Denise Bottmann's Blog, page 107
May 14, 2011
os sons do tempo
I.
thoreau, numa entrada em seu diário em agosto de 1838, tinha escrito uma nota chamada the time of universe. ali dizia ele:
já a analogia literária ou de fundo romântico-transcendental de thoreau entre o cricri do grilo, o tique do caruncho e o bater do pulso (isto é, a pulsação cardíaca) era, ao que consta, inteiramente original.
assim, instigada minha curiosidade pelo breve artigo de e. arthur robinson a este respeito,* pareceu-me extremamente sugestivo e até esclarecedor reler em the tell-tale heart , de edgar allan poe, a passagem:
é tudo muito interessante: oito longas noites de silenciosa e sinistra vigília, à espera da ocasião propícia para liquidar a vítima. o assassino no escuro, sozinho, o velho dormindo, imagina-se o vazio sonoro em que qualquer mínimo ruído repercutiria muito. digno de atenção o verbo hearkening: não apenas ouvindo casualmente, mas prestando muita atenção. basta pensar: oito longas noites de profundo silêncio, ouvindo com atenção obsessiva os prenúncios de morte, os deathwatches in the wall! a psique como que esvaziada após se dissolver a tremenda tensão acumulada até o momento do assassinato; os carunchos que, imagina-se, continuam com seu tiquetaque na madeira, mesmo esquecido o assassino da existência deles; a sensação de um terrível aumento do espaço interno de sua cabeça; a pulsação rítmica se avolumando na tremenda caixa de ressonância em que se transformou a mente do protagonista, finda sua vigília de morte; quase como consequência de férrea lógica alucinatória surge a projeção final do som do caruncho fatídico para a pulsação do coração do morto.
e ainda mais interessante constatar esse vínculo entre uma referência muito concreta - o som no interior da parede - e o enlouquecimento progressivo do protagonista. isso, a meu ver, enriquece, dá uma densidade bem maior ao processo psicológico do personagem do que se se alimentasse apenas de sua ansiedade mental, desligada de qualquer elemento exterior tangível.
depois de reler o conto à luz da conexão entre thoreau, com sua analogia metafísica entre o tique do caruncho e o bater do coração, e poe, com sua transposição alucinatória do tique dos carunchos na parede para o bater do coração do morto, sinto-me razoavelmente persuadida de que o elemento central do conto the tell-tale heart é mesmo o deathwatch, que dá a chave para entendermos o desenvolvimento do processo mental do protagonista. se o entrelaçamento dos sentidos na mesma expressão: o bichinho em si, o som que prenuncia a morte, a espera marcada pelo tiquetaque desse relógio-da-morte, a vigília ao lado do moribundo, a vigília para infligir a morte, já leva a um grau não negligenciável de espessura literária, ao acrescermos a ele a ligação tácita - mas tão convincente, praticamente inegável depois de a conhecermos! - com o pulse-beat, a batida do coração de thoreau, a interligação dos elementos da narrativa lhe confere qualidade adicional.
ainda a esta luz, outros detalhes adquirem interesse renovado: identifica-se o som que o velho ouve após despertar; sua esperança de que o som pressago seja apenas um cricrilar (se lembrarmos que, tradicionalmente, o grilo é sinal de boa sorte, simétrico inverso dos maus presságios do deathwatch; aliás, também mencionado por thoreau em sua tríade cósmica do tempo universal); as outras menções a relógios - tudo parece adquirir mais consistência.
II
assim, foi decepcionante constatar que as traduções brasileiras mais conhecidas de the tell-tale heart simplesmente desconsideram ou francamente erram ao traduzir o trecho que descreve o protagonista hearkening to the deathwatches in the wall. temos:
oscar mendes: ouvindo a ronda da morte próxima
josé paulo paes: espreitando o relógio na parede
clarice lispector (adapt.): omitido
fabiano bruno gonçalves, em sua dissertação " tradução, interpretação e recepção literária : manifestações de edgar allan poe no brasil" (ufrgs, 2006), debruça-se precisamente sobre este conto e comenta, entre outras coisas, a dificuldade de traduzir satisfatoriamente death-watch. além dos que citei acima, apresenta mais cinco exemplos:
januário leite (literato caboverdiano radicado em lisboa; dado erroneamente como autor de "uma das versões brasileiras mais antigas do conto"): escutando os ralos da parede
annunziata de filippis (embora o autor da dissertação não observe o fato, trata-se de uma tradução por interposição do italiano): escutando os pássaros da morte esvoaçando ameaçadores
márcia pedreira: ouvindo a morte rondar ali por perto
luísa lobo: ouvindo a ronda da morte próxima
paulo schiller: espreitando os relógios da morte na parede
repito: não se trata apenas do uso de um termo polissêmico como deathwatch, sem dúvida de difícil tratamento numa tradução. trata-se ainda mais da conexão propriamente literária, interior à narrativa, entre o som do animal, com todas as suas conotações pressagas, e a batida do coração, conexão esta que funciona como ponte entre o mundo concreto sensível e o fenômeno psíquico que resulta no colapso mental do protagonista.
assim, é evidente que, já praticamente perdida a densidade semântica de deathwatch nas referidas traduções, desvanece-se por completo a possibilidade de acompanhar na narrativa o funcionamento desse sutil mecanismo de projeção e transposição entre os sons de máxima carga simbólica: o som da morte e o som da vida.
* para este esboço inicial de alguns tópicos que desenvolverei futuramente num ensaio, consultei várias fontes, mas a essencial, de onde extraí a ideia do tema central aqui tratado, é o artigo de E. Arthur Robinson, Thoreau and the Deathwatch in Poe's "The Tell-Tale Heart".
imagem: deathwatch, google.
thoreau, numa entrada em seu diário em agosto de 1838, tinha escrito uma nota chamada the time of universe. ali dizia ele:
THE TIME OF THE UNIVERSEno longo artigo que escreveu em 1843 para the dial a pedido de emerson, the natural history of massachusetts , thoreau utilizou sua nota acima, enxugando-a para:
Aug. 10. Nor can all the vanities that so vex the world alter one whit the measure that night has chosen, but ever it must be short particular metre. The human soul is a silent harp in God's quire, whose strings need only to be swept by the divine breath to chime in with the harmonies of creation. Every pulse-beat is in exact time with the cricket's chant, and the tickings of the deathwatch in the wall. Alternate with these if you can.
Nor can all the vanities that vex the world alter one whit the measure that night has chosen. Every pulse-beat is in exact time with the cricket's chant, and the tickings of the deathwatch in the wall. Alternate with these if you can.embora o termo se aplicasse outrora a vários coleópteros, hoje o deathwatch designa mais particularmente o xestobium rufovillosum, um pequeno coleóptero da família dos carunchos, apreciador especialmente de madeira de carvalho, já meio umedecida ou embolorada, seja na mata ou em em casas velhas. emite um som regular, que faz lembrar o tiquetaque de um relógio, e, geralmente estando dentro da madeira, fica oculto ao olho humano. por superstição popular, ficou associado a um presságio sinistro, prenunciando a morte - e daí o nome deathwatch, "relógio da morte" (aliás, em francês o bichinho, la grosse vrillette, também tem o nome de horloge de la mort.) paralelamente, vale lembrar que deathwatch significa também a vigília de um moribundo ou ainda o velório de um morto.
já a analogia literária ou de fundo romântico-transcendental de thoreau entre o cricri do grilo, o tique do caruncho e o bater do pulso (isto é, a pulsação cardíaca) era, ao que consta, inteiramente original.
assim, instigada minha curiosidade pelo breve artigo de e. arthur robinson a este respeito,* pareceu-me extremamente sugestivo e até esclarecedor reler em the tell-tale heart , de edgar allan poe, a passagem:
He was still sitting up in the bed, listening; just as I have done night after night hearkening to the deathwatches in the wall.como se sabe, "o coração revelador" (ou denunciador, ou delator, variam as traduções) descreve, a partir de certa altura da narrativa, a alucinação crescente de um assassino que sente aumentar em seus ouvidos um som cada vez mais alto e pulsante, que por fim julga ser o coração do velho que havia esquartejado.
é tudo muito interessante: oito longas noites de silenciosa e sinistra vigília, à espera da ocasião propícia para liquidar a vítima. o assassino no escuro, sozinho, o velho dormindo, imagina-se o vazio sonoro em que qualquer mínimo ruído repercutiria muito. digno de atenção o verbo hearkening: não apenas ouvindo casualmente, mas prestando muita atenção. basta pensar: oito longas noites de profundo silêncio, ouvindo com atenção obsessiva os prenúncios de morte, os deathwatches in the wall! a psique como que esvaziada após se dissolver a tremenda tensão acumulada até o momento do assassinato; os carunchos que, imagina-se, continuam com seu tiquetaque na madeira, mesmo esquecido o assassino da existência deles; a sensação de um terrível aumento do espaço interno de sua cabeça; a pulsação rítmica se avolumando na tremenda caixa de ressonância em que se transformou a mente do protagonista, finda sua vigília de morte; quase como consequência de férrea lógica alucinatória surge a projeção final do som do caruncho fatídico para a pulsação do coração do morto.
e ainda mais interessante constatar esse vínculo entre uma referência muito concreta - o som no interior da parede - e o enlouquecimento progressivo do protagonista. isso, a meu ver, enriquece, dá uma densidade bem maior ao processo psicológico do personagem do que se se alimentasse apenas de sua ansiedade mental, desligada de qualquer elemento exterior tangível.
depois de reler o conto à luz da conexão entre thoreau, com sua analogia metafísica entre o tique do caruncho e o bater do coração, e poe, com sua transposição alucinatória do tique dos carunchos na parede para o bater do coração do morto, sinto-me razoavelmente persuadida de que o elemento central do conto the tell-tale heart é mesmo o deathwatch, que dá a chave para entendermos o desenvolvimento do processo mental do protagonista. se o entrelaçamento dos sentidos na mesma expressão: o bichinho em si, o som que prenuncia a morte, a espera marcada pelo tiquetaque desse relógio-da-morte, a vigília ao lado do moribundo, a vigília para infligir a morte, já leva a um grau não negligenciável de espessura literária, ao acrescermos a ele a ligação tácita - mas tão convincente, praticamente inegável depois de a conhecermos! - com o pulse-beat, a batida do coração de thoreau, a interligação dos elementos da narrativa lhe confere qualidade adicional.
ainda a esta luz, outros detalhes adquirem interesse renovado: identifica-se o som que o velho ouve após despertar; sua esperança de que o som pressago seja apenas um cricrilar (se lembrarmos que, tradicionalmente, o grilo é sinal de boa sorte, simétrico inverso dos maus presságios do deathwatch; aliás, também mencionado por thoreau em sua tríade cósmica do tempo universal); as outras menções a relógios - tudo parece adquirir mais consistência.
II
assim, foi decepcionante constatar que as traduções brasileiras mais conhecidas de the tell-tale heart simplesmente desconsideram ou francamente erram ao traduzir o trecho que descreve o protagonista hearkening to the deathwatches in the wall. temos:
oscar mendes: ouvindo a ronda da morte próxima
josé paulo paes: espreitando o relógio na parede
clarice lispector (adapt.): omitido
fabiano bruno gonçalves, em sua dissertação " tradução, interpretação e recepção literária : manifestações de edgar allan poe no brasil" (ufrgs, 2006), debruça-se precisamente sobre este conto e comenta, entre outras coisas, a dificuldade de traduzir satisfatoriamente death-watch. além dos que citei acima, apresenta mais cinco exemplos:
januário leite (literato caboverdiano radicado em lisboa; dado erroneamente como autor de "uma das versões brasileiras mais antigas do conto"): escutando os ralos da parede
annunziata de filippis (embora o autor da dissertação não observe o fato, trata-se de uma tradução por interposição do italiano): escutando os pássaros da morte esvoaçando ameaçadores
márcia pedreira: ouvindo a morte rondar ali por perto
luísa lobo: ouvindo a ronda da morte próxima
paulo schiller: espreitando os relógios da morte na parede
repito: não se trata apenas do uso de um termo polissêmico como deathwatch, sem dúvida de difícil tratamento numa tradução. trata-se ainda mais da conexão propriamente literária, interior à narrativa, entre o som do animal, com todas as suas conotações pressagas, e a batida do coração, conexão esta que funciona como ponte entre o mundo concreto sensível e o fenômeno psíquico que resulta no colapso mental do protagonista.
assim, é evidente que, já praticamente perdida a densidade semântica de deathwatch nas referidas traduções, desvanece-se por completo a possibilidade de acompanhar na narrativa o funcionamento desse sutil mecanismo de projeção e transposição entre os sons de máxima carga simbólica: o som da morte e o som da vida.
* para este esboço inicial de alguns tópicos que desenvolverei futuramente num ensaio, consultei várias fontes, mas a essencial, de onde extraí a ideia do tema central aqui tratado, é o artigo de E. Arthur Robinson, Thoreau and the Deathwatch in Poe's "The Tell-Tale Heart".
imagem: deathwatch, google.
Published on May 14, 2011 19:57
May 13, 2011
o bálsamo de gileade
Outro aspecto que Claudio Weber Abramo aponta em seu ensaio sobre O Corvo é "uma possível gênese bíblica e anacreôntica para a narrativa de Poe" (p. 15). A poeana brasileira tem imensas lacunas, e essa sugestão, desenvolvida no capítulo "Fontes" (pp. 43-56), parece promissora.
O capítulo se inicia com a transcrição de Jeremias 8:22, conforme a Bíblia do rei Jaime: Is there no balm in Gilead; is there no physician there? why then is not the health of the daughter of my people recovered? (p. 43) Inspirada pela citação, atraiu-me no poema o verso que remete diretamente a ela - a quinta linha da 15a. estrofe, quando o personagem pergunta ao Corvo: Is there - is there balm in Gilead? O escopo da análise de Abramo é bem mais amplo, mas essa menção explícita ao bálsamo de Gileade - que justamente deve ter servido, imagino eu, de ponto de partida para a hipótese mais abrangente do autor - dá mesmo margem a supor que a presença de Jeremias em The Raven não é episódica nem circunstancial. E, nessa linha de raciocínio, eu arriscaria: tampouco seria à toa que, nesta e na estrofe seguinte, o personagem se dirige ao Corvo chamando-o de Profeta.
commiphora gileadensis
Balm of Gilead, balm of Mecca, Mecca balsam; baume de Galaad, baume de Judée, baume de la Mecque; bálsamo de Gilead(e), bálsamo de Galaad, bálsamo da meca, bálsamo da Judeia, os nomes variam. (Baudelaire e mais tarde Mallarmé usaram baume en Judée.)
Sempre consultando o utilíssimo site de Elson Fróes, para "balm in Gilead" temos:
Machado de Assis: um bálsamo no mundo
Alfredo R. Rodrigues: o bálsamo ... do esquecimento
João Kopke: lenitivo que a [a dor] acalme
Emílio de Menezes: algum repouso, algum consolo
Fernando Pessoa: um bálsamo longínquo
Gondim da Fonseca: bálsamo em Galaad
Milton Amado: um bálsamo em Galaad
Benedito Lopes: na Judeia um bálsamo
José Luiz de Oliveira: um bálsamo pra dor
Rubens F. Lucchetti: um bálsamo da Judeia
Alexei Bueno: um bálsamo em Galaad
João Inácio Padilha: no mundo um bálsamo
Sergio Duarte: algum bálsamo
Edson Negromonte: o bálsamo de Galaade
Odair Creazzo Jr.: tem Galahad bálsamo
Aluysio M. Sampaio: bálsamo em Galaad
Luís C. Guimarães: um bálsamo em Galaad
Helder da Rocha: bálsamo em Gileade
Vinícius Alves: o bálsamo em Galaad
Diego Raphael: bálsamo em Galaad
Eduardo A. Rodrigues: um bálsamo em Galaad
Carlos Primati: o bálsamo
Isa Mara Lando: um bálsamo ali
Margarida Vale de Gato: em Galaad há consolo
Alskander Santos: bálsamo
Thereza C. R. da Motta: bálsamo na Esperança
Raphael Soares: bálsamo em outros mares

O capítulo se inicia com a transcrição de Jeremias 8:22, conforme a Bíblia do rei Jaime: Is there no balm in Gilead; is there no physician there? why then is not the health of the daughter of my people recovered? (p. 43) Inspirada pela citação, atraiu-me no poema o verso que remete diretamente a ela - a quinta linha da 15a. estrofe, quando o personagem pergunta ao Corvo: Is there - is there balm in Gilead? O escopo da análise de Abramo é bem mais amplo, mas essa menção explícita ao bálsamo de Gileade - que justamente deve ter servido, imagino eu, de ponto de partida para a hipótese mais abrangente do autor - dá mesmo margem a supor que a presença de Jeremias em The Raven não é episódica nem circunstancial. E, nessa linha de raciocínio, eu arriscaria: tampouco seria à toa que, nesta e na estrofe seguinte, o personagem se dirige ao Corvo chamando-o de Profeta.
commiphora gileadensisBalm of Gilead, balm of Mecca, Mecca balsam; baume de Galaad, baume de Judée, baume de la Mecque; bálsamo de Gilead(e), bálsamo de Galaad, bálsamo da meca, bálsamo da Judeia, os nomes variam. (Baudelaire e mais tarde Mallarmé usaram baume en Judée.)
Sempre consultando o utilíssimo site de Elson Fróes, para "balm in Gilead" temos:
Machado de Assis: um bálsamo no mundo
Alfredo R. Rodrigues: o bálsamo ... do esquecimento
João Kopke: lenitivo que a [a dor] acalme
Emílio de Menezes: algum repouso, algum consolo
Fernando Pessoa: um bálsamo longínquo
Gondim da Fonseca: bálsamo em Galaad
Milton Amado: um bálsamo em Galaad
Benedito Lopes: na Judeia um bálsamo
José Luiz de Oliveira: um bálsamo pra dor
Rubens F. Lucchetti: um bálsamo da Judeia
Alexei Bueno: um bálsamo em Galaad
João Inácio Padilha: no mundo um bálsamo
Sergio Duarte: algum bálsamo
Edson Negromonte: o bálsamo de Galaade
Odair Creazzo Jr.: tem Galahad bálsamo
Aluysio M. Sampaio: bálsamo em Galaad
Luís C. Guimarães: um bálsamo em Galaad
Helder da Rocha: bálsamo em Gileade
Vinícius Alves: o bálsamo em Galaad
Diego Raphael: bálsamo em Galaad
Eduardo A. Rodrigues: um bálsamo em Galaad
Carlos Primati: o bálsamo
Isa Mara Lando: um bálsamo ali
Margarida Vale de Gato: em Galaad há consolo
Alskander Santos: bálsamo
Thereza C. R. da Motta: bálsamo na Esperança
Raphael Soares: bálsamo em outros mares
Published on May 13, 2011 13:45
May 12, 2011
emblemas
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na primeira vez em que publicou the raven, poe assinou com o pseudônimo "quarles". não parece haver muitas dúvidas de que ele se referia a francis quarles, autor de paráfrases bíblicas e poeta seiscentista inglês que escreveu um livro de emblemas,* reiterativamente chamado emblems.
há quem diga que talvez poe estivesse fazendo um trocadilho com quarrels. de minha parte, acho imensamente sugestiva a referência de poe a quarles, insinuando por extensão o caráter emblemático d'o corvo.
* categoria literária específica dos séculos XVI e XVII, basicamente com imagens simbólicas e textos explicativos, muitas vezes de fundo bíblico. na wikipedia encontram-se inúmeros verbetes e links para obras de emblemas.
imagem: quarles, emblems
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na primeira vez em que publicou the raven, poe assinou com o pseudônimo "quarles". não parece haver muitas dúvidas de que ele se referia a francis quarles, autor de paráfrases bíblicas e poeta seiscentista inglês que escreveu um livro de emblemas,* reiterativamente chamado emblems.
há quem diga que talvez poe estivesse fazendo um trocadilho com quarrels. de minha parte, acho imensamente sugestiva a referência de poe a quarles, insinuando por extensão o caráter emblemático d'o corvo.
* categoria literária específica dos séculos XVI e XVII, basicamente com imagens simbólicas e textos explicativos, muitas vezes de fundo bíblico. na wikipedia encontram-se inúmeros verbetes e links para obras de emblemas.
imagem: quarles, emblems
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Published on May 12, 2011 06:44
May 11, 2011
poe contista
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nos últimos posts, tenho me concentrado em the raven e alguns aspectos que me parecem interessantes. de acompanhamento às traduções do poema comentadas por ivo barroso e claudio w. abramo, quem se interessa por seus contos encontra aqui no blog mais de uma trintena de posts agrupados na linha de assunto poe no brasil. pode consultar também um artigo meu, "alguns aspectos da presença de edgar allan poe no brasil", publicado na tradução em revista, puc-rio, 2010/1, disponível aqui .
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nos últimos posts, tenho me concentrado em the raven e alguns aspectos que me parecem interessantes. de acompanhamento às traduções do poema comentadas por ivo barroso e claudio w. abramo, quem se interessa por seus contos encontra aqui no blog mais de uma trintena de posts agrupados na linha de assunto poe no brasil. pode consultar também um artigo meu, "alguns aspectos da presença de edgar allan poe no brasil", publicado na tradução em revista, puc-rio, 2010/1, disponível aqui .
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Published on May 11, 2011 20:38
as versões de the raven
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a história de the raven é bastante acidentada: entre sua primeira publicação em janeiro de 1845 até a edição de 1849, tida como a versão final autorizada, poe procedeu a dezenas de modificações no texto. a escolha da edição não deveria ser leviana, portanto. mas, para as traduções feitas no brasil (e mesmo na frança, com baudelaire e mallarmé), já temos aí um problema: se poe teve por bem, entre outras coisas, modificar soul para fancy na oitava e na duodécima estrofes do poema, muitas das traduções, quando não simplesmente atropelam seja a alma ou a fantasia, adotam o repudiado soul de 1845 - o que não me parece coisa de somenos, ainda mais se levarmos em conta as ressonâncias da seminal distinção romântica fancy/ imagination do amado coleridge de poe.
aqui se encontra o histórico das modificações feitas por poe, com respectivos textos.
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a história de the raven é bastante acidentada: entre sua primeira publicação em janeiro de 1845 até a edição de 1849, tida como a versão final autorizada, poe procedeu a dezenas de modificações no texto. a escolha da edição não deveria ser leviana, portanto. mas, para as traduções feitas no brasil (e mesmo na frança, com baudelaire e mallarmé), já temos aí um problema: se poe teve por bem, entre outras coisas, modificar soul para fancy na oitava e na duodécima estrofes do poema, muitas das traduções, quando não simplesmente atropelam seja a alma ou a fantasia, adotam o repudiado soul de 1845 - o que não me parece coisa de somenos, ainda mais se levarmos em conta as ressonâncias da seminal distinção romântica fancy/ imagination do amado coleridge de poe.
aqui se encontra o histórico das modificações feitas por poe, com respectivos textos.
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Published on May 11, 2011 06:50
May 10, 2011
poe, baudelaire e machado
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manet, le corbeau, ex libris
Claudio Weber Abramo, em O Corvo, aponta o abeberamento de Machado de Assis em Le Corbeau, de Charles Baudelaire, para sua tradução do poema de Poe, The Raven. A indicação me parece relevante, não para desmerecermos, claro, mas para entendermos melhor alguns soluções machadianas, ainda mais em se tratando de um clássico de nosso patrimônio tradutório de influência tão grande e duradoura.
Essa rota de contorno, prossegue Abramo, viria a se refletir nas traduções de Emílio de Menezes e Benedito Lopes, "tendo ainda se replicado em trechos da versão de Rubens Francisco Lucchetti, decerto oriundos da leitura de Machado de Assis" (p. 15).
Eis alguns dos exemplos dados à p. 77 ss.: bleak December como B. "glacial décembre" e M. "glacial dezembro"; each separate dying ember wrought its ghost upon the floor: em B. "chaque tison brodait à son tour le planchet du reflet de son agonie", M. "cada brasa do lar sobre o chão refletia a sua última agonia"; of the saintly days of yore em B. como "digne des anciens jours" e em M. como "digno de antigos dias"; Much I marvelled this ungainly fowl to hear discourse so plainly, inversão mal entendida por B., que dá "Je fus émerveillé que ce disgracieux volatile entendît si facilment la parole", que reaparece em M. como "Vendo que o pássaro entendia a pergunta que eu lhe fazia"; This I sat engaged in guessing, em B. ampliado como "Je me tenais ainsi, rêvant, conjecturant" e em M. como "Assim posto, devaneando, meditando, conjecturando".
O original e as duas traduções se encontram com facilidade na rede: The Raven , Le Corbeau , O Corvo .
.A
manet, le corbeau, ex librisClaudio Weber Abramo, em O Corvo, aponta o abeberamento de Machado de Assis em Le Corbeau, de Charles Baudelaire, para sua tradução do poema de Poe, The Raven. A indicação me parece relevante, não para desmerecermos, claro, mas para entendermos melhor alguns soluções machadianas, ainda mais em se tratando de um clássico de nosso patrimônio tradutório de influência tão grande e duradoura.
Essa rota de contorno, prossegue Abramo, viria a se refletir nas traduções de Emílio de Menezes e Benedito Lopes, "tendo ainda se replicado em trechos da versão de Rubens Francisco Lucchetti, decerto oriundos da leitura de Machado de Assis" (p. 15).
Eis alguns dos exemplos dados à p. 77 ss.: bleak December como B. "glacial décembre" e M. "glacial dezembro"; each separate dying ember wrought its ghost upon the floor: em B. "chaque tison brodait à son tour le planchet du reflet de son agonie", M. "cada brasa do lar sobre o chão refletia a sua última agonia"; of the saintly days of yore em B. como "digne des anciens jours" e em M. como "digno de antigos dias"; Much I marvelled this ungainly fowl to hear discourse so plainly, inversão mal entendida por B., que dá "Je fus émerveillé que ce disgracieux volatile entendît si facilment la parole", que reaparece em M. como "Vendo que o pássaro entendia a pergunta que eu lhe fazia"; This I sat engaged in guessing, em B. ampliado como "Je me tenais ainsi, rêvant, conjecturant" e em M. como "Assim posto, devaneando, meditando, conjecturando".
O original e as duas traduções se encontram com facilidade na rede: The Raven , Le Corbeau , O Corvo .
.A
Published on May 10, 2011 06:15
May 9, 2011
sons n'o corvo
Quem acompanha meu trabalho em
Lendo Walden
sabe como sou obsessiva com as questões de sentido, nuances, referências, alusões, jogos de palavras etc. numa prosa de grande densidade literária como é Walden. Já poesia, sempre considerei outro universo, talvez acostumada à tradição mais estetizante ou formalista, que não raro coloca a ênfase sobre a rima, o metro, o ritmo, por vezes sacrificando sentidos mais próximos do original. Em todo caso, mesmo evitando o terreno poético, sou do parecer de que uma obra constitui uma unidade e que o autor é responsável por suas escolhas, as quais, como tradutora, devo respeitar.
Claudio Weber Abramo, em seu ensaio recentemente publicado pela editora Hedra, coloca o problema da tradução poética nos seguintes termos: "Dada a impossibilidade de se manter paralelismo simultâneo entre ritmos/melodias e significados numa tradução, qual dimensão deve ser preferencialmente preservada? Excluindo como irrazoável a declaração de que ambas devem ser obedecidas, o tradutor precisa fazer uma escolha" (p. 22). Sua posição é clara: ele defende a "tradução com compromisso semântico". Naturalmente admite que traduções "métricas", isto é, estruturadas em arcabouço rítmico-melódico, "podem ser excelentes enquanto poesia", ressalvando: "o que não significa necessariamente que sejam boas como traduções" (p. 13). "Boas como traduções"... esta é a grande questão, a questão "filosófica", que Abramo trata na seção "Relativismo e Universalismo" (pp. 20-24) - sem entrar nessa discussão infindável e, no fundo, indecidível, concordo com Abramo que "todo problema relacionado à tradução é um problema prático".
Isso me leva a um exemplo concreto das tarefas que enfrenta um tradutor. Há um verso em The Raven que diz: Swung by seraphim whose foot-falls tinkled on the tufted floor (segundo verso da 14a. estrofe).
Bom, começa que até 1848, em vez de seraphim, o verso trazia angels, mas tudo bem.* A questão é o verbo: tinkled. To tinkle: tilintar, tinir, designando um tipo de sonoridade muito específico, em geral alto ou distinto e penetrante, que embute a ideia de repetição, como pulseiras que se entrechocam, um guizo que bate, uma campainha que toca, moedas que (justamente) tilintam umas contras as outras, ou mesmo um dedilhado ao piano, por exemplo. O que faz o tradutor diante desse tinkled? Preserva-o? Considera-o secundário? Passos tilintando ou ressoando no chão atapetado (e um tapete felpudo, tufted, ainda por cima)... Despropositado?
Nas várias traduções disponíveis no site de Elson Fróes , dez omitem a passagem e, portanto, a sonoridade descrita no verso. Outras mantêm a passagem com um verbo pouco "sonoro": roçando, roçar, roçagando, pousassem, deslizaram, revoa, revoando, bem de leve pisavam, tropeçou ("cujo pé tropeçou", talvez erro de entendimento de foot-falls). Outras preservam a referência sonora ou rítmica, com maior ou menor grau de generalidade: ressoavam, ressoavam, roçassem em cadência, soam musicais, dando passos musicais, ressoavam cadenciais, passasse com passos musicais, tinindo passos frenéticos (?) e tilintaram.
Aqui reproduzo um trecho de uma carta de Poe, de 15 de dezembro de 1848, explicando a um crítico o uso de tinkled:
* Em 1848, Poe altera angels para Seraphim; na versão derradeira (1849), modifica para seraphim, em minúscula. Ver histórico das diversas versões de The Raven.
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Claudio Weber Abramo, em seu ensaio recentemente publicado pela editora Hedra, coloca o problema da tradução poética nos seguintes termos: "Dada a impossibilidade de se manter paralelismo simultâneo entre ritmos/melodias e significados numa tradução, qual dimensão deve ser preferencialmente preservada? Excluindo como irrazoável a declaração de que ambas devem ser obedecidas, o tradutor precisa fazer uma escolha" (p. 22). Sua posição é clara: ele defende a "tradução com compromisso semântico". Naturalmente admite que traduções "métricas", isto é, estruturadas em arcabouço rítmico-melódico, "podem ser excelentes enquanto poesia", ressalvando: "o que não significa necessariamente que sejam boas como traduções" (p. 13). "Boas como traduções"... esta é a grande questão, a questão "filosófica", que Abramo trata na seção "Relativismo e Universalismo" (pp. 20-24) - sem entrar nessa discussão infindável e, no fundo, indecidível, concordo com Abramo que "todo problema relacionado à tradução é um problema prático".
Isso me leva a um exemplo concreto das tarefas que enfrenta um tradutor. Há um verso em The Raven que diz: Swung by seraphim whose foot-falls tinkled on the tufted floor (segundo verso da 14a. estrofe).
Bom, começa que até 1848, em vez de seraphim, o verso trazia angels, mas tudo bem.* A questão é o verbo: tinkled. To tinkle: tilintar, tinir, designando um tipo de sonoridade muito específico, em geral alto ou distinto e penetrante, que embute a ideia de repetição, como pulseiras que se entrechocam, um guizo que bate, uma campainha que toca, moedas que (justamente) tilintam umas contras as outras, ou mesmo um dedilhado ao piano, por exemplo. O que faz o tradutor diante desse tinkled? Preserva-o? Considera-o secundário? Passos tilintando ou ressoando no chão atapetado (e um tapete felpudo, tufted, ainda por cima)... Despropositado?
Nas várias traduções disponíveis no site de Elson Fróes , dez omitem a passagem e, portanto, a sonoridade descrita no verso. Outras mantêm a passagem com um verbo pouco "sonoro": roçando, roçar, roçagando, pousassem, deslizaram, revoa, revoando, bem de leve pisavam, tropeçou ("cujo pé tropeçou", talvez erro de entendimento de foot-falls). Outras preservam a referência sonora ou rítmica, com maior ou menor grau de generalidade: ressoavam, ressoavam, roçassem em cadência, soam musicais, dando passos musicais, ressoavam cadenciais, passasse com passos musicais, tinindo passos frenéticos (?) e tilintaram.
Aqui reproduzo um trecho de uma carta de Poe, de 15 de dezembro de 1848, explicando a um crítico o uso de tinkled:
Your objection to the tinkling of the footfalls is far more pointed, and in the course of composition occurred so forcibly to myself that I hesitated to use the term. I finally used it, because I saw that it had, in its first conception, been suggested to my mind by the sense of the supernatural with which it was, at the moment, filled. No human or physical foot could tinkle on a soft carpet — therefore the tinkling of feet would vividly convey the supernatural impression. This was the idea, and it is good within itself; but if it fails (as I fear it does) to make itself immediately and generally felt according to my intention — then in so much is it badly conveyed, or expressed. [negrito meu, DB]*Ainda a propósito do tinkle deste verso, Poe teria se inspirado em Isaías 3:16 (CWA, p. 46 e n.). Claro está que, nos passos das filhas de Sião, eram os ornamentos dos tornozelos que tilintavam ao andar delas. No caso dos serafins do verso, seriam seus próprios pés a ressoar sem que o som fosse abafado pelo tapete, o que de fato é um pouco difícil de entender: daí a impressão sobrenatural pretendida por Poe. O detalhe não me parece trivial.
* Em 1848, Poe altera angels para Seraphim; na versão derradeira (1849), modifica para seraphim, em minúscula. Ver histórico das diversas versões de The Raven.
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Published on May 09, 2011 13:39
os corvos
Elson Fróes mantém em seu site uma ótima seção sobre Poe, chamada "Uma Nuvem de Corvos", com nada menos de 34 traduções de The Raven para o português, em ordem cronológica, todas elas linkadas. Veja aqui .
Abaixo seguem elas, em ordem alfabética, assinaladas entre parênteses as reproduzidas (ou citadas, cit.) por Ivo Barroso (INB) em O Corvo e suas traduções e por Claudio Weber Abramo (CWA) em O Corvo: gênese, referências e traduções do poema de Edgar Allan Poe
Alexei Bueno (INB; CWA)
Alfredo Ferreira Rodrigues (INB, cit.)
Alskander Santos
Aluysio Mendonça Sampaio (INB, cit.)
Augusto de Campos* (CWA)
Benedito Lopes (INB; CWA)
Cabral do Nascimento
Carlos Primati
Diego Raphael (INB, cit.)
Edson Negromonte
Eduardo A. Rodrigues
Emílio de Meneses (INB; CWA)
Fernando Pessoa (INB; CWA)
Gondin da Fonseca (INB: CWA)
Haroldo de Campos* (CWA)
Helder da Rocha
Isa Mara Lando
João Costa
João Inácio Padilha (INB, cit.; CWA)
João Kopke
Jorge Wanderley (INB)
José Lira (CWA)
José Luiz de Oliveira
Luis Carlos Guimarães (INB, cit.)
Machado de Assis (INB; CWA)
Margarida Vale de Gato
Máximo das Dores
Milton Amado (INB; CWA)
Odair Creazzo Jr.
Raphael Soares
Rubens Francisco Lucchetti (CWA)
Sergio Duarte (INB, cit.; CWA)
Thereza C. Rocque da Motta
Vinícius Alves (INB, cit.)
* Tradução apenas da última estrofe.
Às 34 traduções em português listadas no site de Elson Fróes, somem-se a de Mécia Mouzinho de Albuquerque (1890) e a de Claudio Weber Abramo (2011).
imagem: masahisa fukase, 1978
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Published on May 09, 2011 06:39
May 8, 2011
ivo barroso, o corvo e suas traduções
num contraste que pode ser interessante, retomo aqui um grande marco nos estudos comparados d'o corvo no brasil: o corvo e suas traduções, de ivo barroso. a obra foi publicada originalmente em 1998, pela nova aguilar, com segunda edição ampliada em 2000. está esgotada há alguns anos, e recebi a ótima notícia de que em breve será relançada pela leya.
ivo barroso, poeta, crítico literário e tradutor, defende uma posição muito diferente da adotada por claudio weber abramo em o corvo: gênese, referências e traduções do poema de edgar allan poe (hedra, 2011). mas numa avaliação ambos parecem concordar: a qualidade lítero-tradutória d'o corvo de milton amado. abramo apresenta a tradução de milton amado às pp. 120-24 de seu livro, considerando-a "uma tentativa valorosa" que constitui "um verdadeiro tour de force" - o que, em sua pena econômica em elogios, não me parece pouca coisa.
em 2009, eu tinha publicado um artigo de ivo barroso sobre essa tradução. reproduzo-o aqui.

ivo barroso, poeta, crítico literário e tradutor, defende uma posição muito diferente da adotada por claudio weber abramo em o corvo: gênese, referências e traduções do poema de edgar allan poe (hedra, 2011). mas numa avaliação ambos parecem concordar: a qualidade lítero-tradutória d'o corvo de milton amado. abramo apresenta a tradução de milton amado às pp. 120-24 de seu livro, considerando-a "uma tentativa valorosa" que constitui "um verdadeiro tour de force" - o que, em sua pena econômica em elogios, não me parece pouca coisa.
em 2009, eu tinha publicado um artigo de ivo barroso sobre essa tradução. reproduzo-o aqui.
A PRIMEIRA DETERMINAÇÃO
Havia alguns tradutores injustiçados, que eu simplesmente venerava. Faria o que estivesse a meu alcance para promovê-los, para divulgar suas qualidades ímpares. O primeiro deles seria Mílton Amado, autor de uma tradução inigualável do poema O Corvo, de Edgar Allan Poe. A primeira vez que a li, sem ainda conhecer o original, senti que estava diante de uma organização poética perfeita: ritmo, linguagem, dramaticidade.
O posterior cotejo com o original veio corroborar minha sensação primitiva: toda a angústia, grandeza, euforia, exaltação que Poe me transmitia em inglês retinia, ecoava, revivia nos versos de Milton. E quem era ele? Um desconhecido e tímido jornalista mineiro que sempre vivera esmagado pela estreiteza intelectual da província; pobre, marginalizado, sem que ninguém lhe reconhecesse o talento. Seu nome sequer constava nas obras de Poe como o tradutor dos versos. O que aparecia em letras grandes era o de Oscar Mendes, tradutor dos contos (aliás de parte dos), da prosa do genial Edgar Allan. O crédito a Milton, quando havia, era em corpo mínimo, escondido, escamoteado. Consegui a informação de que a viúva e seu filho Eugênio (também tradutor) moravam em Belo Horizonte. Procurei-os lá e soube que Milton pegava com Oscar Mendes traduções para fazer e em geral quem levava as honras era este último. Apesar de suas inúmeras traduções, as assinadas apenas com seu nome, Milton Amado, eram o Dom Quixote e as Fábulas de La Fontaine (Milton fez em vida o 1º volume e Eugênio terminou o 2º). Falei-lhes de minha intenção de escrever um pequeno ensaio provando com argumentos críticos que a tradução de O Corvo, feita por Milton, era superior às conhecidas de Machado de Assis e de Fernando Pessoa. Os direitos autorais da 1ª edição reverteriam para a família.
Os direitos autorais da tradução de Milton (as traduções eram vendidas aos editores) pertenciam à Nova Aguilar e foi a ela que propus a publicação de meu ensaio, que saiu em 1ª edição em 1998, com um entusiástico prefácio de Carlos Heitor Cony. Ele não conhecia a tradução de Milton e ficou encantado quando a viu. Escreveu uma crônica na Folha, que despertou a atenção de seus inúmeros leitores. Eu fazia um cotejo da tradução de Milton com a dos outros autores que então conhecia: Machado, Pessoa, Emílio de Meneses, Gondim da Fonseca, Benedito Lopes e Alexei Bueno. Acrescentei as duas famosas francesas, de Baudelaire e de Mallarmé. O livro vendeu bem, a família ficou contente, a editora pensou logo numa 2ª edição. Já a esta altura (2000) haviam chegado muitas informações e colaborações. Foram acrescentadas as de Jorge Wanderley e a de Didier Lamaison (em francês) e mencionadas mais as seguintes: a de Alfredo Ferreira Rodrigues (várias, a mais antiga de 1914), a de João Inácio Padilha, a de Aluísio Mendonça Sampaio, a de Sérgio Duarte, a de Luís Carlos Guimarães, a de Vinícius Alves e a (ótima) de Diego Raphael. Intimei meu amigo Didier Lamaison a dotar sua língua de uma tradução em versos do grande poema; tanto Baudelaire quanto Mallarmé o haviam feito em prosa, o que, na minha opinião, invalidava a possibilidade de transmitir o ritmo, a beleza das rimas tríplices, a grandiloquência declamatória do poema. Não se podia esquecer que Poe, em seus últimos anos, vivia de declamar em público a sua criação magistral. Didier aceitou o repto e reproduziu, em francês, a façanha que Milton Amado conseguira em português. Se, com minhas traduções de escritores gauleses, tenho prestado, ainda que indiretamente, algum serviço cultural à França, ter sido o instigador dessa genial tradução foi para mim o trabalho que seria mais digno de encômio.#
Ivo Barroso
Published on May 08, 2011 18:37
May 7, 2011
o corvo, de claudio weber abramo
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a editora hedra lançou recentemente um ensaio de claudio weber abramo, o corvo: gênese, referências e traduções do poema de edgar allan poe.
é um ensaio de grande fôlego, com exaustivo aparato crítico e posição teórica muito clara, exposta desde o primeiro parágrafo: "Traduzir (poesia ou qualquer outro tipo de texto) conferindo-se predominância a sons e ritmos e subordinando-se a semântica aos caprichos do metro constitui uma desconsideração consciente quanto ao que é mais importante" (p. 13), e adiante "O que permite proceder-se a traduções são as estruturas sintáticas e a semântica" (p. 18). caberia como bibliografia obrigatória em todos os cursos sobre literatura e tradução.
comentarei a obra aos poucos. entre seu rigor e sua riqueza, destaca-se desde já um apontamento fundamental que, quanto mais não fosse, justificaria por si só essa edição: claudio weber abramo indica de maneira bastante convincente que a célebre tradução d'o corvo feita por machado de assis se baseou muito mais em le corbeau de baudelaire do que em the raven de poe.
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a editora hedra lançou recentemente um ensaio de claudio weber abramo, o corvo: gênese, referências e traduções do poema de edgar allan poe.
é um ensaio de grande fôlego, com exaustivo aparato crítico e posição teórica muito clara, exposta desde o primeiro parágrafo: "Traduzir (poesia ou qualquer outro tipo de texto) conferindo-se predominância a sons e ritmos e subordinando-se a semântica aos caprichos do metro constitui uma desconsideração consciente quanto ao que é mais importante" (p. 13), e adiante "O que permite proceder-se a traduções são as estruturas sintáticas e a semântica" (p. 18). caberia como bibliografia obrigatória em todos os cursos sobre literatura e tradução.
comentarei a obra aos poucos. entre seu rigor e sua riqueza, destaca-se desde já um apontamento fundamental que, quanto mais não fosse, justificaria por si só essa edição: claudio weber abramo indica de maneira bastante convincente que a célebre tradução d'o corvo feita por machado de assis se baseou muito mais em le corbeau de baudelaire do que em the raven de poe.
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Published on May 07, 2011 09:36
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