Denise Bottmann's Blog, page 116
December 18, 2010
lendo walden, XV
.Uma das ideias a meu ver um tanto equivocadas que cercam o mito de Walden é que Thoreau estaria procurando uma vida isolada.
De maneira nenhuma. Quando morava em Walden, recebia muitas visitas, acolhia hóspedes, promovia reuniões na casa; aceitava excursionistas e visitas guiadas de turmas de escolas; ia diariamente, ou quase diariamente, à cidade; visitava os vizinhos nas áreas próximas; era convidado para dar palestras em Concord; costumava jantar na casa de Emerson ou da própria família (consta que, antes de servir a refeição, a esposa de Emerson tocava um sino que Thoreau ouvia em Walden, avisando-o que a comida estava quase pronta). Apenas durante uma ou duas semanas não teve visitas em Walden, devido à intensidade das neves no auge do inverno (p. 252); mas mesmo nesse período ele não deixou de ir à cidade (p. 254). Thoreau podia ser meio brusco e abespinhado no trato com as pessoas, crítico feroz do convívio social superficial, eivado de formalismos e convencionalismos, mas nunca abriu mão da companhia dos amigos e conhecidos, nem mesmo de qualquer potencial público ouvinte.
Eremita ou anacoreta seria uma das mais impróprias descrições de Thoreau. Embora em "Vizinhos Irracionais" ele descreva uma visita de Channing a Walden, para irem à pesca, criando um diálogo entre o Ermitão e o Poeta (pp. 215-217), o parágrafo inicial de "Visitas" parece dar um retrato mais fiel de sua personalidade:
Por isso Thoreau procede ao arrolamento das "coisas necessárias à vida": alimento, abrigo, roupa e combustível para o aquecimento, sobre as quais discorre entre as páginas 25 e 29. Segue-se uma digressão sobre suas atividades antes de decidir ir para Walden (pp. 29-33), quando, "para chegar logo à parte prática da questão", passa a expor como proveu àqueles quatro "recursos ... indispensáveis".
Começa pela roupa nos aspectos gerais (pp. 33-38), segue para o abrigo também nos aspectos gerais (pp. 38-50), descreve a construção do abrigo em termos específicos, isto é, em Walden (pp. 50-62), então expõe o que fazia para garantir seu pão (pp. 62-71), comentando até surpreendido o pouquíssimo trabalho para obter o alimento necessário para a subsistência (p. 68). Ele registra meticulosamente suas receitas e despesas para demonstrar como era possível viver com pouco e preservar a independência. Há alguns detalhes práticos e até engraçados, que Thoreau menciona apenas de passagem: quem lavava e consertava suas roupas eram a mãe e a irmã, que naturalmente não lhe cobravam nada pelo serviço, e por isso ele não pôde lançar as despesas em sua contabilidade: "tirando lavar e consertar a roupa, que em geral foram serviços feitos fora e as contas ainda não tinham chegado" (p. 67).
Quanto às maneiras concretas de obter roupa e combustível, desconversa:
O longo capítulo inicial é o esforço de demonstrar "na ponta do lápis" como é possível escapar a tais armadilhas: descobri que, trabalhando cerca de seis semanas por ano, podia fazer frente a todas as despesas da vida (p. 75); descobri que a profissão de diarista rural era a mais independente de todas, principalmente porque bastavam apenas trinta ou quarenta dias por ano para sustentar uma pessoa (p. 76). Antes disso já comentara: os rebanhos são os pastores dos homens, pois são muito mais livres (p. 64); os homens se enganam em trabalhar e acumular bens, pois "é uma vida de tolo" (p. 19); os dedos não conseguem colher os frutos delicados da vida, pois ficam deformados pelo excesso de trabalho (p. 20); os luxos e confortos da vida são, na maioria, francos obstáculos à elevação da humanidade (p. 27); os avanços modernos não passam de meios aperfeiçoados para um fim não aperfeiçoado (p. 61); um espírito simples e independente não trabalha sob as ordens de ninguém (p. 65)...
Autonomia sim, isolamento não.
.

De maneira nenhuma. Quando morava em Walden, recebia muitas visitas, acolhia hóspedes, promovia reuniões na casa; aceitava excursionistas e visitas guiadas de turmas de escolas; ia diariamente, ou quase diariamente, à cidade; visitava os vizinhos nas áreas próximas; era convidado para dar palestras em Concord; costumava jantar na casa de Emerson ou da própria família (consta que, antes de servir a refeição, a esposa de Emerson tocava um sino que Thoreau ouvia em Walden, avisando-o que a comida estava quase pronta). Apenas durante uma ou duas semanas não teve visitas em Walden, devido à intensidade das neves no auge do inverno (p. 252); mas mesmo nesse período ele não deixou de ir à cidade (p. 254). Thoreau podia ser meio brusco e abespinhado no trato com as pessoas, crítico feroz do convívio social superficial, eivado de formalismos e convencionalismos, mas nunca abriu mão da companhia dos amigos e conhecidos, nem mesmo de qualquer potencial público ouvinte.
Eremita ou anacoreta seria uma das mais impróprias descrições de Thoreau. Embora em "Vizinhos Irracionais" ele descreva uma visita de Channing a Walden, para irem à pesca, criando um diálogo entre o Ermitão e o Poeta (pp. 215-217), o parágrafo inicial de "Visitas" parece dar um retrato mais fiel de sua personalidade:
Penso que gosto de convívio social tanto quanto a maioria das pessoas, e rapidamente grudo como sanguessuga em qualquer homem de sangue bom que me apareça pela frente. Não sou ermitão por natureza, e poderia muito bem me converter no mais convicto frequentador de bares, se meus assuntos me chamassem a isso. (p. 139)A questão - ou o ponto a ser provado - era a autossuficiência, não o isolamento. Se o parágrafo que abre o livro diz "eu vivia sozinho na mata", o ponto que ele destaca é que morava "numa casa que eu mesmo tinha construído" e "ganhava minha vida apenas com o trabalho de minhas mãos" (p. 17). A autonomia do homem, sua independência passava por ser capaz de prover sozinho a suas necessidades. E tanto mais fácil ser autossuficiente quanto mais simples as necessidades.
Por isso Thoreau procede ao arrolamento das "coisas necessárias à vida": alimento, abrigo, roupa e combustível para o aquecimento, sobre as quais discorre entre as páginas 25 e 29. Segue-se uma digressão sobre suas atividades antes de decidir ir para Walden (pp. 29-33), quando, "para chegar logo à parte prática da questão", passa a expor como proveu àqueles quatro "recursos ... indispensáveis".
Começa pela roupa nos aspectos gerais (pp. 33-38), segue para o abrigo também nos aspectos gerais (pp. 38-50), descreve a construção do abrigo em termos específicos, isto é, em Walden (pp. 50-62), então expõe o que fazia para garantir seu pão (pp. 62-71), comentando até surpreendido o pouquíssimo trabalho para obter o alimento necessário para a subsistência (p. 68). Ele registra meticulosamente suas receitas e despesas para demonstrar como era possível viver com pouco e preservar a independência. Há alguns detalhes práticos e até engraçados, que Thoreau menciona apenas de passagem: quem lavava e consertava suas roupas eram a mãe e a irmã, que naturalmente não lhe cobravam nada pelo serviço, e por isso ele não pôde lançar as despesas em sua contabilidade: "tirando lavar e consertar a roupa, que em geral foram serviços feitos fora e as contas ainda não tinham chegado" (p. 67).
Quanto às maneiras concretas de obter roupa e combustível, desconversa:
Assim, quanto à comida, eu já podia dispensar qualquer troca e comércio, e, já tendo um abrigo, faltava apenas conseguir roupa e combustível. As calças que estou usando agora foram tecidas num lar de agricultores (...) e num país novo combustível não é problema. (p. 71)Em sua crítica à divisão industrial do trabalho e em seu elogio à autossuficiência, a questão é como preservar o máximo de tempo livre. Bens materiais são armadilhas que tolhem a liberdade do homem, roubando-lhe o tempo de uma vida autêntica.
O longo capítulo inicial é o esforço de demonstrar "na ponta do lápis" como é possível escapar a tais armadilhas: descobri que, trabalhando cerca de seis semanas por ano, podia fazer frente a todas as despesas da vida (p. 75); descobri que a profissão de diarista rural era a mais independente de todas, principalmente porque bastavam apenas trinta ou quarenta dias por ano para sustentar uma pessoa (p. 76). Antes disso já comentara: os rebanhos são os pastores dos homens, pois são muito mais livres (p. 64); os homens se enganam em trabalhar e acumular bens, pois "é uma vida de tolo" (p. 19); os dedos não conseguem colher os frutos delicados da vida, pois ficam deformados pelo excesso de trabalho (p. 20); os luxos e confortos da vida são, na maioria, francos obstáculos à elevação da humanidade (p. 27); os avanços modernos não passam de meios aperfeiçoados para um fim não aperfeiçoado (p. 61); um espírito simples e independente não trabalha sob as ordens de ninguém (p. 65)...
Autonomia sim, isolamento não.
.
Published on December 18, 2010 09:31
December 17, 2010
lendo walden, XIV
.
Outra faceta muito interessante em Thoreau era sua atividade como tradutor. Graças à sua formação em literatura e línguas clássicas, ele traduziu Ésquilo, Píndaro, Anacreonte, publicados em 1843 e 1844 em The Dial, o periódico transcendentalista,* além de rascunhos que ficaram inéditos. A título de amostra, temos em Walden algumas passagens em que traduz Varrão e Catão, aliás aproveitando a oportunidade para desancar uma tradução de Catão que circulava na época (p. 90).
*Aqui encontram-se todos os números de The Dial entre 1840 e 1844. Para quem se interessar pelo convívio de Thoreau com os clássicos gregos e latinos, existe um artigo bastante informativo de Ethel Seybold, "Thoreau: The Quest and the Classics", in Harold Bloom (org.), Henry David Thoreau. Nova York: Infobase Publishing, 2007, pp. 13-34.
Com seu enorme interesse pelas filosofias e doutrinas orientais, Thoreau também traduziu vários analectos de Confúcio, por interposição do francês, a partir da tradução de M. J. Pauthier, Confucius et Mencius. Em 1844, The Dial publicou uma tradução da Parábola das Ervas, o quinto capítulo da Sutra do Lótus, um dos textos sagrados centrais do budismo mahayana (a partir da tradução de Eugène Burnouf do sânscrito). Alguns estudiosos dão por certo e outros consideram altamente provável que a tradução para o inglês tenha sido feita por Thoreau, sozinho ou em colaboração com Elizabeth Palmer Peabody.
Detalhe interessante: trata-se da primeira versão em inglês de qualquer passagem das escrituras budistas.
De Anacreonte reproduzo aqui a tradução de Thoreau, que ele incluiu em seu longo artigo sobre a "História Natural de Massachusetts" (The Dial, 1843, I), apresentando o poema como um dos mais memoráveis. Impossível não ver nele a antecipação do pathos que envolverá várias passagens de Walden.
imagem: sutra do lótus
Outra faceta muito interessante em Thoreau era sua atividade como tradutor. Graças à sua formação em literatura e línguas clássicas, ele traduziu Ésquilo, Píndaro, Anacreonte, publicados em 1843 e 1844 em The Dial, o periódico transcendentalista,* além de rascunhos que ficaram inéditos. A título de amostra, temos em Walden algumas passagens em que traduz Varrão e Catão, aliás aproveitando a oportunidade para desancar uma tradução de Catão que circulava na época (p. 90).
*Aqui encontram-se todos os números de The Dial entre 1840 e 1844. Para quem se interessar pelo convívio de Thoreau com os clássicos gregos e latinos, existe um artigo bastante informativo de Ethel Seybold, "Thoreau: The Quest and the Classics", in Harold Bloom (org.), Henry David Thoreau. Nova York: Infobase Publishing, 2007, pp. 13-34.
Com seu enorme interesse pelas filosofias e doutrinas orientais, Thoreau também traduziu vários analectos de Confúcio, por interposição do francês, a partir da tradução de M. J. Pauthier, Confucius et Mencius. Em 1844, The Dial publicou uma tradução da Parábola das Ervas, o quinto capítulo da Sutra do Lótus, um dos textos sagrados centrais do budismo mahayana (a partir da tradução de Eugène Burnouf do sânscrito). Alguns estudiosos dão por certo e outros consideram altamente provável que a tradução para o inglês tenha sido feita por Thoreau, sozinho ou em colaboração com Elizabeth Palmer Peabody.
Detalhe interessante: trata-se da primeira versão em inglês de qualquer passagem das escrituras budistas.
De Anacreonte reproduzo aqui a tradução de Thoreau, que ele incluiu em seu longo artigo sobre a "História Natural de Massachusetts" (The Dial, 1843, I), apresentando o poema como um dos mais memoráveis. Impossível não ver nele a antecipação do pathos que envolverá várias passagens de Walden.
Return of the SpringNo mesmo artigo há outra ode de Anacreonte, "A cigarra", também traduzida e vivamente recomendada por Thoreau. Ficaria um pouco longo reproduzi-la aqui, mas não resisto a transcrever os primeiros quatro versos:
Behold, how spring appearing, The Graces send forth roses; Behold, how the wave of the sea Is made smooth by the calm; Behold, how the duck dives; Behold, how the crane travels; And Titan shines constantly bright. The shadows of the clouds are moving; The works of man shine; The earth puts forth fruits; The fruit of the olive puts forth. The cup of Bacchus is crowned, Along the leaves, along the branches, The fruit, bending them down, flourishes.
We pronounce thee happy, Cicada, For on the tops of the trees, Drinking a little dew, Like any king thou singest.Entende-se por que Thoreau, ao arrepio das interpretações usuais na história da literatura, considerava Anacreonte não um poeta sensualista menor, e sim um poeta da elevação.
imagem: sutra do lótus
Published on December 17, 2010 18:14
lendo walden, XIII
.Em Walden são infindáveis as menções às várias ervas, líquens, fungos, arbustos, árvores, às vezes com descrição detalhada de suas folhas, flores e frutos. Uma parte da coleção botânica de Thoreau, que começou a montá-la de maneira sistemática a partir de 1850, hoje se encontra no
Herbário da Universidade de Harvard
(onde havia cursado história natural e botânica), devidamente classificada. Vale a pena uma visita ao site.
Aqui o Acer spicatum, ou bordo da montanha, nativo da região nordeste dos Estados Unidos, que Thoreau colheu nas matas do Maine em 1853.
imagem: the henry david thoreau herbarium
.
Aqui o Acer spicatum, ou bordo da montanha, nativo da região nordeste dos Estados Unidos, que Thoreau colheu nas matas do Maine em 1853.
imagem: the henry david thoreau herbarium
.
Published on December 17, 2010 12:41
lendo walden, XII
.Walden é recheado de citações entremescladas no texto. Além delas, há versos e poemas em destaque, poucos com indicação da autoria. Seu amigo Ellery Channing e, depois, alguns estudiosos identificaram a fonte e mesmo as edições usadas por Thoreau.
São eles:
p. 19, Ovídio, Metamorfoses
p. 44, George Chapman, The tragedy of Caesar and Pompey
p. 51, o próprio Thoreau
p. 71, anônimo da Nova Inglaterra
p. 85, Thomas Carew, Coelum Britannicum
p. 88, William Cowper, Verses supposed to be written by Alexander Selkirk
p. 93, anônimo, musicado em 1611 por Robert Jones, The Muses Gardin of Delights
p. 116, Ellery Channing, "Walden Spring"
p. 122, Milton, Paradise Lost
p. 123, Thoreau
p. 132, Patrick MacGregor (Ossian), "Croma"
p. 141, Edmund Spenser, The Faerie Queene
p. 143, Homero, Ilíada
p. 150, Elizur Wright, "The Fugitive Slave to the Christian"
p. 151, Thoreau
p. 161, Francis Quarles, "The Shepherd's Oracle"
p. 168, Tibulo, Elegias de Tibulo
p. 187, Thoreau
p. 196, Ellery Channing, "Baker Farm"
pp. 196-197, idem
pp. 200-201, idem
p. 205, Geoffrey Chaucer, Canterbury Tales
p. 212, John Donne, "To Sir Edward Herbert at Iulyers"
p. 241, Thoreau
p. 243, Ellen Hooper, "The Wood-Fire"
p. 256, Thomas Storer, "Wolseius Triumphans"
p. 273, Milton, Paradise Lost
p. 297, Ovídio, Metamorfoses
pp. 298-299, idem
pp. 302-303, William Habington, "To My Honored Friend Sir Ed. P. Knight"
p. 304, Claudiano, "O velho de Verona"
Thoreau se formou em Harvard. Não seguiu alguma das carreiras que se esperariam de um Harvard man, e preferiu se tornar "o homem dos mil instrumentos", como diz à p. 66 de Walden. Seu principal ganha-pão, no futuro, viria a ser o trabalho de topógrafo. Mas seus conhecimentos de literatura clássica e moderna, o domínio do grego e do latim que obteve na universidade nunca vieram a lhe faltar.
Fontes: Walden, edição anotada por Walter Harding, e The Thoreau Reader
.
São eles:
p. 19, Ovídio, Metamorfoses
p. 44, George Chapman, The tragedy of Caesar and Pompey
p. 51, o próprio Thoreau
p. 71, anônimo da Nova Inglaterra
p. 85, Thomas Carew, Coelum Britannicum
p. 88, William Cowper, Verses supposed to be written by Alexander Selkirk
p. 93, anônimo, musicado em 1611 por Robert Jones, The Muses Gardin of Delights
p. 116, Ellery Channing, "Walden Spring"
p. 122, Milton, Paradise Lost
p. 123, Thoreau
p. 132, Patrick MacGregor (Ossian), "Croma"
p. 141, Edmund Spenser, The Faerie Queene
p. 143, Homero, Ilíada
p. 150, Elizur Wright, "The Fugitive Slave to the Christian"
p. 151, Thoreau
p. 161, Francis Quarles, "The Shepherd's Oracle"
p. 168, Tibulo, Elegias de Tibulo
p. 187, Thoreau
p. 196, Ellery Channing, "Baker Farm"
pp. 196-197, idem
pp. 200-201, idem
p. 205, Geoffrey Chaucer, Canterbury Tales
p. 212, John Donne, "To Sir Edward Herbert at Iulyers"
p. 241, Thoreau
p. 243, Ellen Hooper, "The Wood-Fire"
p. 256, Thomas Storer, "Wolseius Triumphans"
p. 273, Milton, Paradise Lost
p. 297, Ovídio, Metamorfoses
pp. 298-299, idem
pp. 302-303, William Habington, "To My Honored Friend Sir Ed. P. Knight"
p. 304, Claudiano, "O velho de Verona"
Thoreau se formou em Harvard. Não seguiu alguma das carreiras que se esperariam de um Harvard man, e preferiu se tornar "o homem dos mil instrumentos", como diz à p. 66 de Walden. Seu principal ganha-pão, no futuro, viria a ser o trabalho de topógrafo. Mas seus conhecimentos de literatura clássica e moderna, o domínio do grego e do latim que obteve na universidade nunca vieram a lhe faltar.
Fontes: Walden, edição anotada por Walter Harding, e The Thoreau Reader
.
Published on December 17, 2010 07:50
December 16, 2010
lendo walden, XI
.Nas páginas finais de Walden, Thoreau investe contra o que lhe parecia ser uma futilidade, viajar:
Sobre essa frase encantadoramente inesperada, fecho de ouro de sua peroração: Harding informa tratar-se de referência ao livro de Charles Pickering, The Races of Man, publicado em Londres em 1851 e que Thoreau lera em 1853, conforme anotou em seu diário. Pickering narrava sua viagem ao redor do mundo, e falava dos felinos que vira na ilha de Zanzibar (costa da Tanzânia).
imagem: cat in zanzibar
.
Qual era o significado daquela Expedição de Exploração dos Mares do Sul, com toda a sua pompa e ostentação, senão um reconhecimento indireto do fato de que existem oceanos e continentes ainda inexplorados no mundo moral, onde cada homem é um istmo ou um braço de mar, mas que é mais fácil singrar milhares e milhares de quilômetros por entre o frio, as tempestades e os canibais, num navio do governo, com quinhentos homens e rapazes para auxiliar um único indivíduo, do que explorar o mar privado, o Oceano Atlântico e Pacífico de apenas um ser?
Que errem e escrutem os distantes australianos.Eu tenho mais de Deus, eles mais da estrada.
Não vale a pena dar a volta ao mundo para contar os gatos em Zanzibar. (pp. 303-304)
Sobre essa frase encantadoramente inesperada, fecho de ouro de sua peroração: Harding informa tratar-se de referência ao livro de Charles Pickering, The Races of Man, publicado em Londres em 1851 e que Thoreau lera em 1853, conforme anotou em seu diário. Pickering narrava sua viagem ao redor do mundo, e falava dos felinos que vira na ilha de Zanzibar (costa da Tanzânia).
imagem: cat in zanzibar
.
Published on December 16, 2010 16:13
lendo walden, X
.Finalmente, o terceiro aspecto mais visível na estruturação
de Walden é a flagrante desproporção do primeiro capítulo, "Economia", dentro do corpo da obra.
"Economia" corresponde, sozinho, a quase 1/4 de Walden: cerca de 70 páginas num total de 300. As outras 230 páginas se dividem entre os demais dezessete capítulos + a conclusão.
Essa desproporção do capítulo "Economia", quando comparado ao restante do texto, parece imprimir um certo desequilíbrio ao conjunto do livro. Como esse jogo interno das partes é um dos principais aspectos que qualquer autor enfrenta ao compor sua obra, naturalmente a conclusão a que devemos chegar é que essa desproporção foi um recurso deliberado de Thoreau, e que o desequilíbrio resultante para a dinâmica geral da obra seria apenas aparente.
Sabe-se que "Economia" foi escrito como texto independente, que serviria de introdução a Walden propriamente dito, trazendo inclusive numeração própria das páginas. Por alguma razão, Thoreau decidiu que o texto de introdução passaria a capítulo de abertura, e o livro traria à guisa de introdução apenas a epígrafe, já citada, do alegre chantecler. E assim foi.
Esse fato até explica a desproporção resultante entre "Economia" e os demais capítulos. Mas não explica por que Thoreau teria optado por introduzir esse desequilíbrio entre as partes. Quanto a isso, não me atrevo a aventar nenhuma hipótese, pois, não tendo domínio suficiente da vida e obra de Thoreau, seria como tentar arrombar portas que certamente já estão abertas.
Em todo caso, eu diria duas coisas: é muito interessante ler Walden a partir do segundo capítulo, "Onde e para que vivi", como se fosse ele o começo do livro. Muda a visão, muda o quadro geral da coisa. É uma experiência muito ilustrativa, e serve como contraponto para tentarmos entender por que Thoreau julgou que não bastaria, por que considerou que a obra só se faria completa se se iniciasse justamente pelo extenso texto, muitas vezes tido como árido e fastidioso, da "Economia".
A segunda coisa é a seguinte: pretendo em breve fazer uma modesta desmontagem dos núcleos temáticos que compõem esse primeiro longo capítulo. Mas, até lá, parece-me que um ponto é certo. É em "Economia" que Thoreau ilustra, expõe, alerta e adverte o principal elemento de seu, digamos assim, individualismo existencial: as experiências de cada indivíduo são irredutíveis e intransferíveis, cabendo a cada um seguir o rumo da própria existência:
Neste sentido, a vida em Walden era sua experiência pessoal e a mais ninguém se aplicaria. O que ele poderia dizer e transmitir dessa experiência, o que dela poderia ser partilhado, não precisaria ser vivido em Walden. Estava apresentado em Walden.
Num aparte secundário, isso reforça e corrobora por que sua decisão - que comentei em post anterior - de eliminar o subtítulo or, Life in the Woods: a despeito de suas advertências, muitos insistiam em tomá-lo ao pé da letra e seguir seus passos, indo também viver algum tempo nas matas.
imagem: chart pie, wiki
.
de Walden é a flagrante desproporção do primeiro capítulo, "Economia", dentro do corpo da obra.
"Economia" corresponde, sozinho, a quase 1/4 de Walden: cerca de 70 páginas num total de 300. As outras 230 páginas se dividem entre os demais dezessete capítulos + a conclusão.
Essa desproporção do capítulo "Economia", quando comparado ao restante do texto, parece imprimir um certo desequilíbrio ao conjunto do livro. Como esse jogo interno das partes é um dos principais aspectos que qualquer autor enfrenta ao compor sua obra, naturalmente a conclusão a que devemos chegar é que essa desproporção foi um recurso deliberado de Thoreau, e que o desequilíbrio resultante para a dinâmica geral da obra seria apenas aparente.
Sabe-se que "Economia" foi escrito como texto independente, que serviria de introdução a Walden propriamente dito, trazendo inclusive numeração própria das páginas. Por alguma razão, Thoreau decidiu que o texto de introdução passaria a capítulo de abertura, e o livro traria à guisa de introdução apenas a epígrafe, já citada, do alegre chantecler. E assim foi.
Esse fato até explica a desproporção resultante entre "Economia" e os demais capítulos. Mas não explica por que Thoreau teria optado por introduzir esse desequilíbrio entre as partes. Quanto a isso, não me atrevo a aventar nenhuma hipótese, pois, não tendo domínio suficiente da vida e obra de Thoreau, seria como tentar arrombar portas que certamente já estão abertas.
Em todo caso, eu diria duas coisas: é muito interessante ler Walden a partir do segundo capítulo, "Onde e para que vivi", como se fosse ele o começo do livro. Muda a visão, muda o quadro geral da coisa. É uma experiência muito ilustrativa, e serve como contraponto para tentarmos entender por que Thoreau julgou que não bastaria, por que considerou que a obra só se faria completa se se iniciasse justamente pelo extenso texto, muitas vezes tido como árido e fastidioso, da "Economia".
A segunda coisa é a seguinte: pretendo em breve fazer uma modesta desmontagem dos núcleos temáticos que compõem esse primeiro longo capítulo. Mas, até lá, parece-me que um ponto é certo. É em "Economia" que Thoreau ilustra, expõe, alerta e adverte o principal elemento de seu, digamos assim, individualismo existencial: as experiências de cada indivíduo são irredutíveis e intransferíveis, cabendo a cada um seguir o rumo da própria existência:
Não gostaria que ninguém adotasse meu modo de vida em hipótese alguma; pois, além de poder encontrar algum outro antes que ele tivesse aprendido direito este de agora, desejo que possa existir o maior número possível de pessoas diferentes no mundo; mas gostaria que cada uma delas se dedicasse a encontrar e seguir seu próprio caminho, e não o do pai, da mãe ou do vizinho. O jovem pode construir, plantar ou navegar, basta que não seja impedido de fazer o que ele me diz que gostaria de fazer. Se somos sábios é apenas graças a um ponto matemático, como o marinheiro ou o escravo fugido que mantém à vista a estrela polar; mas é um guia suficiente para toda nossa vida. Podemos não chegar a nosso porto num período calculável, mas manteremos o curso certo. (p. 77, itálico no original)De passagem: "o escravo fugido" - Thoreau, certa feita, acolheu em Walden um escravo fugitivo, e o aconselhou a seguir para o norte tomando como referência a estrela polar (como, aliás, já costumavam fazer); "o marinheiro" - Thoreau irá utilizar várias metáforas náuticas, sobretudo a navegação por cálculo (dead reckoning).
Neste sentido, a vida em Walden era sua experiência pessoal e a mais ninguém se aplicaria. O que ele poderia dizer e transmitir dessa experiência, o que dela poderia ser partilhado, não precisaria ser vivido em Walden. Estava apresentado em Walden.
Num aparte secundário, isso reforça e corrobora por que sua decisão - que comentei em post anterior - de eliminar o subtítulo or, Life in the Woods: a despeito de suas advertências, muitos insistiam em tomá-lo ao pé da letra e seguir seus passos, indo também viver algum tempo nas matas.
imagem: chart pie, wiki
.
Published on December 16, 2010 07:39
December 15, 2010
lendo walden, IX
.
O segundo aspecto mais visível na estruturação de Walden é o ordenamento temporal dessa distribuição temática, que comentei no post anterior. O texto cobre o ciclo de um ano, com suas quatro estações. Começa nos meados do verão, avança para o outono, detém-se bastante no inverno e termina nos meados da primavera. Longe de abarcar os 26 meses de permanência de Thoreau em Walden, Walden mal chega a onze meses: vai do começo de julho ao começo de maio do ano seguinte.
Como diz Thoreau no final do último capítulo, "Primavera", esticando um pouco as datas e apontando a superfluidade em se prolongar: "Assim se completou o primeiro ano de minha vida na mata; e o segundo ano foi muito semelhante a ele". (p. 301)
Este arco temporal que se estende de "Onde e para que vivi" até a "Primavera", deixando como abas laterais o capítulo de abertura, "Economia", e a conclusão, é um milagre de flexibilidade estilística. A meu ver, é o aspecto mais importante da estruturação da obra, tanto por encapsular quase invisivelmente os aspectos mais simbólicos e metafísicos, quanto por conseguir criar uma aparência de naturalidade empírica, palpável, realmente impressionante do começo ao fim.
Deve ter sido bastante complicado, em termos literários, conseguir compatibilizar o ordenamento temático dos capítulos com as linhas de força temporais, sem que em momento algum estas viessem a travar a apresentação dos mais variados assuntos, criteriosamente distribuídos entre os capítulos. Considero magistral, um trabalho de gênio. Não o uso do ciclo anual em si como forma de condensação da experiência - que até pode ser interessante, mas é um tanto trivial. O que me parece de gênio é a tremenda plasticidade que Thoreau conseguiu imprimir nessa interação temática/ temporalidade - ainda mais se considerarmos como é fácil cair na diluição dramática ou expressiva quando se usa esse tipo de enquadramento temporal como mero recurso de síntese.
O que provavelmente contribui para essa maravilha de realização literária deve ser a implícita noção de circularidade do ciclo das estações. Talvez tenha sido com essa cumplicidade do senso comum que Thoreau contou, ao escolher o ciclo do ano para ser o molde de Walden. Mas essa noção de circularidade, também ela pertencente ao common mint que Thoreau mencionava a propósito da linguagem - aqui transposto para aquele armazém de conceitos do senso comum de seus semelhantes -, seria, para as finalidades dele, sem dúvida necessária, mas apenas implícita, apenas, repito, como um piscar de olhos de cumplicidade: "sei do que você está falando, faz parte de minha experiência".
Pois, no fundo, no fundo, as coisas não batem, o ciclo não fecha, há uma abertura, que não consigo localizar bem onde, mas é por onde essa circularidade é necessariamente superada. Não é a noção de uma circularidade em espiral (embora esse conceito também apareça no texto), nem de uma porosidade, e muito menos de um fraturamento, este não, em momento algum. Embora seja apenas uma intuição, creio que seria este o elemento que, para Thoreau, daria sentido a Walden, para além da piscadela do common mint. Sei que esse elemento guarda algum tipo de relação com o substrato temporal em sentido amplo, conta com os préstimos do significado simbólico dos ciclos naturais, não tem nada de místico ou religioso como eternidade ou imortalidade, e que provavelmente é o que dá sustentação - ou elevação, podendo talvez operar, digamos assim, como fator antigravitacional - ao edifício de Walden.
Se conseguir localizá-lo, virei correndo avisar.
imagem: four seasons
.
O segundo aspecto mais visível na estruturação de Walden é o ordenamento temporal dessa distribuição temática, que comentei no post anterior. O texto cobre o ciclo de um ano, com suas quatro estações. Começa nos meados do verão, avança para o outono, detém-se bastante no inverno e termina nos meados da primavera. Longe de abarcar os 26 meses de permanência de Thoreau em Walden, Walden mal chega a onze meses: vai do começo de julho ao começo de maio do ano seguinte.
Como diz Thoreau no final do último capítulo, "Primavera", esticando um pouco as datas e apontando a superfluidade em se prolongar: "Assim se completou o primeiro ano de minha vida na mata; e o segundo ano foi muito semelhante a ele". (p. 301)
Este arco temporal que se estende de "Onde e para que vivi" até a "Primavera", deixando como abas laterais o capítulo de abertura, "Economia", e a conclusão, é um milagre de flexibilidade estilística. A meu ver, é o aspecto mais importante da estruturação da obra, tanto por encapsular quase invisivelmente os aspectos mais simbólicos e metafísicos, quanto por conseguir criar uma aparência de naturalidade empírica, palpável, realmente impressionante do começo ao fim.
Deve ter sido bastante complicado, em termos literários, conseguir compatibilizar o ordenamento temático dos capítulos com as linhas de força temporais, sem que em momento algum estas viessem a travar a apresentação dos mais variados assuntos, criteriosamente distribuídos entre os capítulos. Considero magistral, um trabalho de gênio. Não o uso do ciclo anual em si como forma de condensação da experiência - que até pode ser interessante, mas é um tanto trivial. O que me parece de gênio é a tremenda plasticidade que Thoreau conseguiu imprimir nessa interação temática/ temporalidade - ainda mais se considerarmos como é fácil cair na diluição dramática ou expressiva quando se usa esse tipo de enquadramento temporal como mero recurso de síntese.
O que provavelmente contribui para essa maravilha de realização literária deve ser a implícita noção de circularidade do ciclo das estações. Talvez tenha sido com essa cumplicidade do senso comum que Thoreau contou, ao escolher o ciclo do ano para ser o molde de Walden. Mas essa noção de circularidade, também ela pertencente ao common mint que Thoreau mencionava a propósito da linguagem - aqui transposto para aquele armazém de conceitos do senso comum de seus semelhantes -, seria, para as finalidades dele, sem dúvida necessária, mas apenas implícita, apenas, repito, como um piscar de olhos de cumplicidade: "sei do que você está falando, faz parte de minha experiência".
Pois, no fundo, no fundo, as coisas não batem, o ciclo não fecha, há uma abertura, que não consigo localizar bem onde, mas é por onde essa circularidade é necessariamente superada. Não é a noção de uma circularidade em espiral (embora esse conceito também apareça no texto), nem de uma porosidade, e muito menos de um fraturamento, este não, em momento algum. Embora seja apenas uma intuição, creio que seria este o elemento que, para Thoreau, daria sentido a Walden, para além da piscadela do common mint. Sei que esse elemento guarda algum tipo de relação com o substrato temporal em sentido amplo, conta com os préstimos do significado simbólico dos ciclos naturais, não tem nada de místico ou religioso como eternidade ou imortalidade, e que provavelmente é o que dá sustentação - ou elevação, podendo talvez operar, digamos assim, como fator antigravitacional - ao edifício de Walden.
Se conseguir localizá-lo, virei correndo avisar.
imagem: four seasons
.
Published on December 15, 2010 19:34
lendo walden, VIII
.Walden seria um registro autobiográfico? Um diário, um relato dos 26 meses que Thoreau passou junto ao lago? Em suma, Walden seria a vida em Walden? Walden foi escrito em Walden?
A resposta a todas essas perguntas é uma só:
não propriamente, nem essencialmente.
Walden é antes a apresentação de um programa existencial aplicado e ilustrado na prática. Foi redigido depois que Thoreau saiu de Walden, embora utilizando muitas anotações feitas no local. Além das notas redigidas em Walden e reflexões anteriores e posteriores àquele período, Thoreau incorporou a Walden o conteúdo de várias palestras que proferiu em Concord. Esse recurso de incluir as palestras explica a mudança de tom em várias passagens, em que o leitor percebe claramente que ele está se dirigindo a uma plateia, sobretudo a jovens ouvintes. Muda o registro, muda o tratamento, muda o humor, mudam as imagens.
Walden tem dezessete capítulos e uma conclusão. Diga-se de passagem que a edição da L&PM presenteou seus leitores com a inclusão, à guisa de apêndice, do necrológio de Emerson a Thoreau (pp. 315-335). Voltando a Walden, sua estruturação é um pouco complicada e, a meu ver, apresenta três aspectos mais evidentes.
O primeiro deles é a organização dos capítulos segundo critérios basicamente temáticos: leitura, sons, visitas, os lagos, vizinhos irracionais, o lago no inverno etc. Nessa divisão por assuntos, o tema central se desdobra em diversos subtemas correlatos. Assim, por exemplo nas dez páginas do breve capítulo "Leitura" (pp. 103-112), temos a crítica à degeneração dos tempos heroicos, a distinção entre oratória e leitura, entre linguagem oral e linguagem escrita, a crítica ao ensino "comum" (isto é, a escola fundamental) e a defesa do ensino "incomum", a ridicularização do puerilismo cultural e das versões simplificadas da Bíblia, menções às seitas dos crentes renascidos na fé, a Zoroastro, a Platão, a projetos universitários para a Nova Inglaterra, intercalados com trechos comicíssimos - por exemplo aqui, falando dos leitores onívoros, com referências também às aventuras do Barão de Münchhausen:
imagem: graphics, google images
.
A resposta a todas essas perguntas é uma só:
não propriamente, nem essencialmente.
Walden é antes a apresentação de um programa existencial aplicado e ilustrado na prática. Foi redigido depois que Thoreau saiu de Walden, embora utilizando muitas anotações feitas no local. Além das notas redigidas em Walden e reflexões anteriores e posteriores àquele período, Thoreau incorporou a Walden o conteúdo de várias palestras que proferiu em Concord. Esse recurso de incluir as palestras explica a mudança de tom em várias passagens, em que o leitor percebe claramente que ele está se dirigindo a uma plateia, sobretudo a jovens ouvintes. Muda o registro, muda o tratamento, muda o humor, mudam as imagens.
Walden tem dezessete capítulos e uma conclusão. Diga-se de passagem que a edição da L&PM presenteou seus leitores com a inclusão, à guisa de apêndice, do necrológio de Emerson a Thoreau (pp. 315-335). Voltando a Walden, sua estruturação é um pouco complicada e, a meu ver, apresenta três aspectos mais evidentes.
O primeiro deles é a organização dos capítulos segundo critérios basicamente temáticos: leitura, sons, visitas, os lagos, vizinhos irracionais, o lago no inverno etc. Nessa divisão por assuntos, o tema central se desdobra em diversos subtemas correlatos. Assim, por exemplo nas dez páginas do breve capítulo "Leitura" (pp. 103-112), temos a crítica à degeneração dos tempos heroicos, a distinção entre oratória e leitura, entre linguagem oral e linguagem escrita, a crítica ao ensino "comum" (isto é, a escola fundamental) e a defesa do ensino "incomum", a ridicularização do puerilismo cultural e das versões simplificadas da Bíblia, menções às seitas dos crentes renascidos na fé, a Zoroastro, a Platão, a projetos universitários para a Nova Inglaterra, intercalados com trechos comicíssimos - por exemplo aqui, falando dos leitores onívoros, com referências também às aventuras do Barão de Münchhausen:
Existem aqueles que, como cormorões e avestruzes, conseguem digerir todo esse tipo de coisa, mesmo depois da mais lauta refeição com carnes e legumes, pois não admitem desperdiçar coisa alguma. Se outras são as máquinas que fornecem tais acepipes, estes são as máquinas de leitura. Leem a nona-milésima história de Zebulão e Sefrônia, e o quanto os dois se amaram como nunca ninguém tinha amado antes, e como jamais um verdadeiro amor correu tão bem – ou, pelo menos, correu, tropeçou, levantou e continuou!; e como um pobre desgraçado que nunca tinha subido nem num campanário subiu na agulha de uma torre, e então, tendo desnecessariamente posto o sujeito ali, o romancista todo feliz bate o sino para chamar todo mundo, que se reúne e diz: Oh, que coisa! Como ele conseguiu descer dali! Quanto a mim, penso que melhor fariam se metamorfoseassem todos esses aspirantes a heróis do romance universal em cataventos humanos, tal como antigamente colocavam os heróis entre as constelações, e lá os deixassem girando até se enferrujar, sem descer para virem incomodar as pessoas de bem com suas travessuras. (p. 108)E tudo permeado com deliciosos trocadilhos, como, pouco adiante, ao ridicularizar os jornais de Boston e um periódico metodista da época: sucking the pap of "neutral family" papers, or browsing "Olive Branches", que infelizmente tive de desdobrar como "tomando a papinha insípida dos jornais 'de família', manducando os brotos dos Ramos de Oliveira e folheando as páginas dos Olive Branches"...
imagem: graphics, google images
.
Published on December 15, 2010 15:23
December 14, 2010
lendo walden, VII
.
Durante a tradução, passei uns bons dias rastreando a infinidade de plantas citadas em Walden, localizando os nomes latinos e então usando-os como ponte para encontrar os correspondentes em português. Por exemplo, para a frase acima, muito bonita também pela ciranda das cores, eu tinha montado a listinha:
mirtilo vermelho: red huckleberry, Vaccinium parvifolium
ameixeira brava: sand cherry, Prunus prunilla
lódão bastardo americano: nettle tree (hackberry), Celtis occidentalis
pinheiro vermelho: red pine, Pinus resinosa
freixo negro: black ash, Fraxinus nigra
uva branca: white grape, Vitis labrusca
violeta amarela: yellow violet, Viola pubescens
Hoje, com grande alegria, descobri um site fantástico, que não conhecia antes e teria facilitado muito esse trabalho quase insano. Chama-se Botanical Index to the Journal of Henry David Thoreau , um levantamento maravilhoso de Ray Angelo.
Dei uma conferida rápida neste exemplo acima, e apareceu uma discrepância: Ray Angelo dá o red huckleberry (que tomei como o Vaccinium parvifolium ) como Gaylussacia baccata , a qual em minhas pesquisas aparece como o black huckleberry. Quando tiver ocasião, vou dar uma boa geral nos nomes que usei, checando com o índice botânico de Angelo, e corrigir eventuais erros que eu possa ter cometido.
Por ora, nessa amostra, sinto até uma pontinha de orgulho que os termos em português estejam bastante exatos. Aliás, um episódio engraçado: um dos revisores, talvez um pouco desatento, queria trocar o frondoso lódão americano (nettle tree, da família dos olmeiros) por uma modesta urtiga (nettle).
A cena até ficaria simpática:
Thoreau regando anualmente um pé de urtiga.
.
Eu regava o mirtilo vermelho, a ameixeira brava e o lódão bastardo americano, o pinheiro vermelho e o freixo negro, a uva branca e a violeta amarela, que do contrário mirrariam na época da seca. (p. 31)Thoreau era um grande botanista: dedicado, atento, sistemático. Coletou mais de novecentos espécimes e classificou cerca de trezentos. Por muitos anos cuidou de várias espécies vegetais raras na região de Concord.
Durante a tradução, passei uns bons dias rastreando a infinidade de plantas citadas em Walden, localizando os nomes latinos e então usando-os como ponte para encontrar os correspondentes em português. Por exemplo, para a frase acima, muito bonita também pela ciranda das cores, eu tinha montado a listinha:
mirtilo vermelho: red huckleberry, Vaccinium parvifolium
ameixeira brava: sand cherry, Prunus prunilla
lódão bastardo americano: nettle tree (hackberry), Celtis occidentalis
pinheiro vermelho: red pine, Pinus resinosa
freixo negro: black ash, Fraxinus nigra
uva branca: white grape, Vitis labrusca
violeta amarela: yellow violet, Viola pubescens
Hoje, com grande alegria, descobri um site fantástico, que não conhecia antes e teria facilitado muito esse trabalho quase insano. Chama-se Botanical Index to the Journal of Henry David Thoreau , um levantamento maravilhoso de Ray Angelo.
Dei uma conferida rápida neste exemplo acima, e apareceu uma discrepância: Ray Angelo dá o red huckleberry (que tomei como o Vaccinium parvifolium ) como Gaylussacia baccata , a qual em minhas pesquisas aparece como o black huckleberry. Quando tiver ocasião, vou dar uma boa geral nos nomes que usei, checando com o índice botânico de Angelo, e corrigir eventuais erros que eu possa ter cometido.
Por ora, nessa amostra, sinto até uma pontinha de orgulho que os termos em português estejam bastante exatos. Aliás, um episódio engraçado: um dos revisores, talvez um pouco desatento, queria trocar o frondoso lódão americano (nettle tree, da família dos olmeiros) por uma modesta urtiga (nettle).
A cena até ficaria simpática:
Thoreau regando anualmente um pé de urtiga.
.
Published on December 14, 2010 17:02
a arte da (im)prudência
.retomo aqui a arte da prudência, de baltasar gracián, já comentada em
post anterior
.
esta, que é uma das obras-primas do barroco espanhol, acabou se tornando nos últimos vinte anos um guia de autoajuda e gestão de negócios, ao estilo, digamos, da arte da guerra de sun tzu.
trata-se de obra de difícil tradução. a edição da best-seller, tanto na época em que pertencia a richard civita quanto agora, no grupo record, segue a tradução em inglês, já moldada ao gosto dos manuais de aconselhamento. os créditos são claros e corretos, constando na página de rosto "tradução do inglês de ieda moriya", e no verso da página os dados sobre a edição utilizada, a saber, a tradução de christopher maurer, de 1992.
a eventuais interessados indico duas traduções de gracián para o inglês: a primeira de joseph jacobs (1892), disponível aqui, e a mais recente de christopher maurer (1992), supracitada e disponível aqui.
a tradução em nome de pietro nassetti, publicada pela editora martin claret, parece se abeberar exaustivamente na tradução de ieda moriya, inclusive nas notas. veja-se um exemplo:
ieda moriya:
além de me sentir injuriada com o logro, fico admirada que a best-seller compre os direitos de tradução da editora americana, pague uma tradutora, publique sua edição e pouco se importe que venha outra empresa colega de profissão, publique a contrafação em oito, dez reedições, e fique tudo por isso mesmo.
imagem: dissolução.
esta, que é uma das obras-primas do barroco espanhol, acabou se tornando nos últimos vinte anos um guia de autoajuda e gestão de negócios, ao estilo, digamos, da arte da guerra de sun tzu.
trata-se de obra de difícil tradução. a edição da best-seller, tanto na época em que pertencia a richard civita quanto agora, no grupo record, segue a tradução em inglês, já moldada ao gosto dos manuais de aconselhamento. os créditos são claros e corretos, constando na página de rosto "tradução do inglês de ieda moriya", e no verso da página os dados sobre a edição utilizada, a saber, a tradução de christopher maurer, de 1992.
a eventuais interessados indico duas traduções de gracián para o inglês: a primeira de joseph jacobs (1892), disponível aqui, e a mais recente de christopher maurer (1992), supracitada e disponível aqui.
a tradução em nome de pietro nassetti, publicada pela editora martin claret, parece se abeberar exaustivamente na tradução de ieda moriya, inclusive nas notas. veja-se um exemplo:
ieda moriya:
3. Manter o suspense. O êxito inesperado ganha admiração. A obviedade excessiva não é nem útil, nem de bom gosto. Não se declarar de imediato desperta curiosidade, em especial se a posição é importante o bastante para causar expectativas. O mistério, por sua característica arcana, provoca a veneração. Mesmo ao se revelar, evite a franqueza total e não permita que todos venham a conhecer o seu íntimo. É no silêncio cauteloso que a prudência se refugia. As decisões, uma vez declaradas, nunca granjeiam estima e expõem à crítica. Se desacertadas, estará duplamente desgraçado. Se quiser atenção e desvelo, imite a divindade.pietro nassetti:
3. Manter o suspense. O êxito inesperado ganha admiração. O que é óbvio não é nem útil, nem de bom gosto. Não se declarar de imediato atiça a curiosidade, em especial se a posição é importante o bastante para causar expectativas. O mistério, por sua característica arcana, provoca a veneração. Mesmo ao se revelar, evita a franqueza total e não permite que todos venham a franquear o seu íntimo. É no silêncio cauteloso que a sensatez se refugia. As decisões, uma vez declaradas, nunca granjeiam estima e expõem à censura. Se desacertadas, estará duplamente desgraçado. Se quiser atenção e desvelo, imite a divindade.pode-se ver a cópia, levemente disfarçada - aliás, essas adulterações às vezes são bastante tolas e distorcem o sentido - como, aqui, o conselho de gracián ao leitor, no imperativo ("evite", "não permita"), que se torna ação ininteligivelmente atribuída ao sujeito "mistério". eis o original de gracián e a tradução de maurer:
3. Llevar sus cosas con suspensión. La admiración de la novedad es estimación de los aciertos. El jugar a juego descubierto ni es de utilidad ni de gusto. El no declararse luego suspende, y más donde la sublimidad del empleo da objecto a la universal expectación; amaga misterio en todo, y con su misma arcanidad provoca la veneración. Aun en el darse a entender se ha de huir la llaneza, assí como ni en el trato se ha de permitir el interior a todos. Es el recatado silencio sagrado de la cordura. La resolución declarada nunca fue estimada; antes se permite a la censura, y si saliere azar, será dos vezes infeliz. Imítese, pues, el proceder divino para hazer estar a la mira y al desvelo.
3. Keep matters in suspense. Successes that are novel win admiration. Being too obvious is neither useful nor tasteful. By not declaring yourself immediately you will keep people guessing, especially if your position is important enough to awaken expectations. Mystery by its very arcaneness causes veneration. Even when revealing yourself, avoid total frankness, and don't let everyone look inside you. Cautious silence is where prudence takes refuge. Once declared, resolutions are never esteemed, and they lie open to criticism. If they turn out badly, you will be twice unfortunate. If you want people to watch and wait on you, imitate the divinity.poderia me estender ao longo dos trezentos aforismos do livro, apenas para reiterar a constatação.
além de me sentir injuriada com o logro, fico admirada que a best-seller compre os direitos de tradução da editora americana, pague uma tradutora, publique sua edição e pouco se importe que venha outra empresa colega de profissão, publique a contrafação em oito, dez reedições, e fique tudo por isso mesmo.
imagem: dissolução.
Published on December 14, 2010 10:00
Denise Bottmann's Blog
- Denise Bottmann's profile
- 23 followers
Denise Bottmann isn't a Goodreads Author
(yet),
but they
do have a blog,
so here are some recent posts imported from
their feed.

