transformou num dos líderes da autoajuda e da gestão de negócios. os trezentos aforismos que compõem seu oráculo manual y arte de prudencia (1647) acabaram conhecendo imenso sucesso no brasil, em várias traduções e inúmeras edições.
o texto original se encontra disponível na rede em vários sites, p.ex. aqui: http://fgae.net/portal/images/stories/pdf/GBOmp.pdf
em 1982, a ediouro lança um volume com o título oráculo manual e arte de prudência, em tradução de morus. aparentemente, "morus" seria um pseudônimo de "um guru para executivos em busca de 'qualidade total' ou de técnicas de 'R.H.'", segundo alcir pécora, e sua tradução não seria propriamente satisfatória.
não encontrei a imagem correspondenteem 1992, a editora best-seller (então pertencente ao grupo CLC, de richard civita, que abriga também a editora nova cultural) publica a obra com o título de a arte da sabedoria mundana: um oráculo de bolso, em tradução de ieda moriya.*
em 1996, a editora martins fontes lança a obra com o título a arte da prudência, em tradução de ivone c. benedetti, tida pelo mesmo crítico como a única tradução adequada do texto de gracián.
em 1998, a editora martin claret publica sua primeira edição d'a arte da prudência com tradução em nome do profícuo pietro nassetti, a grande glória do ofício tradutório nacional, sempre disposto a surpreender seus leitores. essa sua pretensa tradução teve inúmeras reedições pela martin claret: 2001, 2002, 2003, 2004, 2005, 2006, 2007, 2008, 2009.
apresentarei num próximo post a análise dessa tradução em nome de pietro nassetti.
por ora, fica aqui meu agradecimento a @ericacsi.
* em 2003, a editora best-seller é adquirida pelo grupo editorial record. a partir de 2004, já no grupo record, a tradução de ieda moriya volta a ser editada, com título mais enxuto: a arte da sabedoria.
em data mais recente, foi publicada também a tradução de davina m. de araújo pela editora sextante, com o título a arte da prudência (2003; 2006).imagens: wikimedia [original de 1647] e google images [capas das edições brasileiras].
Published on December 09, 2010 04:00
baltazar gracián, a arte da prudência
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o jesuíta baltasar gracián, grande nome do siglo d'oro, eminência do barroco espanhol, conheceu bizarra fortuna nas décadas finais do século XX, quando se transformou num dos líderes da autoajuda e da gestão de negócios. os trezentos aforismos que compõem seu oráculo manual y arte de prudencia (1647) acabaram conhecendo imenso sucesso no brasil, em várias traduções e inúmeras edições.
o texto original se encontra disponível na rede em vários sites, p.ex. aqui: http://fgae.net/portal/images/stories/pdf/GBOmp.pdf
em 1982, a ediouro lança um volume com o título oráculo manual e arte de prudência, em tradução de morus. aparentemente, "morus" seria um pseudônimo de "um guru para executivos em busca de 'qualidade total' ou de técnicas de 'R.H.'", segundo alcir pécora, e sua tradução não seria propriamente satisfatória.
não encontrei a imagem correspondente
em 1992, a editora best-seller (então pertencente ao grupo CLC, de richard civita, que abriga também a editora nova cultural) publica a obra com o título de a arte da sabedoria mundana: um oráculo de bolso, em tradução de ieda moriya.*
em 1996, a editora martins fontes lança a obra com o título a arte da prudência, em tradução de ivone c. benedetti, tida pelo mesmo crítico como a única tradução adequada do texto de gracián.
em 1998, a editora martin claret publica sua primeira edição d'a arte da prudência com tradução em nome do profícuo pietro nassetti, a grande glória do ofício tradutório nacional, sempre disposto a surpreender seus leitores. essa sua pretensa tradução teve inúmeras reedições pela martin claret: 2001, 2002, 2003, 2004, 2005, 2006, 2007, 2008, 2009.
apresentarei num próximo post a análise dessa tradução em nome de pietro nassetti.
por ora, fica aqui meu agradecimento a @ericacsi.
* em 2003, a editora best-seller é adquirida pelo grupo editorial record. a partir de 2004, já no grupo record, a tradução de ieda moriya volta a ser editada, com título mais enxuto: a arte da sabedoria.
em data mais recente, foi publicada também a tradução de davina m. de araújo pela editora sextante, com o título a arte da prudência (2003; 2006).
imagens: wikimedia [original de 1647] e google images [capas das edições brasileiras].
o jesuíta baltasar gracián, grande nome do siglo d'oro, eminência do barroco espanhol, conheceu bizarra fortuna nas décadas finais do século XX, quando se transformou num dos líderes da autoajuda e da gestão de negócios. os trezentos aforismos que compõem seu oráculo manual y arte de prudencia (1647) acabaram conhecendo imenso sucesso no brasil, em várias traduções e inúmeras edições.
o texto original se encontra disponível na rede em vários sites, p.ex. aqui: http://fgae.net/portal/images/stories/pdf/GBOmp.pdf
em 1982, a ediouro lança um volume com o título oráculo manual e arte de prudência, em tradução de morus. aparentemente, "morus" seria um pseudônimo de "um guru para executivos em busca de 'qualidade total' ou de técnicas de 'R.H.'", segundo alcir pécora, e sua tradução não seria propriamente satisfatória.
não encontrei a imagem correspondenteem 1992, a editora best-seller (então pertencente ao grupo CLC, de richard civita, que abriga também a editora nova cultural) publica a obra com o título de a arte da sabedoria mundana: um oráculo de bolso, em tradução de ieda moriya.*
em 1996, a editora martins fontes lança a obra com o título a arte da prudência, em tradução de ivone c. benedetti, tida pelo mesmo crítico como a única tradução adequada do texto de gracián.
em 1998, a editora martin claret publica sua primeira edição d'a arte da prudência com tradução em nome do profícuo pietro nassetti, a grande glória do ofício tradutório nacional, sempre disposto a surpreender seus leitores. essa sua pretensa tradução teve inúmeras reedições pela martin claret: 2001, 2002, 2003, 2004, 2005, 2006, 2007, 2008, 2009.
apresentarei num próximo post a análise dessa tradução em nome de pietro nassetti.
por ora, fica aqui meu agradecimento a @ericacsi.
* em 2003, a editora best-seller é adquirida pelo grupo editorial record. a partir de 2004, já no grupo record, a tradução de ieda moriya volta a ser editada, com título mais enxuto: a arte da sabedoria.
em data mais recente, foi publicada também a tradução de davina m. de araújo pela editora sextante, com o título a arte da prudência (2003; 2006).imagens: wikimedia [original de 1647] e google images [capas das edições brasileiras].
Published on December 09, 2010 04:00
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